Postado em 28/10/2015
Nas últimas décadas, a chamada família tradicional – composta por um homem, uma mulher e seus respectivos filhos – passou a conviver com diversas formações. Hoje, é cada vez mais comum o surgimento de famílias monoparentais, homoparentais e multiparentais, entre tantas outras. Será que a lei brasileira está pronta para acolher essas famílias? Como a sociedade deve se adaptar a esses novos arranjos? Discutem o tema o psicólogo e psicanalista Paulo Roberto Ceccarelli e o presidente nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família, Rodrigo da Cunha Pereira.
Normalidade e ficção
por Paulo Roberto Ceccarelli
As últimas décadas têm sido marcadas por profundas mudanças sociais, cujas origens remontam à Revolução Industrial no século 18, passando pela chamada “revolução sexual” dos anos 1960. Fortemente apoiadas nos movimentos feministas, as repercussões dessas mudanças nas relações homem/mulher foram profundas: a liberação, em alguns países, do aborto, o morar juntos sem que as pessoas envolvidas fossem casadas, as relações homoafetivas e o aumento exponencial de separações, entre outros cenários, passaram a integrar a paisagem social.
As reações a essa “nova ordem” foram imediatas: falou-se do fim da família, da decadência dos costumes e da moral. A mulher que trabalhava fora, e que tinha acesso à pílula, estaria mais exposta às tentações de relações extraconjugais. Previam-se problemas psíquicos terríveis para os filhos de pais separados.
Entretanto, quando olhamos para trás e reavaliamos os temores das décadas precedentes, constatamos que nada de dramático aconteceu: as famílias continuam compondo-se e decompondo-se. Os filhos e filhas de casais separados estão bem, em alguns casos melhores do que aqueles cujos pais não se separam.
Na atualidade, um dos grandes debates gira em torno das chamadas novas organizações familiares – ou novas famílias, novos arranjos familiares –, enfim, trata de ligações afetivas entre sujeitos nas quais o exercício da parentalidade não responde aos padrões tradicionais: famílias monoparentais, homoparentais, adotivas, recompostas, concubinato, temporárias, produções independentes, embriões congelados, procriação artificial, barriga de aluguel, doador de esperma anônimo e, mais cedo do que se espera, a clonagem. Essas novas organizações familiares têm suscitado questões tais como: as crianças criadas por apenas um dos genitores (às vezes, o outro é totalmente desconhecido) ou aquelas criadas por um casal do mesmo sexo terão necessariamente problemas de subjetivação? Ou seja, a falta de um dos genitores – monopaternidade – ou a presença de duas pessoas do mesmo sexo – homopaternidade – terão repercussões particulares nos processos identificatórios e, por conseguinte, na organização psíquica do sujeito?
Na organização familiar tradicional, os papéis do homem e da mulher eram estanques: o pai, o “cabeça da família”, o provedor, aquele que sempre tinha a última palavra, trabalhava fora, dirigia o carro e passeava com a família nos finais de semana. A mãe, a “rainha do lar”, ficava em casa cuidando de tudo – da comida, da faxina, das crianças... –, para que o bem-estar de todos e o andamento do lar fossem os melhores possíveis. Ainda hoje, esse modelo de organização familiar continua servindo de referência nas discussões sobre a família e seus descaminhos, como se ele fosse o único capaz de sustentar a ordem social vigente e de produzir subjetivações sadias, pois é reflexo de uma ordem “natural”.
Estudos antropológicos nos informam que as relações genitor/pai e genitora/mãe não são universais, e que os modelos de família são socialmente construídos, não existindo um modelo de filiação único: em cada cultura, dentro de um determinado momento sócio-histórico, produz-se um modelo de família que é apresentado como natural. Com isso, determinam-se as posições dos homens e das mulheres no tecido social e nas relações de trabalho. Todo modelo de família é tributário da ordem social que o produz. Ordem essa que sustenta o discurso ideológico gerador de poder, o qual apresenta a família não como um constructo social arbitrário e convencional, mas como algo universal e imutável, e por vezes sagrado.
A variedade dos arranjos familiares e as inúmeras formas de atribuição dos lugares e dos papéis simbólicos de “pai” e “mãe” são amplamente documentadas pela “história da família”, fazendo com que o parentesco seja um fenômeno histórico e contingente e não uma invariável. Não é a proximidade genealógica, ou a consanguinidade, que determinará a filiação. O denominador comum em todos os arranjos familiares – o que inclui os homoafetivos – é o lugar que o bebê ocupa no imaginário, e na circulação do desejo, de quem acolhe a criança quando de sua chegada ao mundo.
Toda discussão sobre família vai, necessariamente, questionar os fundamentos da ordem social; logo, as relações de gênero e a interação dos grupos. Muitas vezes, tal questionamento é sentido como uma ameaça à estabilidade social, o que conforta ainda mais a ideia do caráter imaginário dessa ordem: se fosse fixa sem nenhuma possibilidade de mudanças, não seria tão facilmente ameaçada.
