Postado em 11/11/2015
Por: CARLOS JULIANO BARROS
Aos 80 anos de idade, Juca de Oliveira (nascido José de Oliveira Santos) esbanja uma vitalidade invejável. A disposição é tanta que ele resolveu encarnar sozinho nos palcos seis personagens de Rei Lear, uma das obras mais complexas do dramaturgo inglês William Shakespeare. Mas a gesticulação excessiva e a fala empostada também denotam um Juca de Oliveira indignado. Ele se revolta com a situação política e econômica do Brasil, em especial com o petrolão, escândalo que inspira a próxima peça escrita por ele. Também lamenta a pobreza da cena cultural artística brasileira e destila veneno contra a Lei Rouanet, que garante benefícios fiscais às empresas que investem em teatro e cinema. “Ela é um desastre”, sentencia.
Sem dúvida, Juca de Oliveira é um dos principais nomes das artes dramáticas do país, com mais de 30 telenovelas e 60 peças de teatro no currículo. Hoje, ele divide seu tempo entre as cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro, onde grava para a TV Globo, e a fazenda de café do século 19 em que efetivamente se sente vivo com sua esposa, no município de Itapira (SP). É lá que Juca de Oliveira, natural de São Roque (SP), continua cultivando suas “raízes caipiras”, como ele próprio define.
O ator e autor recebeu a reportagem de Problemas Brasileiros para uma entrevista exclusiva em seu apartamento no bairro paulistano dos Jardins. O prédio – ironicamente apelidado de “retiro” – também é a casa de sua colega Beatriz Segall, e já chegou a abrigar outro peso-pesado do teatro nacional, Paulo Autran. Durante a conversa, Juca de Oliveira também fez prognósticos sobre o futuro das produções audiovisuais. Fã de “House of Cards”, estrelada pelo ator norte-americano Kevin Spacey, ele acredita que os seriados são o caminho a ser seguido.
Problemas Brasileiros – No filme Ricardo III, o ator e diretor Al Pacino faz uma profunda reflexão sobre as dificuldades e as peculiaridades da montagem da obra de Shakespeare. O seu espetáculo mais recente, Rei Lear, também é do dramaturgo inglês. Houve alguma preparação especial?
Juca de Oliveira – Para encenar Shakespeare, você sempre tem que fazer uma preparação especial. Preparação vocal e física porque é necessário suportar o baque. A linguagem é extremamente elaborada, em versos decassílabos e heptassílabos, e isso pressupõe um trabalho muito intenso com o texto, sob pena de o espectador não acompanhar. A minha visão como ator é que a linguagem tem que ficar coloquial, apesar de não ser absolutamente desta maneira. Ela tem que ser inteligível. E isso pressupõe um preparo vocal muito grande para que chegue ao espectador de forma digerível.
PB – Você faz seis personagens no espetáculo. Encenar essa peça foi um desafio?
Juca – Rei Lear é considerada uma das mais difíceis e destacadas peças de Shakespeare – senão a mais importante de todas, como diz Peter Brook [diretor britânico de teatro e de cinema]. Decididamente, foi um enorme desafio, quase uma audácia, uma loucura. Começamos a partir de uma tradução do Geraldinho Carneiro [Geraldo Carneiro, roteirista e teatrólogo], que é um grande poeta, e de uma análise que fiz junto com o Elias Andreato, que é o diretor da peça, até chegarmos à conclusão de que deveríamos ir à frente. Mas antes disso houve um período de desespero total, um momento em que eu até sugeri que o projeto fosse cancelado pela complexidade da trama. O ator, sobretudo depois de certa experiência, tem uma visão clara de que o seu contato é com o público. Se não houver essa interação, essa empatia, o teatro não acontece. Então, quando você está lendo o texto, você já sabe nesse momento se funciona ou não, se a trama leva a uma compreensão. Mas, se eu não estava entendendo, como é que o público iria entender? Então, decidimos interromper. Foi um caos. E esse pânico me levou a trabalhar muito. Fiquei uns três dias praticamente sem dormir, procurando uma solução. Quando cheguei ao encontro entre o Rei Lear e sua filha Cordélia, na cena final da vida de ambos, em que há uma espécie de reconciliação, concluímos que, se parássemos naquele ponto, daria para fazer. Mas, para encerrar naquela cena, teríamos de obter a anuência do Geraldinho Carneiro, o responsável pela adaptação. Ele concordou e nós, então, caminhamos. O resultado foi absolutamente inesperado, incrível, um grande sucesso. Mas, sinceramente falando, não tínhamos a menor noção do que iria acontecer.
