Postado em 31/08/2015
por CARLOS NEJAR
ANTIELEGIA SEM CAROÇO
Estive com a maçã na boca, desde criança.
E a maçã comi, já velho e menino, lá no
paraíso comi a luz. E a maçã no amor
eu vi: o elevado tronco e cheiro de mulher
em êxtase. Comi a polpa e a casca. Joguei
fora a solidão, caroço. E enfim, adormeci.
Era a maçã de onde eu provinha. E, como
ela, irei provar a terra tenra, tenra e fria.
KAFKA, O PEDREIRO DE ROSAS
Nunca tiveste razão, nem desejavas tê-la.
O que te sucedeu foi ela haver-se esvaziado
no excesso, tal a pilha furada, a caixa sem
nada, faca sem lâmina e sem cabo, calada.
Quiseste ser inseto e eras de outra linhagem
humana, de outro universo. E o medo do Pai
te tomou, medo da morte, medo da extravagante
ou esmagadora infância, medo do medo.
E, quando te anunciaram as coisas, já não
eras Kafka. Eras castelo, processo, julgamento,
patíbulo, a dor da lei, a impureza da culpa,
ou apenas o Pai morto. Morto, morto.
Em vão escrevias cartas ao Outro mundo,
quando o carteiro as levava para este.
E o mundo nada queria contigo, Kafka,
por não pertenceres a seu jogo fatigado.
Não, não pertencias a ele, como nós,
os poetas e os profetas. Tinhas defeito
de sonho, pior que o de realidade, Kafka
enfermo de Deus, enfermo de Eternidade.
Só a morte, a morte te curou.
A CIVILIDADE
O rinoceronte tem uma civilização sensata.
Os ossos preferíveis à barriga tenra, engomada.
O casco férreo, insensível. Suporta o chicote,
suporta a afronta, suporta a escravidão, suporta,
suporta.Tem enxaquecas decerto. Numerais, verbais. E tédio. Só os olhos se alçam. As pálpebras parecem um relógio de chuva
caindo; as patas são suavíssimas quando
não sufocam esta civilidade que os homens
exaltam. E o brasão de bom prelado, ou de
maviosa hierarquia, é o unicórnio, marca
de Jacó, que ascendeu da coxa à testa,
o estrelo alucinante. Fora do rinoceronte,
o rinoceronte. Fora da salvação,
a salvação. Fora do homem, o homem.
POSTERIDADE
Não sou moderno, apenas
sou póstero e ridículo,
póstero aos pósteros
que não sofrearão
sua cínica e pungida
curiosidade. E sei que a história
há de lembrar seus poetas
em praças, monumentos, congressos
e à vista de tenaz calamidade.
Serei mais póstero
do que jamais sonhei,
entre lentas virtudes
e as convulsas crises
de uma cova à outra,
povoadas de perdizes.
E não terei, ainda
que morto, de escovar
da fatiota o pó, pagar
solarengas taxas,
impostos soberbos
à posteridade.
RELÓGIO DE MÚSICA
Meu avô esquecia
seus óculos
nos sapatos.
E os sapatos
com os óculos
tinham a insônia,
como a corda
de um relógio
por onde desce
a aranha. E o bolso
da noite por fora
se costura.
Até quando a memória
é imaginação futura?
Meu avô esquecia
que era meu avô
e foi na infância
o incêndio
que o enterrou.
Agora a eternidade
toda é o meu avô.
CARLOS NEJAR é poeta, advogado, professor e autor de livros como O Derradeiro Jó (R&F, 2009),
Os Viventes (Leya, 2010) e Odysseus, o Velho (Companhia Editorial, 2010).
Seu lançamento mais recente é o romance O Feroz Círculo do Homem (Letras Selvagens, 2015).