Postado em 31/08/2015
A APROPRIAÇÃO DA LINGUAGEM FOTOGRÁFICA PELA ANTROPOLOGIA RESULTOU EM DIÁLOGO EXPRESSIVO QUE DESDE O SÉCULO 19 SE RENOVA EM DIFERENTES OLHARES E REGISTROS
Estudar o ser humano e suas particularidades tendo como base as características biológicas e socioculturais dos diversos grupos. Nesse campo de reflexão, a ênfase se dá nas diferenças e variações entre os povos e etnias. Independentemente da definição empregada para se referir ao conjunto de disciplinas que formam a antropologia, é possível entendê-la como uma forma de investigar a diversidade cultural.
Tendo em vista tal apelo, é um modo de entender o que somos com base no reflexo do outro. E na, intersecção dessa lente do conhecimento, existe um diálogo antigo e produtivo com a linguagem da fotografia. “Durante o século 19 as fotografias foram utilizadas como modo de documentação e comparação de elementos da cultura material para fundamentar as teorias evolucionistas então em voga”, explica a professora titular do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo Sylvia Caiuby Novaes. “Partia-se do princípio de que a evolução seguia algumas leis, uma delas a de que se dava sempre de formas mais simples para formas mais complexas. As fotografias procuravam comprovar essa evolução a partir de elementos materiais da cultura.”
Segundo a pesquisadora, ainda naquele período a fotografia foi utilizada amplamente nas relações estabelecidas entre a antropologia, a medicina e até em estudos na área do direito. “Influenciados por Cesare Lombroso (psiquiatra e antropólogo italiano), vários pesquisadores procuravam mostrar que comportamentos tidos como desviantes, tais como aqueles que se observavam entre loucos, doentes mentais e criminosos, poderiam ser previstos a partir de características corporais”, afirma. “Inúmeras fotos registravam o lóbulo das orelhas, a forma do nariz, expressões faciais, a distância entre os olhos etc.”
SAÍDA A CAMPO
Morando nos Estados Unidos desde os anos 1970, o fotógrafo paranaense Valdir Cruz dedica parte substancial do seu olhar e estudos a registros focados em pessoas, arquiteturas e paisagens brasileiras. De 1994 a 2000 realizou o projeto documental Faces of Rainforest, no qual registrou o cotidiano indígena. No livro Faces da Floresta – Os Yanomami (Cosac Naify, 2004), utilizou a técnica fotográfica para mostrar a beleza cultural do povo que vive na Região Norte do Brasil, ao mesmo tempo que aponta os problemas e a dizimação dessa população, tudo pelo poder das imagens.
Ao analisar o próprio trabalho, Valdir Cruz confirma a dimensão antropológica, porém a considera inconsciente: “Não é minha busca primária. O que busco são imagens que apresentem leitura significativa a uma dúvida em nossa sociedade, uma resposta de acordo com meu olhar. Aparenta-me que essa conotação antropológica surge após o estudo, após o documento realizado”, comenta. “Quando isso acontece, tem-se a impressão de surgir de acordo com a leitura dos críticos, das diferentes interpretações e não de minha visão. A leitura de terceiros pode ser positiva ou negativa, mas essa é a provocação. Uma vez desenvolvido, o projeto está sujeito à crítica”, analisa Cruz, que atualmente está trabalhando num projeto/estudo sobre o câncer.
Segundo ele, as leituras são as mais variadas. “Acho que esse é um grande fator da fotografia. Ela nos faz refletir, nos provoca. Imagens têm a força de mexer com os sentimentos das pessoas... Talvez até mais que um texto”, provoca o fotógrafo. “No momento do clique, a imagem tem sua liberdade, se o fotógrafo assim se permite.”
O EXOTISMO
A curiosidade pelo exótico e a documentação histórica trouxeram pesquisadores estrangeiros ao país, no marco da fotografia moderna brasileira, identificada pelo humanismo e pelo trabalho de documentaristas estrangeiros, como os franceses Pierre Verger (1902-1966) e Marcel Gautherot (1910-1996), e a alemã Alice Brill (1920-2013). Contextualizando os diferentes modos de olhar e utilizar a fotografia, Sylvia observa que a crença na objetividade da câmera se alterou com o passar dos anos. “A fotografia é uma construção que registra o olhar do fotógrafo, o ângulo escolhido para registrar o que quer, o que ele deixa em foco e o que ficará desfocado”, esclarece a professora. “A fotografia é (tal como o texto, aliás) absolutamente seletiva. Fala tanto daquilo que procura representar, como, principalmente, daquele que operou o aparelho – o fotógrafo. Há, nesse sentido, um aspecto expressivo, e não apenas documental, que não pode ser negado.”
MULTIFOCAL
OBRA FOTOGRÁFICA DE EDUARDO VIVEIROS DE CASTRO É TEMA DE EXPOSIÇÃO NO SESC IPIRANGA
Interligar o conhecimento antropológico com o registro fotográfico é uma convergência importante feita pelo doutor honoris causa pela Université Paris Ouest Nanterre La Défense e professor de Antropologia do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Eduardo Viveiros de Castro. Essa experiência pode ser vista no Sesc Ipiranga até dia 29 de novembro. Variações do Corpo Selvagem – Eduardo Viveiros de Castro, fotógrafo traz 250 imagens que abrangem a produção fotográfica do antropólogo brasileiro, com curadoria do escritor e crítico literário Eduardo Sterzi e da escritora e crítica de arte Veronica Stigger.
Em programação paralela acontecerá o seminário internacional com antropólogos e pesquisadores de várias áreas, série de shows, espetáculos de teatro, performance, dança e ciclo de cinema. Para a coordenadora de programação da unidade, Roberta Lobo, a exposição traz, por meio de registros fotográficos do antropólogo, dois momentos de sua trajetória. “O de aproximação com artistas decisivos para a cultura brasileira contemporânea e o relacionado à sua atividade etnológica com os índios Araweté, Yanomami, Yawalapiti e Kulina”, explica. “Esses dois universos estão reunidos pela centralidade adquirida nas imagens a partir da categoria corpo, enfatizando assim a questão da corporalidade, que está também na origem da reflexão antropológica do autor e que marca todo seu percurso intelectual.”