Postado em 01/07/2001
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Com uma obra primorosamente editada, ilustrada por dezenas de fotos – Cem Anos de Teatro em São Paulo (1875-1974) – a Editora Senac presenteia tanto o público especializado como o geral, que poderá acompanhar, dos bastidores do teatro, as circunstâncias da vida cultural e social da cidade, e, por extensão, de todo o país.
Seus autores são o crítico teatral e professor Sábato Magaldi, que já produziu numerosas obras e é membro da Academia Brasileira de Letras, e Maria Thereza Vargas, pesquisadora reconhecida como uma das maiores conhecedoras do teatro brasileiro.
No período estudado podemos notar a constância de alguns elementos que, através das décadas, dificultaram – dificultam até hoje – as artes cênicas no Brasil, como a escassez dos espaços teatrais, a limitação dos recursos disponíveis e, principalmente, o desinteresse do público. E, pairando sobre tudo isso, o problema da censura e da falta de liberdade de expressão.
Naquele tempo
Em 1875, diz Magaldi, "o teatro não chegava a ser uma realidade numa São Paulo de menos de 30 mil habitantes". No início daquele ano São Paulo tinha somente uma casa de espetáculos – com o ilustrativo nome de Teatro Provisório –, que apresentava três escassas sessões semanais a um público que custava a se abalar de casa para ir aplaudir as zarzuelas, dramas portugueses e paródias, trazidos por artistas isolados ou companhias européias.
Mas se alguns anos mais tarde o interesse pelo teatro já crescera de tal modo entre os paulistanos que em 1914 a cidade contava com 16 salas, as primeiras décadas do século 20 marcaram um retrocesso – em 1930 havia apenas oito teatros. E, coisa espantosa, por volta de 1946 – registra a história – a orgulhosa Paulicéia tinha apenas três teatros, o Boa Vista, o Santana e o Municipal. Contra dez do Rio de Janeiro.
A partir de 1905 o cinematógrafo já concorria à toda com os espetáculos. Para as famílias a novidade e a absoluta falta de pretensão artística das "fitas" tinham uma vantagem sobre o repertório teatral – eram sempre espetáculos "inteiramente morais", apropriados para todos.
Até os anos 1960/70 – quando o cinema começou, por sua vez, a perder público para a TV –, numerosos foram os teatros transformados em cinemas – como o Politeama, no Brás, ou o Odeon, no centro. Magaldi cita uma conferência dos anos 1930, feita pelo animador italiano Anton Giulio Bragaglia: "O teatro do nosso século é o cinema. Ele afina com o ritmo de nossa vida. O cinema desenvolve-se numa velocidade de 300 quilômetros por hora; o teatro vai à velocidade mínima de 30 quilômetros por hora, com paradas forçadas nos semáforos".
Em 1946, a cidade viu uma grande passeata de atores e autores, "São Paulo Quer Teatros". Prestes Maia era então definido como "o pior prefeito que as artes já tiveram no Brasil", pois "reduzira São Paulo, uma cidade civilizada, à vergonhosa situação de ficar com um único teatro".
O desinteresse do público pelos espetáculos teatrais, persistente pelo menos de 1870 ao final da 2ª Guerra Mundial, é documentado de maneira pitoresca – como numa nota de jornal, de 1875, que desculpava a falta de concorrência a um espetáculo pelo "terrível frio daquela noite". Ou pelo cartaz em que se garantia que determinada peça seria apresentada no dia seguinte, "ainda que chova".
Nas décadas seguintes, mesmo com o estímulo das numerosas companhias estrangeiras que nos visitavam – principalmente italianas e portuguesas –, os críticos não cessavam de vituperar "a predileção do público pelo ruim: operetas descosidas, dramalhões", ou espetáculos "todos cheios de visualidades e coisas tenebrosas ... desde a freira morta, cercada de tocheiros, até o padre reduzido a torresmos em uma fogueira, à vista do bom burguês enternecido". Na ânsia de agradar a qualquer custo, os encenadores usavam todos os tipos de recursos cênicos. Por exemplo, uma companhia que em 1877 levava uma peça portuguesa, Pedro sem – Que já Teve e agora não Tem, fazia questão de imprimir no cartaz: "O naufrágio do quarto ato será feito à vista dos espectadores".
