Postado em 26/11/2015
Após 4 anos de trâmite e discussão, a Lei Brasileira da Inclusão foi sancionada. Entre os efeitos esperados dessa lei é que ela consiga concretizar condições de acessibilidade.
Para falar a respeito do tema, a Eonline conversou com Renata Andrade, especialista que atua nesta área desde 1995. Ela é formada em Filosofia com especializações e qualificações em Tecnologia Assistiva, Práticas Inclusivas, Desenho Universal, Orientação e Mobilidade, Audiodescrição, Cultura Surda, Emprego Apoiado, Planejamento Centrado na Pessoa. Renata é diretora na Diversitas, consultoria especialista em acessibilidade e também trabalha como socializadora de cães de assistência. Eles são fundamentais para auxiliar pessoas com deficiência em sua rotina.
EOnline - Quais as diferenças conceituais entre inclusão e acessibilidade? Em que medida uma corrobora a outra nas diversas atividades humanas?
Andrade - A Inclusão é na verdade um processo em que cada pessoa tem a oportunidade de desenvolver individualmente suas potencialidades e assim contribuir como cidadão para sua comunidade. Uma sociedade inclusiva, ou seja, que oferece condições igualitárias para todos os indivíduos tende a ser uma sociedade mais desenvolvida e melhor para todos. Para que haja inclusão duas condições são determinantes:
A valorização da diversidade e a promoção da acessibilidade. Isso significa acolher e reconhecer a importância das diferenças e eliminar barreiras que dificultem ou impeçam a plena participação de TODAS as pessoas sem exceção.
Essa valorização das diferenças exige a igualdade de valor entre todos os indivíduos e o reconhecimento das necessidades individuais para o desenvolvimento humano. Identificar essas singularidades possibilita que eliminemos as barreiras sociais, físicas e atitudinais em todas as áreas da vida e em todos os ambientes sociais.
Não há inclusão sem acessibilidade e só há acessibilidade quando ofertamos as mesmas oportunidades em equidade de condições para TODOS. Não seremos inclusivos enquanto fizermos atividades específicas para este ou aquele grupo ou disponibilizarmos recursos que garantem a participação de pessoas com uma determinada característica apenas. Para incluir é necessário ser universal na forma de construir e disponibilizar ambientes, produtos e serviços.
Ambientes, serviços ou atividades, inclusivos de fato, não oferecem barreiras arquitetônicas, comunicacionais, instrumentais, metodológicas, programáticas, atitudinais ou naturais.
EOnline - Quais marcos relacionados a este tema existem em dimensão internacional?
Andrade - Eu diria que este tema é tão antigo quanto a própria humanidade. Ainda assim, não fomos capazes de assimilar estes conceitos e traduzi-los em nossa prática diária ao longo da história. Pensadores, religiosos, políticos e ativistas dos direitos humanos sempre trouxeram este conhecimento à reflexão. A máxima Cristã “Ama a teu próximo como a ti mesmo”, os ideais de “Liberdade, Igualdade e Fraternidade” e a Declaração dos Direitos Humanos são exemplos de pensamentos que fizeram a humanidade olhar para si mesma e repensar suas escolhas no relacionar-se enquanto coletivo.
O que podemos perceber como evolução é que ao longo do tempo os marcos se tornam mais elaborados e específicos, proporcionando um olhar mais amplo e ao mesmo tempo profundo sobre o tema.
Um bom exemplo dessa evolução quanto a incluir e valorizar a diversidade é a Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (2008). Ela globalizou conceitos importantes fazendo com que os países signatários olhassem para a pessoa com deficiência sobre uma outra perspectiva e mudassem a percepção sobre acessibilidade, deficiência e inclusão. Ao falar em direitos das pessoas com deficiência, a Convenção nos chama a reconhecer a igualdade de valor destes indivíduos perante aos demais cidadãos e a valorizar o ser humano sem supervalorizar ou ignorar suas características funcionais.
