Postado em 13/11/2015
As pedras não são objeto morto, elas falam. Mais do que isso, as pedras até choram, como expressou o poeta latino Tito Lucrécio Caro (século I a.C), em seu poema “Da natureza das coisas”. E a artista plástica Denise Milan consegue compreender perfeitamente o discurso desses seres minerais no seu sentido mais amplo como seres que são a origem da Terra e base de nossas conexões com a natureza. Como fiel porta-voz desse universo, ela manifesta o desejo de que todos entendam o que as rochas têm a contar, convidando a uma reflexão sobre o quanto essas vozes tratam de uma rede comum da qual os humanos também são parte. Para fazer compreender a voz das pedras, Denise criou uma série de eventos, seminários, exposições e um amplo projeto de arte-educação que envolveu diversas comunidades carentes, milhares de pessoas, educadores e artistas, por uma década desde seu início.
A cabeça da artista plástica é uma usina de ideias centradas na concepção do antropomorfismo da pedra, que tem na sua origem mais primitiva o carbono, o elemento primordial que forma tudo, inclusive o corpo dos humanos (e dos animais em geral). A artista partiu desse princípio para montar o primeiro evento que, nos anos seguintes, desencadearia uma série de outras ações e culminaria em um importante processo de arte-educação.
Em 2005 intensificou-se em Rondônia um conflito entre os índios Cintas Largas e os garimpeiros que extraiam diamantes nas terras indígenas. A tensão aumentava dia a dia, o que resultou em várias mortes para ambos os lados, espancamentos e sequestros. É claro que não se pode colocar de lado o interesse comercial envolvido nessa disputa pelas riquezas que aquelas terras guardavam. Mas Denise apropriou-se do assunto de outra forma. Sua intenção ia para além da beleza da arte, ela queria ajudar a despertar uma discussão mais de fundo sobre a tolerância e a diversidade cultural. Afinal, como deve ser o comportamento do homem ao perceber-se um hóspede do planeta? “Muitas vezes os seres humanos agem como se o planeta fosse uma fonte inesgotável, e não uma pedra viva que responde ao que é feito com ela, principalmente à destruição”, comenta a artista.
Desde aquele momento, Denise assumiu um papel de egrégora – a força criativa agregadora das energias físicas, emocionais e mentais, que ela transformou em personagem de um de seus projetos, Agrégora. Desde então vem reunindo importantes colaboradores para auxiliá-la no desenvolvimento destas reflexões. Uma de suas parceiras é Olgária Mattos, filósofa, escritora e pesquisadora das ciências humanas, que captou o interesse da artista. Juntas elas desenharam e fizeram a curadoria de um evento viabilizado em parceria com o Sesc, que ajudou na formatação do seminário Gemas da Terra, no convite aos participantes, além de disponibilizar o espaço do Sesc Vila Mariana para os debates.
Na ocasião, a acolhida foi possível porque já havia se desenvolvido uma história de confiança que se estendia por mais de dez anos entre a artista e a instituição. A relação teve início em 1995, com a realização do 1º. Seminário Internacional de Arte Pública, sucedido por um 2º Seminário em 1996. Esses eventos reuniam arquitetos, empresários, historiadores, críticos e outros profissionais com o objetivo de debater a arte pública, tanto em sua perspectiva conceitual como do ponto de vista prático. Foram discutidas as definições, a evolução histórica do conceito, diferentes formas de financiamento, além de haver espaço para o relato de experiências desenvolvidas no Brasil e no exterior. O processo todo foi registrado no livro Arte Pública, publicado em 1998.
Uma década depois do primeiro encontro de arte pública, o seminário Gemas da Terra, que durou três dias, conseguiu reunir num mesmo espaço especialistas que trataram da questão da exploração da natureza, propiciando a oportunidade para que fosse vivenciado o encontro entre as culturas. Dezenas de estudiosos passaram pelo evento naqueles três dias. Nomes consagrados, como Adone Agnolin, historiador das religiões, a antropóloga Carmen Junqueira, os professores de mineralogia Sonia Maria Barros de Oliveira e Darcy Pedro Svizzero, o ensaísta Jean Galard, os filósofos Marilena Chaui e João Quartim de Moraes e o historiador da arte Jorge Coli, reuniram-se para pensar essas questões fundamentais de um ponto de vista multidisciplinar.