PB – Sua carreira sempre teve um importante componente político, e isto desde os tempos do Teatro de Arena. Peças como A Flor do Meu Bem Querer, Happy Hour e Caixa Dois geraram polêmica ao colocarem em pauta – de forma cômica – assuntos bastante atuais, como a corrupção. É mais difícil fazer teatro com “pegada” política?
Juca – Para mim, o tema político é um tema ético. Escrevo críticas políticas porque o problema fundamental é a questão da integridade do ser humano. Agora mesmo, estou trabalhando em uma peça sobre o escândalo do petrolão, e fico perplexo. É uma coisa chocante porque você aprende desde pequeno que o dirigente político tem que ser ético porque ele está tratando da coisa pública. Então, isso me deixa indignado e, por isso, escrevo sobre o tema. O problema da comédia é uma circunstância muito curiosa. A primeira obra sobre técnica de teatro é a Poética, do Aristóteles. Lá você tem a definição do herói trágico: é uma personagem tão cumulada de virtudes, uma pessoa tão perfeita, que prefere morrer a viver sem honra. Então, veja: nós temos um ex-chefe de Estado que é o Lula. Ele comandava a nação, era o presidente da República. De repente, durante seu mandato, descobriu-se que vários de seus assessores estavam envolvidos em um crime muito grave que foi batizado de mensalão. O que competia ao chefe de Estado? Investigar até o último grau, descobrir o que de fato acontecia e demitir as pessoas. No entanto, o que é que ele fez? Bloqueou, negou. Na medida em que ele não aceita a punição dos verdadeiros responsáveis pelo crime, ele se torna uma personagem de comédia. Voltamos a Aristóteles: ele diz que o cômico é o exato oposto do homem virtuoso. Por isso é que existe aquele Pixuleco [boneco inflável gigante representando o ex-presidente Lula]. Todo mundo ri. Por quê? Porque ele é defeituoso.
PB – Que avaliação você faz do atual momento político do país?
Juca – Estou desencantado. Não tenho uma posição ideológica: não sou nem de esquerda, nem de direita. Não sou tucano, não sou petista, não sou nada. Apenas analiso a situação. E o fato é que, de repente, o Brasil quebrou, fomos à bancarrota. Destruímos uma das maiores indústrias petrolíferas do mundo. Foi um assalto inacreditavelmente impressionante. Como é que se permitiu que chegássemos a esse ponto? Para mim, é óbvio que o Lula sabia. O braço-direito dele, o José Dirceu, está aí pela segunda vez indiciado. Apesar de eles terem sido condenados, presos, continuaram roubando, a falcatrua continuou a níveis assustadoramente grandes. Mas, curiosamente, ninguém sabe. A Dilma Roussef era presidente do conselho da Petrobras e ministra das Minas e Energia, e não sabia. Então, quando você fala da Dilma, você entra em comédia. É um problema técnico de composição dramática. Voltamos ao Aristóteles. [Risos]
PB – A prisão inédita de políticos e dos principais empreiteiros do país gera algum tipo de esperança?
Juca – Sim, é ótimo! Nunca empreiteiros do nível da Odebrecht e da Camargo Corrêa foram presos. Hoje, estão encarcerados. Isso é absolutamente novo e nos dá muita esperança.
PB – Você já militou no Partido Comunista. Como se define politicamente hoje?
Juca – Sou um democrata. Sou pela liberdade absoluta de expressão, contra a censura. Quero poder dizer o que eu quero.
PB – Você é tido como uma pessoa de superstições...
Juca – Na verdade, não sou supersticioso. Sou religioso em relação ao teatro. Eu cultuo as musas do teatro: Melpômene e Tália. Na Escola de Arte Dramática, onde estudei, lemos praticamente todos os gregos e aprendemos o caráter sacerdotal do ator. Quando você tem consciência de que está no palco dizendo coisas que estão atingindo as pessoas, é um negócio anímico. A sua sensibilidade começa a responder, é um negócio irracional. Para mim, as musas do teatro que nos protegem sempre estiveram presentes. Quando aconteceu o golpe militar de 1964, o Teatro de Arena foi fechado e eu fugi com o Gianfrancesco Guarnieri para a Bolívia. Depois de certo tempo retornei e arrumei um trabalho na TV Tupi. Depois, convidado pelo Boni, transferi-me para a Globo. Trabalhei na televisão porque fui obrigado, tangido pela ditadura. Mas eu queria voltar para o teatro. Só que eu era um dos principais. Além de ganhar um salário muito bom, eu era um galã. Tinha feito “Saramandaia”, coisas muito importantes como protagonista com Sônia Braga e Regina Duarte. Então, como eu poderia pensar em voltar para o teatro? Muita gente dizia: “vai morrer de fome”. Eu tive uma ajuda muito grande da minha mulher. Geralmente, as mulheres querem que você continue na televisão porque dá muito prestígio. Mas a minha me apoiou. Nós tomávamos whisky, o que naquele tempo não era tão acessível. E ela me disse: “Você não precisa tomar whisky. Você pode tomar pinga”.