EOnline - No contexto brasileiro, em que ponto nos encontramos nesta discussão?
Andrade - Essa pergunta cabe analisarmos sobre aspectos diferentes. Eu diria que é como olhar por um caleidoscópio. Quando temos uma política adequada e bem fundamentada, a prática muitas vezes não é coerente. Em outras circunstâncias temos iniciativas relevantes e um retrocesso político. Ser um país inclusivo exige que tenhamos políticas, culturas e práticas coerentes com os valores inclusivos e que se complementem, e essa lógica deve se estender a qualquer instituição pública ou privada.
Por exemplo: muitas instituições possuem uma cultura de não discriminação que sustentam suas políticas e práticas que valorizam a questão LGBT – mas vimos recentemente, um pequeno grupo de políticos, que se diz representantes do povo, determinar o que pode ser considerado família no Brasil. Por outro lado, promulgamos a Convenção da ONU sobre os direitos das Pessoas com Deficiência, com status de emenda constitucional em 2009. Embora ela traga conceitos claros sobre inclusão, modelo social de deficiência, acessibilidade baseada no Desenho Universal, a maioria das organizações, públicas ou privadas, continuam investindo em programas de inclusão de PcD, que segregam, estigmatizam e não promovem a equiparação de oportunidades e muito menos a troca entre pessoas com diferentes características. Estas organizações ainda investem em recursos de acessibilidade específicos para este ou aquele grupo. Em ambos os casos percebemos uma falha na cultura que é o elemento que subsidiaria boas políticas e práticas de excelência.
Sem uma cultura clara de antidiscriminação e reconhecimento dos preconceitos existentes, em que haja um discurso claro e sistêmico sobre igualdade e equidade, não é possível traçar estratégias eficientes e eficazes para que políticas e práticas sejam inclusivos e não somente em teoria.
EOnline - E ao longo desses últimos anos, como tem percebido a sensibilização na sociedade e instituições sobre formas mais inclusivas de lidar com a diversidade?
Andrade - Depois de 20 anos trabalhando com Gestão inclusiva no mercado, na cultura e na educação, percebo que estamos correndo para fazer mudanças, mas infelizmente na direção errada. Estamos mais sensíveis à questões relativas à diversidade? Sim. Estamos mais inclusivos? Não. Embora tenhamos uma quantidade enorme de ações e programas educacionais, culturais e de acesso ao trabalho essas ações, em sua maioria, são voltadas para um grupo com características específicas e monotípicas. O problema de cursos para pessoas com deficiência, ou grupos de discussão nas empresas voltados somente para a questão LGBT, ou somente para a questão de gênero e assim por diante, é o oposto do que requer um processo inclusivo.
É preciso parar de olhar para as características das pessoas como um elemento que as define, bem como evitar diferenciá-las de forma que as marginalize. Reconhecer as diferenças deve ter o propósito de identificar as necessidades para eliminar barreiras. Cada ser humano é constituído por um conjunto de características que combinadas com a história e repertório pessoal o torna único. Eleger uma única característica para separar os indivíduos em grupos homogêneos, nada tem de inclusivo. Afinal, uma mulher negra com deficiência, teoricamente, pertenceria a 3 grupos diferentes, mas estas características combinadas geram uma especificidade que não pode ser trabalhada a não ser de forma sistêmica.
Outra questão é que a diversidade não diz respeito à peculiaridade do outro mas as diferenças que todos temos, já que a singularidade é uma premissa humana. Ver a diversidade do outro sem se colocar como igualmente diferente, é o primeiro passo para a discriminação. Ao falarmos de diversidade precisamos falar de todos nós ou continuaremos a reproduzir velhas condições de supremacia. Na inclusão, não existe eles, existe nós, as especificidades de cada um e a importância delas no desenvolvimento da sociedade como um todo.
EOnline - Quais os principais avanços que a Lei Brasileira de Inclusão (LBI) trouxe à população com deficiência? O que destacaria como um diferencial deste documento?