No encerramento dos trabalhos, cinco índios do povo Ikolen-Gavião, vindos de Rondônia, encenaram o nascimento da Terra a partir da rocha. Uma lenda desse povo conta que os homens nasceram e viveram por muito tempo dentro de uma pedra e isso foi representado por meio de uma dança circular, realizada na praça da unidade. Os participantes foram convidados a se envolverem com a cerimônia e pouco a pouco o próprio público foi se apropriando da celebração e se abrindo à possibilidade de um diálogo entre a Natureza e os seres que habitam o planeta.
Embora a arte de Denise nasça de seus momentos de contemplação do universo dos seres minerais, a obra resultante tem características interativas, que pressupõem a participação do público. “Por isso, sempre proponho performances, um ritual contemporâneo que permite às pessoas se alinharem na mesma vibração”, comenta.
O seminário considerou as relações entre o homem e a natureza, e entre homens de diferentes culturas, e despertou um processo que, no futuro, levaria a artista a refletir melhor sobre a analogia entre o ovo de pedra azul e a Terra. A pedra azul é um mineral com mais de 750 milhões de anos, encontrado tanto no Brasil quando na África, e que reforça a teoria da Pangeia, que pressupõe que os continentes um dia estiveram unidos. O encontro discutiu a aceitação da diversidade, os limites do exercício da tolerância e as questões da hospitalidade e da dissolução de conflitos.
“Tocamos na questão da proteção da natureza de uma forma praticamente inédita até aquele momento. A sociedade ainda não estava bem preparada para isso, foi algo inovador, que pode ter pautado muitas das discussões seguintes, inclusive as atuais”, conta Olgária Mattos.
O livro Gemas da Terra – Imaginação estética e hospitalidade, organizado por Denise e por Olgária (Edições Sesc) foi publicado em 2012 e traz a memória das discussões que ocorreram naqueles dias, tendo por objetivo ampliá-las.
Gemas férteis
Os desdobramentos desse evento mostraram como a pedra, aparentemente inerte e morta, pode ser rica e fértil. As Gemas da Terra frutificaram e, no ano seguinte, foi concebido o DVD Ópera das Pedras – Primeiras vozes. A Ópera foi inspirada no mito de criação dos índios Ikolen Gavião, de Rondônia, e junta passado e futuro, tentando encontrar soluções para problemas que o Brasil precisava encarar naquele momento, e que infelizmente permanecem atuais, como a exploração de ricas minas que existem nos subterrâneos das terras das nações indígenas.
A montagem começou com uma equipe de jovens cineastas que trabalharam diretamente com Denise. À medida que o projeto foi ganhando corpo, diversos artistas foram se agregando, como o músico Marco Antônio Guimarães, a escritora Irene Machado e o artista Ary Perez. “Meu estúdio se transformou em uma caverna, uma espécie de laboratório, para permitir a realização da Ópera das Pedras – Primeiras Vozes, conta Denise.
O DVD foi lançado pelo Selo Sesc.
A obra expandiu-se no tempo e no espaço, com uma teia de relações e projetos inusitados. Nos anos seguintes, Denise criou as instalações Entes Pétreos, Cenas Pétreas e Olho Quartzo, que circularam nas unidades do Sesc Pinheiros, Araraquara e Santo André.