As famílias homoafetivas abalam a hegemonia do modelo tradicional de família, por proporem novas possibilidades de ligações afetivas. Para muitos, romper com a ordem convencional produz uma perda de referências, por vezes uma “crise identitária”. Entretanto, a história nos ensina que a humanidade sempre esteve em “crise”: por serem sempre construções tributárias do momento histórico-político que as produz, as referências sintagmáticas que utilizamos para decompor e recompor o mundo estão em constante movimento. Ora, o que muda é o modo de “ler o mundo”, cuja consequência é um questionamento da ordem vigente, abrindo espaço para novas organizações familiares.
O fato de um homem e de uma mulher viverem juntos e terem filhos não significa que formem uma família. Conhecemos diversos arranjos nos quais os membros se sentem em família sem, contudo, terem ligações sanguíneas, como aquelas que agregam filhos de uniões anteriores. O que define uma família são os investimentos afetivos que carregam correntes afetuosas e agressivas: não é raro uma família ser marcada pela rivalidade entre os seus membros, pelo ódio entre os irmãos, pelo ressentimento para com os pais.
A clínica infantil é rica de exemplos nos quais o problema apresentado pela criança traduz a grande confusão dos pais quanto a seus respectivos papéis, o que pode, consequentemente, gerar uma indefinição do lugar da criança como filho ou filha. Temos ainda situações nas quais um dos pais, senão os dois, não participa, às vezes nem mesmo existe, na vida da criança. E, nem por isso, essa última apresenta um problema particularmente dramático.
Isso significa que nascer da união de um homem com uma mulher não basta para ser filho, ou filha, daquele homem e daquela mulher. Ou ainda, colocar uma criança no mundo não transforma os genitores em pais. O nascimento (fato físico) tem que ser transformado em filiação (fato social e político), para que, inserida em uma organização simbólica (fato psíquico), a criança se constitua como sujeito.
Cada modo de filiação – homopaternidade, adoção, monopaternidade, famílias tradicionais e toda outra forma que pudermos imaginar – terá a própria configuração de angústia. Mas, do ponto de vista da constituição do psiquismo, não temos, a priori, nenhuma evidência para dizer que um modelo é mais ou menos patogênico do que o outro.
Não existe uma forma de organização familiar ideal que, inequivocamente, garantiria um desenrolar mais sadio para a constituição do sujeito. Se do ponto de vista social e legal as normas que definem “família” são relativamente bem estabelecidas, do ponto de vista psíquico, as famílias são sempre construídas e os filhos sempre adotivos, pois o que organiza uma família são os laços afetivos.
Os novos arranjos familiares não trazem nenhuma novidade e muito menos ameaças em termos de subjetivação: as coordenadas que balizam as construções subjetivas não levam em conta o sexo anatômico de quem cumpre a função materna/paterna e não seguem um modelo único.
Finalmente, não podemos nos esquecer de que a maioria quase absoluta dos desvios de conduta, comportamentos antissociais, perversões, delinquência, marginalidade, sociopatias, drogadicção, enfim, as mais diversas modalidades do sofrimento psíquico, foram frutos do modelo tradicional, composto por casais heterossexuais. No mínimo, duas reflexões se impõem: o sexo de quem se ocupa das crianças não traz nenhuma garantia. E, em segundo lugar, a família tradicional como produtora de “normalidade” é uma mera ficção.
Paulo Roberto Ceccarelli é psicólogo, psicanalista, doutor em Psicopatologia fundamental e Psicanálise e pós-doutor pela universidade Paris 7 – Diderot. É professor e orientador de pesquisas do mestrado de Promoção de Saúde e Prevenção da Violência/MP, da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e diretor científico do Centro de Atenção à Saúde Mental.
Afetividade e vínculos
por Rodrigo da Cunha Pereira
A família está cada vez melhor. Ela não está em crise nem em desordem. Está apenas diferente do que era antes. As pessoas estão mais livres para estabelecerem seus laços familiares. A antropologia e a psicanálise já demonstraram que a família não é um fenômeno da natureza, mas da cultura. Por isso ela tem sofrido tantas variações. Por isso ela transcende a própria historicidade.
A família é um núcleo estruturador e estruturante do sujeito. É o locus onde se forma a pessoa. Daí poder-se dizer que ela é a célula da sociedade. O conceito tradicional de família, limitado à ideia de um pai, uma mãe e filhos, vem dando espaço para novas configurações. São tantas novas famílias, que dediquei a elas um dicionário: Dicionário de Direito de Famílias e Sucessões Ilustrado, que tem quase 1.000 páginas e traduz ao leitor o significado e o significante de cada nova família nos seus verbetes.
Com o declínio do patriarcalismo e a ascensão do movimento feminista, no século 20, as mulheres começaram a reivindicar seu “lugar ao sol”, sua condição de sujeito do próprio desejo. Isso abalou a estrutura e a organização da família, o princípio da indissolubilidade do casamento ruiu. A partir desse momento, o sustento do laço conjugal passou a ser o amor, o afeto e o companheirismo. E assim as famílias deixaram de ser, essencialmente, núcleos econômicos e reprodutivos para ser o lugar do amor, do respeito e da solidariedade.