PB – Esse retorno deu certo?
Juca – Eu entrava no teatro às 19h e saía às 23h. Então, percebi que tinha um enorme período de tempo livre. Aí, resolvi ressuscitar um antigo desejo: ser autor. Fui estudar e escrever teatro. A minha primeira peça, Baixa Sociedade, fez um baita sucesso. Minha segunda peça, Motel Paradiso, fez um sucesso maior ainda. E então começaram as críticas boas. Eu ganhava muito bem no teatro. E não tinha Lei Rouanet. As pessoas iam ao teatro semana após semana. Era terça, quarta, quinta e sexta. Sábado e domingo havia duas sessões. Teatro sempre lotado. E eu comecei a ganhar bem, mais até do que eu recebia na televisão. Foram as musas. Elas foram me orientando.
PB – No Brasil existe produção de qualidade com esse enfoque político que você imprime a suas peças?
Juca – Algumas pessoas trabalham muito seriamente no teatro. O Antônio Fagundes é uma delas. E é curioso porque nem da Lei Rouanet ele se beneficia. Ele faz com recursos próprios, o que é absolutamente notável e um exemplo a ser seguido. Mas não temos um teatro de análise política. Isso acontece porque o teatro brasileiro sofreu recentemente uma debacle muito forte. Na verdade, estamos numa fase terrível da cultura brasileira. O teatro não está bem, o cinema está péssimo. Em termos de qualidade, de produção, de quase tudo. E isso está acontecendo há bastante tempo.
PB – A que se deve isso?
Juca – Uma das principais responsáveis por essa atual fase do teatro brasileiro e provavelmente do cinema, embora não seja a minha área, é a Lei Rouanet. Ela é um desastre. Por quê? Ela destina uma parte do imposto que as empresas pagariam para que essas mesmas empresas façam o investimento em obras culturais. O primeiro erro, a meu ver, é que existe uma ênfase excessiva nas obras teatrais e cinematográficas. Mas cultura não é isso apenas. E mesmo no teatro há uma crise. Hoje os espetáculos, é inacreditável, entram em cartaz e depois de dois meses, no máximo, saem. A minha peça Meno Male ficou cinco anos e meio em cartaz, sem parar. Caixa Dois ficou quatro anos. Motel Paradiso ficou três anos e meio.
PB – As suas peças eram exceções?
Juca – Não eram exceções. Esse é o ponto: assim como eu, Cacilda Becker, Paulo Autran e Walmor Chagas ficavam em cartaz por muito tempo. Isto num período político e econômico infinitamente mais difícil do que o que estamos vivendo agora. Por que hoje as peças ficam em cartaz por dois meses no máximo? O grande problema é que a Lei Rouanet discriminou os atores, o teatro, os textos. Você só consegue fazer uma peça se tiver condições de estimular uma empresa a investir, e ela quer usar você como divulgador do produto dela.
PB – A cultura brasileira ficou refém do departamento de marketing das empresas?
Juca – Sim. E quem são as pessoas que conseguem patrocínios? De um modo geral, são os principais atores e atrizes. E são evidentemente aqueles que estão na televisão. Há atores que preferem o teatro, mas têm que fazer televisão para ganhar visibilidade. E por que as peças ficam dois meses em cartaz e não dois anos? Por que não existem quinhentas peças importantes em cartaz, como é o caso de Buenos Aires? Como existe a Lei Rouanet, tudo ficou astronomicamente caro. Nós sempre fizemos teatro de forma cooperativada, artesanalmente, e isso acontece no mundo todo. Você produz um espetáculo e investe alguma coisa. E por que você investe? Porque o teatro tem que ser feito com uma enorme paixão. O Antônio Abujamra dizia: “roube, mate, mas faça a peça”, entende? Hoje, a peça fica em cartaz dois meses porque vai gastar R$ 300 mil para ser lançada. Eu fiz agora o Rei Lear e gastei R$ 300 mil para anunciar no jornal, na rede social. Depois, fica difícil continuar porque é necessário manter a divulgação. A menos que você tenha um brutal sucesso, como é o caso da Denise Fraga, com Galileu Galilei, porque o próprio espetáculo faz o boca a boca. Porém, como há a Lei Rouanet, todo mundo puxa lá para cima os custos. No Rei Lear, por exemplo, fizemos uma tomada de preços para saber quanto custaria a produção e uma cenógrafa famosa – não vou dizer o nome dela – deu um número: R$ 190 mil por um cenário. Como era apenas uma roupa preta, não tinha nada de excepcional, tanto que custava, na verdade, uns R$ 600 [risos]. Outro problema gravíssimo: a cultura ficou concentrada no eixo Rio-São Paulo.