A discussão saltou do DVD para o palco. Ópera das Pedras – Espetáculo da Terra, encenada em 2010 no Sesc Ipiranga, foi o passo seguinte nessa trajetória de Denise de se apropriar do mundo e do imaginário das pedras para transcendê-lo e transformá-lo em algo maior, tanto em tamanho quanto em significado. Tratava-se de uma peça experimental na qual artistas interpretavam composições feitas especialmente para o espetáculo por André Mehmari, Badi Assad, Carlinhos Antunes, Clarice Assad, Marco Antônio Guimarães e Naná Vasconcelos. Voltado para um público adulto, o espetáculo fazia uma reflexão sobre a vida humana a partir de um universo mítico.
Denise recorreu a uma dramaturgia experimental para romper com o formato clássico da ópera, como ao misturar música erudita à popular. Além disso, no centro da história, as pedras brilhavam como protagonistas. Agrégora, uma ametista de 130 milhões de anos, era o personagem principal, que se envolveu em um embate de épicas proporções, para revelar a transformação da matéria, do magma líquido que preenche as camadas mais profundas da Terra até a pedra de quartzo. As metamorfoses do quartzo ao longo de sua trajetória desde a separação do basalto permitem uma analogia com a evolução de cada indivíduo. O drama da matéria serve para exemplificar a luta entre o bem – representado pelo quartzo – e o mal – simbolizado pelo basalto. A partir daí é possível fazer uma analogia com a vida, seus sucessos, fracassos, relações de amor e de ódio.
Como parte do evento, a instalação Coração de Ametista, que contou com a curadoria de Cléo Miranda, trazia efeitos multimídia que faziam um convite ao público para percorrer as camadas da pedra, sempre indo mais fundo, até penetrar no universo da matéria cristalina.
O projeto não era contido em si mesmo e em seu interior foi sendo gestado algo de maior alcance, que iria afetar não apenas o público comumente apreciador das artes plásticas, mas também aqueles que viviam confinados em uma realidade bem distante do cenário artístico legitimado pelas instituições. O Espetáculo da Terra ganhou uma dimensão muito maior que a do palco e transformou-se em um projeto de arte-educação que construiu junto a várias comunidades carentes uma oportunidade de discutir assuntos tão relevantes e caros ao ser humano. A arte pouco convencional de Denise ofereceu um suporte adequado para uma experiência nesse sentido graças a sua vinculação com valores e ideias contemporâneas, como ecologia e a preocupação com o ambiente.
No seu primeiro ano, em 2010, o Espetáculo da Terra envolveu os moradores da comunidade de Heliópolis, que abrigava cerca de 100 mil habitantes e 20 mil famílias, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Mais da metade dessas famílias vivia em condições precárias de saneamento e segurança.
A GÊNESE DO QUARTZO
Denise explica a visão que deu origem à Ópera, aos cortejos e ao Espetáculo da Terra: nas camadas derretidas de rocha que circulam no interior da Terra, os mais diferentes minerais se misturam. Quando esse material vem à tona na forma de lava, a tendência é que esses minerais se separem e preencham as cavidades que vão se formando dentro de bolhas de ar. Basalto e quartzo disputam esses espaços. Os líquidos se solidificam. Quando é o quartzo que consegue entrar na bolha, constitui-se uma estrutura no seu interior com uma casca amorfa, revestida por microcristais de ágata e, finalmente, preenchida pelos cristais de quartzo.
“A ópera representa o drama da matéria. O quartzo simboliza tudo o que é positivo, imortal. Já o basalto, instável, simboliza a mortalidade, aquilo que se desfaz”, conta Denise. Na natureza, o processo de transformação do quartzo envolve várias etapas. Denise se inspirou nelas e criou personagens representativos de cada uma, poderosas alegorias de sentimentos humanos, como o medo, a confusão, a necessidade de ordem, a luta contra as sombras e os enganos. É dos desafios e das aventuras de Agrégora, Solser, Malassombras, Konfuso, Ordenatrix, Violetalux, que se alimenta o Espetáculo da Terra e a imaginação de adultos e crianças.
“É importante lembrar que basalto e quartzo coexistem tanto na natureza quanto em minha obra. Não formam uma dualidade. Apesar de divergirem, eles se complementam e coexistem, integrados por toda eternidade”, completa a artista.