Andrade - A LBI, com o é conhecida, é um aprofundamento e detalhamento do que a Convenção da ONU sobre os direitos da Pessoa com Deficiência trouxe. Embora a Lei trate especificamente da diversidade funcional, ela apresenta premissas que eliminam ações excludentes e segregadoras. Ela estabelece uma abordagem que obriga as institiuições a reverem suas ações ditas inclusivas, embora estigmatizantes e segregadas, e a refletirem sobre como torna-las inclusivas a partir de referências globais.
Neste sentido, a LBI é primorosa ao estabelecer o modelo biopsicossocial como percepção correta sobre a deficiência, mudando todos os parâmetros que orientava as ações equivocadas das organizações. O modelo oposto e atualmente utilizado pela maioria, pressupõe que a pessoa com deficiência está em desvantagem por culpa da deficiência que é uma condição anormal, e que por isso o indivíduo que a possui precisa se esforçar para fazer parte da sociedade, superando suas limitações. Com o modelo médico, detalhado pela LBI, seremos levados a rever o conceito de deficiência, compreendendo que a pessoa com deficiência está em desvantagem porque construímos um mundo insensível à diversidade humana. Ao ignorarmos a deficiência como parte das características humanas, criamos barreiras à participação destes indivíduos e impedimos seu desenvolvimento como cidadão de direitos e deveres.
A LBI nos obriga a um olhar mais profissional e a reconhecer os valores e princípios inclusivos que nortearão cultura, políticas e práticas inclusivas.
EOnline - Na sua opinião, quais os maiores e próximos desafios para uma sociedade mais inclusiva? Como, de maneira individual, podemos tornar nossas relações e ambientes mais acolhedores para as diferenças?
Andrade - No Brasil, percebemos que as organizações não tratam o tema diversidade e acessibilidade com a mesma seriedade que outros temas. No geral não há nenhuma exigência técnica para a empresa ou profissional que irá atuar com essas questões. Há uma percepção de que basta pertencer ao grupo, ser ativista ou ter alguma experiência para prestar consultoria ou serviços técnicos na área. Desenvolver o hábito de construir e exigir conhecimento técnico de qualidade parece algo distante da nossa realidade.
As empresas não possuem critérios claros e objetivos de qualidade para contratar serviços e/ou avaliar os resultados alcançados. Não há uso de ferramentas e metodologias validados a nível global e que garantam os resultados qualitativos e quantitativos dos programas.
A maioria dos gestores de diversidade se apresentam como especialistas mas cometem erros grosseiros na fala e nas ações e não possuem nenhuma formação técnica específica para atuar na área. Este é outro tema complexo: muitos cursos oferecidos – a maioria inclusive – já é concebido na contramão dos valores inclusivos. Oferecendo docentes não qualificados para abordar o conteúdo ou cujo conteúdo se baseia em premissas erradas ou desatualizadas.
Para mudar o cenário atual, é preciso que cada um de nós reconheça e se comprometa com os valores inclusivos e as premissas que sustentam os conceitos de inclusão, acessibilidade e diversidade. É urgente desenvolver uma visão mais crítica e profissional que ocupe o lugar da intuição, boa vontade e cópia do que outros fizeram, de forma a enxergar a valorização da diversidade e a promoção da acessibilidade como reconhecimento de direitos e saindo da ordem da responsabilidade social e do assistencialismo.
Ou seja, para fazermos inclusão de verdade, precisamos investir em processos e resultados qualitativos e nos vermos parte da diversidade. Isso significa compreender que o outro não é diferente de mim, mas que todos são diferentes entre si. Aí sentiremos uma empatia genuína e faremos escolhas mais respeitosas e eficazes na garantia de estratégias inclusivas.
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o que: | Semana Inclusiva 2015 |
quando: |
01 a 06 de dezembro |
onde: |
Em vária unidades do Sesc SP |
ingressos: |