PB – À medida que apoiar ou não um filme ou uma peça de teatro é prerrogativa de uma empresa, isso acaba tolhendo a própria questão autoral das obras?
Juca – Claro! A empresa só vai investir na possibilidade de um bom marketing. “Quero grandes atores, os protagonistas da novela das nove”. Ela não vai investir num ator excepcional que está numa peça alternativa. Então, espetáculos que antigamente surgiam não surgem mais porque o mercado não aceita. Quando eu, Juca de Oliveira, falo “vou investir R$ 300 mil do meu bolso”, o meu objetivo é que a peça fique em cartaz por um longo tempo para que eu possa reaver meu investimento e ter lucro. Não quero que ela fique apenas dois meses porque vou perder o dinheiro aplicado. É a isso que estamos condenados: fazer peças de dois meses, a grande maioria sem grande importância, “comediazinhas” fúteis, frágeis e frívolas.
PB – Como você avalia a aura de celebridade que se formou nos atores consagrados do Brasil? Isso o incomoda?
Juca – É natural que aconteça. De um modo geral, hoje o aspirante a ator tem como projeto inicial a televisão. Porque ele vê televisão em casa, todo mundo fala dos atores, eles têm prestígio, fazem comerciais. Era diferente no nosso tempo, em que os atores iam do teatro para a televisão. Toda a minha geração foi formada no teatro, na Escola de Arte Dramática. Depois, o golpe de 1964 inviabilizou o teatro e então os autores, como Dias Gomes e Gianfrancesco Guarnieri, encontraram uma forma de subsistência profissional na televisão, e ela ganhou impulso com os grandes autores do teatro. E na esteira dos autores vieram os atores. Agora, se você tem uma formação, se você tem a consciência do porquê você é ator, você não vai se atrapalhar. A função social do ator é melhorar o homem, é torná-lo mais afetivo, mais generoso, mais solidário. Isso porque o teatro nasce da religiosidade. O primeiro ator é o sacerdote. Esse ator tem consciência de qual é a sua função, que não é ganhar dinheiro. Então, o que acontece? Os meninos começam na “Malhação” e são imediatamente colocados na mídia. E aí nasce o deslumbramento. O deslumbramento é uma visão terrível porque é uma falta de consciência de quem você é, do seu tamanho. Se você for excepcional, é justo que você seja incensado, que você seja o que eles costumam chamar de “celebridade”.
PB – Como você...
Juca – Não, eu não sou celebridade. Aí é que está a diferença: tenho consciência absoluta do meu tamanho. O grande problema de se considerar uma celebridade é que você perde consciência de quem você é. Você perde a identidade porque ela não está mais em você. Ela está no outro. É uma tragédia porque na medida em que vai ficando menos popular você vai entrando em crise brutal. E, na medida em que passa o tempo, você não é mais o protagonista, o galã da novela das nove. Eu estava lendo a entrevista de uma atriz, não posso dizer o nome dela, e aí o entrevistador perguntou: “Você viaja muito a trabalho. De que lugar você gosta mais? Paris, Londres, Nova York?”. E ela respondeu: “Gosto muito de Londres, mas sabe o que acontece comigo? Dez minutos depois eu quero voltar. Porque lá ninguém me conhece”. A única coisa que o ator deve buscar é o caráter anônimo da existência. Se você estiver em lugares em que não o reconhecem, é uma delícia. Você fica absolutamente à vontade. No caso dessa atriz, ela não tinha identidade sem o outro. Entendeu o nível da tragédia?
PB – Vários canais estão produzindo séries na internet, em plataformas como Youtube e Netflix. Essas produções são uma alternativa de fato à televisão e aos grandes estúdios de cinema?
Juca – As séries são o futuro, aquilo que está acontecendo de excepcional atualmente. Eu adoro “House of Cards”, por exemplo, feito pelo Kevin Spacey. Ele interpreta um gângster, um assassino que quer tomar o poder. A ambição dele é desmesurada. Ele disse uma coisa que achei genial: para construir a personagem, ele se inspirou no Ricardo III, do Shakespeare. Olha que coisa linda e culturalmente importante! Você já está no campo da “elevação cultural” e não da “extensão cultural”. Não é entretenimento apenas. Você já está naquilo que é a função do teatro ou do grande cinema: a elevação cultural. A televisão é entretenimento, é extensão cultural. Ela não tem nem a função e nem a obrigação de ser elevação cultural. O caminho é evidentemente a série filmada.