O que nos lembra o grande público de nossos dias, deslumbrado com fumaceiras, efeitos visuais, espetáculos de multimídia que não disfarçam a mediocridade da dramaturgia contemporânea. Como diz Sábato Magaldi, "naquela época (ainda como agora, talvez), sacudiam a indiferença do público apenas as realizações que se tornavam, por um ou outro motivo, um acontecimento. Daí a inevitabilidade de se resvalar, com freqüência, para o pitoresco".
Na virada do século
Pelo final do século 19 São Paulo ganhava ares de metrópole – o apogeu do ciclo do café, coincidindo com o aporte da cultura trazida pela imigração, principalmente a italiana, abriu novas perspectivas para as artes. Do ponto de vista urbanístico, as últimas décadas do século 19 e as primeiras do século 20 viram a abertura de avenidas e praças, a instalação de rede de esgotos e água, de eletricidade, a criação de estabelecimentos de ensino, sociedades culturais, a construção de grandes edifícios públicos, saídos da escola de Ramos de Azevedo – inclusive o Teatro Municipal, inaugurado em 1911.
O esnobismo dos "barões do café", que construíam suas mansões na Avenida Paulista, nos Campos Elísios, em Higienópolis, igualava ir ao teatro a outros atos de vida social, bailes, casamentos, banquetes. Ia-se ao teatro (vai-se ainda) para encontrar amigos, ostentar jóias, mostrar que se tinha coche ou caleça (mais tarde automóvel) que possibilitasse viagens bairros–centro – muito embora já houvesse esforços, por parte das companhias, em atrair um público maior, da incipiente classe média.
Conta o memorialista Jorge Americano, em seu livro São Paulo naquele Tempo (1895-1915), que já por volta da década de 1880 a Companhia Viação Paulista enfileirava seus bondes puxados a burro nas saídas dos teatros: "Não eram bondes como os usuais. Levando em conta que as senhoras e moças vestiam cassa ou seda, os bancos eram vestidos com capa de linho branco, e também sobrecapas nos encostos. Eram chamados bondes de camisa".
As mais importantes companhias teatrais européias – principalmente italianas, francesas e portuguesas – visitavam regularmente o Brasil, por essa época. A calorosa recepção aos grandes artistas marcava "o período de hegemonia do intérprete" (estendido até 1946, na classificação de Magaldi). Famosos ficaram episódios como o dos estudantes que desatrelavam os cavalos da carruagem de Sarah Bernhardt, substituindo-os e levando-a em marcha triunfal pelas ruas da cidade. Lisonjeada, a diva proclamou São Paulo como "a capital artística do país", em 1886. Mas, em sua última visita ao Brasil, em 1905, ela seria acolhida com a maior frieza, por ter declarado em Paris que viria jouer pour ces petits sauvages ("representar para esses pequenos selvagens"), conta Raimundo Magalhães Júnior, em Arthur Azevedo e sua Época.
Essas companhias traziam um repertório atualizado. Além dos autores clássicos apresentavam os polêmicos Henrik Ibsen ou Emile Zola, que a família paulistana não aceitava muito bem – nem mesmo alguns críticos. Sábato Magaldi chama a atenção para a crítica desfavorável de Hedda Gabler, de Ibsen, na criação de Eleonora Duse, em 1907. Após definir a encenação como "um erro", um crítico da época dizia: "Para quase todos os que lá estavam, aqueles quatro atos foram outros tantos problemas, por conseguinte, permita-nos a frase, quatro estopadas tremendas".
De uma peça de August Strindberg, dizia a crítica carioca em 1910 que não apresentara ao público, "cansado de labutar pela vida", a diversão esperada, obrigando-o a grandes esforços de inteligência.
