Postado em 13/11/2015
Denise Milan tem uma visão: as pedras são metáforas para as transformações que ocorrem nas vidas humanas. Em cima dessa visão vem construindo sua arte desde 1986. “O quartzo é para mim a metáfora de uma possibilidade de diálogo porque está presente em 90% da Terra, é parte da nossa identidade planetária comum.”
Uma das pioneiras do movimento de valorização da arte pública no Brasil, Denise acredita nas possibilidades criativas do trabalho colaborativo e vem experimentando nessa área desde suas parcerias com Ary Perez, que resultaram em obras que se espalharam pela cidade de São Paulo, em locais que vão desde o Vale do Anhangabaú até museus como o de Arte Contemporânea e o de Arte Moderna. Sua marca nos espaços urbanos atravessou o continente e chegou aos jardins do Adler Planetarium de Chicago, nos EUA. Além disso, mandalas da artista fazem hoje parte do acervo da cidade de Assis, na Itália.
Sua mais recente exposição de fotos e fotocolagens, Fumaça da Terra, uma jornada da imaginação sobre os desafios que cercam a construção do desenvolvimento, que já esteve em cartaz em São Paulo, em Chicago, e viaja agora para o Brazil Institute do Wilson Center, em Washington.
Nessa entrevista, Wendy Woon, vice-diretora do Centro de Educação Edward John Noble do Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA), e Denise Milan falam sobre a experiência de aliar arte e cidadania.
Como você descobriu que era artista?
Pensei que seria matemática, mas depois de me formar em Economia fui estudar dança na Espanha, em 1979. Desenhar passou a ser desenhar no espaço: o corpo ocupando o espaço. Estudei com grandes artistas da dança espanhola e com mestres das artes visuais.
Desde o início, os trabalhos em parceria fazem parte do seu processo artístico. Esse estilo colaborativo começou com a participação de Ary Perez, seu ex-marido?
Não sabia como resolver a estrutura dos objetos tridimensionais que imaginava. Ary me ajudava a achar soluções. Um diálogo teve início, o trabalho tornou-se participativo. Não tenho todas as respostas, gosto que as pessoas façam suas contribuições. Minha primeira exposição individual foi de colagens e fez todo o sentido para mim a ideia de fazer parte de algo que já existia: não criamos as coisas, elas já foram criadas antes e podemos todos participar do grande ato da criação. Claro, um trabalho de parceria nunca é fácil, traz tensões, mas ajuda a encontrar soluções verdadeiramente criativas.
Você nasceu em São Paulo e gerações de sua família viveram no Brasil. Que aspectos do seu trabalho trazem ressonâncias do contexto brasileiro e quais são mais universais?
Meus avós libaneses, imigrantes, como tantos antes deles, imaginavam o Brasil como um lugar para realização de sonhos e é assim que eu também vejo. Um país com imensos recursos naturais – fauna, flora, minerais e pedras preciosas. Um lugar de exuberância, que não deve ser confundida com exotismo. Apesar da magnitude do seu potencial natural, existem muitos outros aspectos que precisam ser considerados: o extermínio das comunidades indígenas, a desigualdade de oportunidades, a construção de centros urbanos que distanciam as pessoas dos valores da natureza, o desmatamento e todas as práticas movidas pela cobiça. Há que mostrar essas cicatrizes enquanto preservamos o paraíso e as maravilhas desse lugar. Compreender, não dominar. As mais belas pedras preciosas são encontradas no Brasil e meu trabalho é estudar suas geometrias e escutar o que a estrutura das pedras tem a nos ensinar.
Por que a “pedra azul”?
Os astronautas da Apollo 17, em sua viagem para a Lua, ao avistarem a circunferência inteira da Terra iluminada, exclamaram: “a Terra é uma bola azul”. Isso foi em 1972. Sabemos que a crostra terrestre é basicamente feita do que chamamos ‘pedra’. Essa pedra comum mesmo, o chão onde a gente pisa. Vivemos numa ‘pedra azul’. Imaginar essa pedra azul girando na imensidão do universo é compreender que somos parte de uma grande família, que existimos e estamos todos conectados no nosso planeta, partilhamos da mesma experiência.