Foi então que surgiu o divórcio, já que o amor às vezes acaba. O divórcio possibilitou o recasamento e deu origem às famílias recompostas, ou seja, aquelas que se constituem de pessoas que dissolveram o vínculo pretérito e constituem uma nova entidade familiar. Nessa configuração familiar, é comum que se reúnam filhos comuns do casal, com os filhos das relações anteriores. Isto é, os meus, os seus, os nossos.
A partir da década de 1980, com o desenvolvimento da engenharia genética, quem não pudesse ter filhos, e não quisesse adotar, poderia recorrer às técnicas de inseminações artificiais, útero de substituição, busca de material genético em bancos de sêmen e óvulos, independentemente de ter parceiro ou não. Isso desatrelou a maternidade/paternidade das relações conjugais ou sexuais.
Com a valorização dos vínculos conjugais sustentados na afetividade, o direito de família atribuiu ao afeto um valor jurídico. É esse sentimento que tem derrubado velhas concepções e instalado uma nova ordem jurídica para a família. A consequência disso é o surgimento de diversas configurações de famílias conjugais e parentais, para além do casamento: uniões estáveis hetero e homoafetivas, multiparentalidades, famílias monoparentais, simultâneas etc.
Entre os anos 2000 e 2010 o censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) levou em conta o aumento das famílias recompostas, das uniões estáveis, das famílias lideradas por mulheres e do divórcio, que quase dobrou em dez anos. Esse aumento de divórcios se deu especialmente a partir de sua simplificação com a Emenda Constitucional nº 66, de 13/7/2010 (EC/66), que acabou com prazos para requerê-lo e extinguiu o inútil e anacrônico instituto da separação judicial, que funcionava como uma espécie de limbo ou purgatório antes do divórcio.
Em 2013, pela primeira vez, as Estatísticas do Registro Civil investigaram o casamento entre pessoas de mesmo sexo. O seu reconhecimento, no Brasil, como entidade familiar, por analogia à união estável, foi declarado possível pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em maio de 2011. E, em maio de 2013, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprovou a Resolução nº 175, a qual determina a todos os Cartórios de Títulos e Documentos no território brasileiro habilitar ou celebrar casamento civil, ou converter união estável em casamento entre pessoas de mesmo sexo, removendo, assim, possíveis obstáculos administrativos à efetivação de direitos dessas famílias.
A possibilidade de constituição de novas famílias já é realidade nos tribunais que vêm reconhecendo e legitimando cada vez mais os arranjos não tradicionais, tal como a paternidade socioafetiva, aquela que se constitui com base nos laços de afeto, para além do laço genético, como já acontece com a adoção. As relações de consanguinidade, na prática social, não são mais importantes que as oriundas de laços de afetividade. Um filho socioafetivo pode ter os mesmos direitos de um filho biológico, por exemplo.
A dupla maternidade/paternidade também já vem sendo acolhida pelos tribunais, sustentados pela teoria e prática da socioafetividade. Há filhos que já têm em seu registro de nascimento duas mães ou dois pais. Há até aqueles que têm duas mães e também dois pais, seja em razão das adoções homoafetivas ou simplesmente porque a madrasta ou padrasto também se tornaram pais.
A multiparentalidade tornou-se uma realidade no ordenamento jurídico brasileiro a partir da compreensão de que paternidade e maternidade são funções exercidas. Ela representa ainda o respeito ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. No momento em que consideramos o afeto como valor jurídico, atribuímos direito às diferentes formas de famílias possíveis em nossa sociedade contemporânea.
Para além das decisões judiciais avançadas, o Brasil ainda tem o desafio de tornar essas premissas parte do nosso corpo legislativo. Ainda temos muito que caminhar em políticas públicas e no reconhecimento da sociedade sobre as novas famílias. Elas ainda causam estranheza. Caso o PLS 470/13, elaborado pelo IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família, e apresentado pela senadora Lídice da Mata (PSB-BA), seja aprovado, teremos então o Estatuto da Família, uma lei moderna que contemplará todas as novas concepções de família, o que ajudará as pessoas mais resistentes a entenderem que a família hoje é plural.
Certamente, não faltará quem pense que isso é o fim da família, como se falou com a introdução do divórcio no Brasil. Mas isso não vai acontecer. As pessoas estão mais livres para construírem seus laços afetivos, em diferentes modelos de projetos existenciais. Todos eles são legítimos. Não há mais filhos ou famílias ilegítimas. As mudanças fazem parte do processo evolutivo. Fim dos tempos? Não. Início de uma nova era em que a liberdade e a ética do sujeito começam a falar mais alto que os padrões sociais preestabelecidos, e o sujeito vale mais do que o objeto na relação jurídica e social.
Rodrigo da Cunha Pereira é presidente nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), doutor pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e mestre pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em Direito Civil, autor de vários artigos e livros em direito de família e psicanálise e advogado em Belo Horizonte.