Duas culturas
Foi a presença da cultura italiana em São Paulo que marcou, desde o último quartel do século 19, a história do teatro paulista – com uma influência que se estenderia a todo o país. Isso se deu pela criação de sociedades de teatro amador em língua italiana, os filodrammatici, que de 1898 em diante se espalharam por vários pontos da cidade. Os seus objetivos ultrapassavam o de mero entretenimento ou reunião social. Estimulados pelas visitas dos grandes artistas – como Adelaide Ristori, Ernesto Rossi, Clara della Guardia, Eleonora Duse, Tommaso Salvini, Ermete Zacconi –, esses grupos, dos quais muitos se profissionalizaram mais tarde, empenhavam-se em manter vivo o espírito da italianità, com todas as conotações de que ele se revestia, naquele momento histórico.
Miroel Silveira, em uma importantíssima obra (A Contribuição Italiana ao Teatro Brasileiro), detalha a fundação e a manutenção, até a década de 1950, de tais sociedades entre nós, analisa a emergência artística de grandes figuras do seu meio – como Itália Fausta e Nino Nello –, o inter-relacionamento estabelecido entre a corrente italiana e a nacional, responsável, em última análise, pelo surgimento de uma dramaturgia forte, e o verdadeiro "divisor de águas" do teatro brasileiro, que foi a fundação do Teatro Brasileiro de Comédia em 1948. Por um italiano: Franco Zampari.
Havia na colônia representantes de todas as correntes ideológicas – de monarquistas e católicos observantes a anarquistas, garibaldinos, socialistas e comunistas. Por isso mesmo circulavam idéias nos seus grupos de teatro amador. Coisa que absolutamente não acontecia no teatro nativo da época. O livro de Magaldi e Vargas é utilíssimo, nesse ponto. Podemos comparar o repertório do teatro regionalista, provinciano, "caipira", dos dramaturgos nacionais – que se propunham a fazer rir, e nada mais –, e também os raros eventos dramáticos amadores, que contavam com elementos da alta sociedade, com a seriedade de propósitos e o repertório riquíssimo dos filodrammatici. Traziam a debate temas ousados, como o casamento indissolúvel, a revolução social, o militarismo, o fanatismo religioso e a intolerância.
Mas o repertório – a discussão de temas relevantes para a época – não foi a única contribuição importante dos "filodramáticos".
Desde meados do século 19 a atuação dramática dos grandes artistas peninsulares se impusera, na qualidade de "mais realista, mais próxima da vida", em contraste com os padrões vigentes no teatro francês, essencialmente declamatório. Tanto que foi justamente buscando o perfeccionismo da arte interpretativa de um Tommaso Salvini, de uma Eleonora Duse e outros, que Stanislavski criaria, no final do século 19, o seu grande "método" – que teve nos anos 30 seu apogeu nos Estados Unidos. E que somente no final da década de 1950 chegaria ao Brasil, nos Seminários de Dramaturgia do Teatro de Arena e nos laboratórios de Eugênio Kusnet.
O ano de 1948
Com a criação do TBC e da Escola de Arte Dramática (EAD) em 1948, esse ano se tornaria um marco extraordinário do teatro nacional. Até 1947 praticamente não havia teatro profissional em São Paulo. As poucas companhias que a cidade via eram todas do Rio de Janeiro – Dulcina e Odilon, Procópio Ferreira, Jaime Costa e mais algumas outras. Em 1947 o grupo profissional Os Comediantes, após ter falido no Rio, mudou-se para São Paulo e foi o primeiro a fazer, em âmbito nacional, um teatro de alto nível, sob a direção de Ziembinski. Esse grupo se fundiria com o Teatro Popular de Arte, criado por Miroel Silveira.
Alfredo Mesquita, que teve enorme importância na história do nosso teatro e foi o criador da EAD, falava em entrevista a "IstoÉ" (29/11/1978) de três figuras essenciais do teatro brasileiro – Ziembinski, Pascoal Carlos Magno e Franco Zampari –, e acrescentava: "Só que existe uma diferença entre eles: Zimba fez sua vida no teatro; Pascoal fez no teatro uma vida paralela à sua carreira diplomática; enquanto Franco Zampari, o fundador do TBC, enterrou sua vida no teatro".
Modesto, Mesquita não se incluía nessa lista, mas sua contribuição foi primordial. Antes de dedicar-se à EAD, pela qual passou a maior parte de nossos grandes atores e diretores profissionais, de 1942 a 1948 dirigiu o Grupo de Teatro Experimental, no qual estrearam artistas que seriam assimilados pelo TBC – Maurício Barroso, Nydia Lícia, Ruy Affonso, o dramaturgo Abílio Pereira de Almeida e o futuro crítico e historiador Décio de Almeida Prado. Este fundaria também o Grupo Universitário de Teatro, do qual saiu Cacilda Becker.