Mas existe, de fato, uma pedra azul que você apresenta como elemento de ligação entre o Brasil e a África?
A pedra azul é encontrada na Bahia e na Nigéria. É chamada Granito Azul Bahia ou Pedra Azul Real. Eu usei essa conexão na instalação Améfrica (2003). Nós temos que retomar o tempo conhecido como Pangea, quando Brasil e África eram unidos. Temos que valorizar essa memória da nossa origem comum. A “Pedra Azul” é uma ponte que nos permite voltar ao tempo em que compartilhávamos um mesmo princípio. Desconhecemos nosso começo e nosso fim. Devemos partilhar essa experiência de não saber. Não se trata de nossa identidade enquanto filhos de tal pai e tal mãe, mas da nossa identidade planetária. Esse é um espaço simbólico onde podemos partilhar uma mesma linguagem. O quartzo é para mim a metáfora de uma possibilidade de diálogo porque está presente em 90% da Terra, é parte dessa origem e é uma estrutura que diz respeito a todos nós.
Além de você, muitos artistas hoje trabalham no que chamamos de “práticas sociais” e nesse sentido os meios propiciam uma interação com outras pessoas. A ideia é que a arte e os artistas podem ter um impacto poderoso e transformador na vida das pessoas. Você mencionou ter sido bastante influenciada pelo trabalho de Joseph Beuys, artista multimídia e performático alemão, cujas obras são impregnadas de conceitos humanistas, pedagógicos, filosóficos e antroposóficos. Como ele se relaciona
com seu projeto?
Penso, sobretudo, em um dos trabalhos que Beuys fez na Alemanha: uma instalação de três mil pedras e sementes para reflorestamento. A natureza me inspira muito e pela arte ensino as pessoas a inserirem a natureza em suas vidas. Através do projeto de arte-educação Espetáculo da Terra em seis comunidades carentes em São Paulo, por exemplo, percebi o que Beuys queria dizer com “escultura social”. O universo mitológico das pedras que criei, suas origens e estruturas, encontra, de fato, uma ressonância dentro das comunidades em questão. Descobrir as conexões entre as vidas dessas pessoas e as metáforas presentes em meu trabalho foi a questão central do projeto.
Você é inspirada pela estrutura do quartzo, que oferece lições de vida e ensinamentos. O que podemos aprender ao olhar para as pedras?
A escultura Entes (2005) é um exemplo perfeito. Ela tem a forma de um ovo, símbolo da gênese e transformação. Ao examinar o interior de um geodo, estrutura oca cujas paredes são revestidas de cristais de quartzo ou de ametistas, percebemos muitas camadas desde sua formação há 130 milhões de anos. Ambos os elementos que formam o geodo – basalto e quartzo – têm origem na lava vulcânica, mas suas naturezas distintas os levam a se separar. Quando o quartzo penetra a bolha de ar no magma, começa a se cristalizar e a formar uma espécie de casca protetora que funciona como barreira para que o basalto não penetre. Debaixo da casca, dentro da bolha, o quartzo irá se organizar e tornar visível sua estrutura. Em resumo, na camada exterior há o caos enquanto na camada interna, a ágata, a estrutura da matéria e sua visibilidade estão sendo definidas. É uma estrutura que podemos contemplar e aprender a reconhecer e que remonta à formação da Terra. Mesmo sem querer, observar esses fenômenos incita uma analogia com qualquer atividade ou circunstância da vida. Especialmente com processos criativos de caráter colaborativo. A narrativa original está lá e vai agregando as várias ideias. É isso que enriquece o trabalho coletivo.
Portanto esse trabalho nasceu de uma analogia com as estruturas das pedras?
O quartzo, enquanto metáfora, é meu ponto de partida. Essa visão artística me autorizou a atravessar as camadas da matéria e transformar seus estágios evolutivos em passos de conhecimento. Essa é a “linguagem das pedras”.