Postado em 28/10/2015
por CHRISTIAN DUNKER
Psicanalista e professor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), Christian Dunker é um dos coordenadores do Laboratório de Estudos em teoria social, filosofia e psicanálise da USP. Em 2012, recebeu o prêmio Jabuti de melhor livro na categoria Psicologia e Psicanálise com Estrutura e Constituição da Clínica Psicanalítica (Annablume, 2011). Neste ano, lançou o livro Mal-estar, Sofrimento e Sintoma: Uma Psicopatologia do Brasil entre Muros (Boitempo, 2015), no qual une teoria social e psicanálise para tratar de como a privatização do espaço público transforma a própria vida em formas de condomínio, com seus regulamentos, gestores e muros. A seguir, os melhores trechos do depoimento de Dunker, no qual ele fala sobre segregação, cultura e sociedade.
Christian Dunker esteve presente na reunião do Conselho Editorial da Revista E no dia 17 de setembro.
LÓGICA DO CONDOMÍNIO
Em 1963 aparece a primeira lei dizendo que é possível construir condomínios e em 1973 ocorreu a construção de Alphaville. O nome é uma homenagem a um filme de 1965, de Jean-Luc Godard, que mostra uma cidade que funciona perfeitamente desde que não se usem palavras que remetam a emoções e a sentimentos. Esse é o nome do nosso primeiro condomínio, um nome irônico. Depois da construção dele, o grande sonho de consumo da classe média passa a ser viver em um condomínio, mas não por causa de segurança. Isso veio depois.
O condomínio oferece tudo. Os empregados domésticos passam a vir de uniforme, ficam invisíveis, e as pessoas podem viver em uma sociedade planejada, onde tudo é, digamos assim, perfeito. Na versão americana, isso tinha algo essencial, que era vender a ideia de que seria possível recuperar o espírito perdido de comunidade, que implica uma pequena sociedade multicultural, onde há negros, latino-americanos, asiáticos.
Os nossos condomínios usavam a mesma retórica, mas sem essa ideia. Era uma adaptação funcional que, no fundo, estava estabelecendo uma lógica de segregação. Tudo aquilo foi planejado, desde o muro que não reconhece o que está lá fora até a figura do síndico, que é o simulacro do político. A promessa era que, se tudo fosse funcional na sua vida, você seria feliz. O resultado é que, 20 anos depois, os condomínios começam a apresentar problemas insuspeitos: violência exagerada entre condôminos e hipertrofia de regulamentos, por exemplo, realizando a civilização asfixiante da Alphaville do Godard.
NARRATIVAS SOBRE O SOFRIMENTO
O livro [Mal-estar, Sofrimento e Sintoma] retrata como os condomínios reforçam duas narrativas sobre o sofrimento. A primeira é que o mal vem de fora. A segunda é que a felicidade é uma questão de leis, e que assim tudo funcionaria. Se não funcionasse, o único antídoto seriam leis mais duras, fortes e radicais, até que a lei seja torcida a ponto de mostrar sua impotência em produzir felicidade. Afinal, a lei foi feita para evitar o pior, e não para criar o melhor.
Isso se espalhou para além dos condomínios concretos, nos shopping centers, por exemplo, que também são uma espécie de condomínio. O Brasil gosta de shopping center, criam-se filhos no shopping. Não é um lugar de compras, é um lugar de lazer, aonde você vai para não fazer nada. Além disso, há muros invisíveis. Basta ver os rolezinhos [encontros realizados em shoppings e locais públicos da cidade reunindo jovens, principalmente da periferia, e que ganharam repercussão em 2013] para perceber que tem chancela, catraca, discriminação.
A mesma lógica dos muros é a das prisões. O Brasil tem a quarta população carcerária do mundo, onde também existe a lógica do condomínio. E anterior a esses três formatos nós temos a favela, que também é um espaço regido por síndicos, com muros invisíveis e que segue uma lógica de segregação.
SITUAÇÃO DE MAL-ESTAR
Participei do grupo que fez propostas de cultura para a gestão Haddad [Fernando Haddad, atual prefeito de São Paulo]. Nessas conversas, apareceu uma experiência muito interessante que diz respeito à ideia de que a cultura está no centro. A prefeitura bolou um sistema de ônibus que levava pessoas até o Theatro Municipal. Fizeram pesquisas na periferia perguntando se as pessoas estavam interessadas, no que estavam interessadas, quais seriam os melhores dias, horários etc. Chegou a hora e não funcionou. O público foi muito menor do que se esperava.
Voltaram então para a periferia, fizeram perguntas mais sensíveis e receberam respostas das pessoas dizendo que não sabiam como se vestir. As pessoas não iam por medo de, apesar de estarem lá, serem segregados e viverem uma situação de mal-estar. Eles preferiam não ir a ter que se confrontar com esse tipo de expectativa. Então a gente esquece que o público precisa se apropriar dos meios, não só do fim.
Nas políticas culturais a gente se concentra muito na qualidade do objeto, mas esquece que o público não é só passivo. Tenho pessoalmente feito o que posso e chamado pessoas para, por exemplo, assistir a um filme e debatê-lo depois, ouvir o que os outros têm a dizer sobre o filme. O mero consumo de experiências estéticas não resolve isso. Tem que ter algo que venha do público.