O "teatrinho" de 365 lugares, criado por Zampari em 1948 numa garagem da Rua Major Diogo – onde ainda hoje se encontra –, foi sempre um teatro empresarial, mas, no que se refere à qualidade artística de suas produções, nunca fez concessões. No entanto, quanto a seu repertório, não faltaram críticas acerbas dos que viam no TBC apenas "um teatro de sociedade, para ricos". Por exemplo, a jornalista, escritora e dramaturga Helena Silveira, que declarava, em 1978: "Faço questão de dizer algo que vai chocar a muitos. O TBC foi sempre um divertissement para a alta burguesia, reunindo grandes nomes. Um lugar onde se ia sempre muito bem-vestido. Os grandes louvores a ele hoje me deixam fria. Considero-o um teatro digestivo com grandes nomes".
Mantendo sua hegemonia absoluta até 1953, o TBC foi inegavelmente um fulcro de renovação. Dele saíram vários outros grupos profissionais que iriam revolucionar o meio teatral e a dramaturgia. Novos teatros foram acrescentados à cidade, novos hábitos foram adquiridos pela população, criando um clima propício à eclosão, nos anos 50 e 60, de uma dramaturgia brasileira. Décio de Almeida Prado (citado na obra de Sábato Magaldi) dele diria, em dezembro de 1955: "A história do teatro profissional brasileiro é curta: tem oito anos de idade, precisamente a idade do Teatro Brasileiro de Comédia. Compreender o TBC, portanto, é de certo modo compreender o próprio teatro paulista: foi à sombra dele que crescemos e nos formamos todos, atores, críticos, espectadores".
Esplendor e heroísmo
A fundação do Teatro de Arena em 1953, a estréia de Eles não Usam Black-Tie, de Gianfrancesco Guarnieri, em 1958, a criação do Teatro Oficina em fins de 1958 constituíram novos marcos do teatro brasileiro, pelo nítido propósito manifestado de estimular uma dramaturgia que visava superar a sua função de entretenimento, levando-o à expressão e ao debate de problemas sociais.
O clima político radicalizado do final da década de 50 e do início dos anos 60 traduziu-se algumas vezes em tensão entre os próprios grupos que se multiplicavam na cidade, tomada – enfim! – pelo interesse do público no gênero. Em 1959, por exemplo, o TBC, reorganizado novamente sob a direção de Zampari – após algumas crises –, era recebido com mais frieza. Cacilda Becker diria, em uma entrevista de 1964: "O nosso lema, teatro por amor ao teatro ... era considerado uma alienação gravíssima ... Alienação, atuante, diálogo, contexto, foram palavras que tinham entrado na linguagem teatral paulistana naquele ano em que nós tínhamos ido levar a nossa cultura às províncias, e nos deixavam completamente perplexos".
Com a repentina eclosão de grupos teatrais dos mais variados feitios – a realização de grandes espetáculos, a absorção proveitosa de novas técnicas e recursos vindos do exterior, a multiplicação de autores, o aprimoramento profissional dos artistas –, as duas décadas seguintes transformaram de maneira definitiva o cenário provinciano da cultura teatral paulista. E o endurecimento da censura, a violência contra artistas, o fechamento de teatros pela polícia, episódios como a invasão do Oficina em 1968, quando apresentava Roda-Viva – conseqüências da ditadura –, foram nuvens negras que pairaram sobre o país e tentaram castrar a arte. Mas serviram também para unir a classe e fazê-la lutar pela sobrevivência da livre expressão.
Porque, como diz Magaldi no final de seu belo livro, "o teatro sensibiliza as platéias quando se torna um evento. ... trazendo um elemento de originalidade ou de audácia que leva o espectador a deixar a poltrona confortável diante de um aparelho de televisão". E esse evento "só ocorre se o teatro se exprime com liberdade" – pois "o teatro só interessa na medida em que põe o dedo numa ferida".
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