Postado em 01/07/2001
Em tempos de uma crise de energia que pode comprometer o crescimento econômico do país, nunca foi tão importante que cada cidadão soubesse de que maneira "funciona" o Brasil. A hora é essa. Faz-se necessário um resgate do nacionalismo, senão mesmo o despertar para uma consciência de coletividade que se apresenta como uma das únicas maneiras de mudar o rumo dos acontecimentos. Esses são os principais aspectos levantados pelo geógrafo Aziz Ab'Sáber em entrevista na qual falou também do nosso estilo de colonização e da real responsabilidade do governo e da sociedade.
O senhor sempre critica uma aguda falta de nacionalismo no Brasil. Por que ela acontece?
Do meu modo de entender, estamos atravessando uma fase cultural e política muito triste. Em primeiro lugar, há uma tendência que nega o Estado Nacional. Ela teve início no passado com uma crítica à palavra pátria e se estendeu até o presente momento com algumas diretrizes do governo central que me causam profunda indignação. A globalização cultural a que assistimos, no fundo, representa uma globalização financeira, que vai contra os interesses do país e de sua gente. Essa não é uma tendência só brasileira. Ocorre que os outros países têm um sentido de tradição do Estado Nação muito grande. É o caso da França, da Inglaterra e dos Estados Unidos, por exemplo. Os brasileiros precisam entender que a globalização pretendida pelos países-chave do Primeiro Mundo é uma globalização no âmbito financeiro.
Qual a implicação dessa falta de nacionalismo na crise energética?
Quando eu era estudante, no curso de Geografia, aprendíamos as tipologias das colônias. Falava-se das colônias de povoamento, das colônias de exploração econômica, das colônias estratégicas e das colônias de enquadramento. Na época imperial, o enquadramento realizado pelo Primeiro Mundo, principalmente pela Inglaterra, foi do tipo bélico e burocrático e, com isso, toda a economia se orientava para a metrópole colonizadora. Atualmente, o Brasil vem sofrendo pressão externa para transformar o país em uma colônia de enquadramento financeiro e burocrático: a aquisição dos bancos, das riquezas do subsolo e as privatizações as mais desvairadas demonstram essa tese. Veja esse exemplo: as riquezas do subsolo pertencem ao Estado Nação e não podem ser transferidas para as mãos de especuladores típicos, como foi o caso da Vale do Rio Doce. O segundo exemplo são as hidrelétricas e os reservatórios que as compõem. Ao privatizar as hidrelétricas, que formam a base do sistema energético brasileiro, rios inteiros passaram a trabalhar de acordo com os interesses dos privatizadores e o governo perdeu o controle até sobre o nível de reserva estratégico dos reservatórios. Quem comprou as hidrelétricas fez o que quis. Vendeu energia à vontade, sem levar em conta que os reservatórios estavam perdendo volumes fantásticos de água. Então, hoje, estamos às vésperas do chamado apagão, termo que eu não gosto de usar, mas que está associado à absurda venda das hidrelétricas. E, para piorar, vender uma hidrelétrica representa vender o curso de água inteiro de um rio. Foi um ato criminoso do governo tomar a iniciativa de fazer isso. Mais criminoso ainda porque todo o dinheiro que foi conquistado tornou-se irrisório em termos das dívidas acumuladas pelo país. O governo foi criminoso, uma vez que não soube prever nenhuma das conseqüências de algumas vendas. Vivemos uma situação dramática porque não vai dar tempo de fazer mais reservatórios. E o pior é que por todos os lados existem questões que parecem desconhecidas no seu aprofundamento, no seu impacto, pelos homens-chave do Estado do governo brasileiro.
Qual o cerne da crise energética?
Essa crise, que afeta até psicologicamente brasileiros de várias partes do país, tem uma combinação complexa de fatores. Não se trata apenas de falta de chuva. Ocorreram chuvas muito importantes no verão que se findou em março. As chuvas de inverno, em certas partes do Brasil, sobretudo no Sudeste, estão sendo muito fracas. Há chuvas de inverno que o governo nem sabe que existem, mas que neste ano estão muito fragilizadas. Somando o fato de que houve muita chuva desde meados de outubro até meados de março e um calor muito intenso de meados de março até o começo das primeiras chuvas de inverno, que foram relativamente escassas e rápidas, passamos a ter um problema muito sério no abastecimento dos reservatórios. No período das chuvas de verão, houve queixas de que nem sempre as chuvas principais estavam em cima dos reservatórios, mas isso é válido só para a região de São Paulo. E, embora tivesse chovido muito em São Paulo, houvesse inundação como em outros anos, as águas dos reservatórios nem sempre receberam aquela carga de chuvas, necessária para seu preenchimento normal.
Mas o que se diz é que com o inverno a estiagem será inexorável e o problema tende a se agravar.
Essa é uma verdade parcial. A partir do início deste inverno, no Sudeste, temos dois fatos: em primeiro lugar chuvas escassas e, em segundo, uma atenuação do calor, o que é importante, porque atenua a evaporação. Mas a mídia publica sempre uma informação equivocada dizendo que em junho começou uma dura estiagem de seis meses. É verdade que as chuvas vieram escassas, frágeis e insuficientes para atingir nossos desejos. No entanto, tem chovido. A estiagem principal vai começar em agosto, setembro. E aí, sim, os reais impactos negativos serão severos. Esse problema indica um desconhecimento. Não se pode assustar a população dizendo que serão seis meses de estiagem.
E o governo sabe disso?
Não, apesar de a sazonalidade das chuvas ser passível de conhecimento científico. Há muitos anos, foi editado na Faculdade de Geografia um trabalho de Carlos Augusto Figueiredo Monteiro que se chama A Frente Polar Atlântica e as Chuvas de Inverno no Sudeste do Brasil. Ninguém diz nada sobre isso. Simplesmente se coloca que serão seis meses de estiagem. Então, é evidente que se as empresas rebaixaram os reservatórios até níveis deficitários, isso significa que elas especularam demais, venderam energia demais. E os governos não controlaram os reservatórios privatizados, usando os ditos "seis meses de seca" como justificativa. Esse livro, caso fosse lido por governantes e pelas companhias que compraram as hidrelétricas, tanto um como o outro saberiam que, no geral, existem anos em que as chuvas de inverno são mais fortes e outros em que são mais fracas.
Mesmo com a precipitação insuficiente, sobra energia em algumas regiões do país.
É nesse ponto que nasce outro grave problema. O governo não se preocupou com a interligação dos centros de produção energética do país. Isso era fundamental para obter sustentabilidade durante os períodos mais críticos que uma ou outra área poderia sofrer. Era uma coisa flagrante do ponto de vista da matriz energética em um país de escala continental. Enfim, quando faltasse energia de um lado, poderia ser deslocada energia disponível de outras áreas, mas isso não foi feito. Daqui para frente, os governos terão que se sujeitar ao conhecimento em vez de pura e simplesmente se sustentar pelo poder e pensarem que, com o poder, o conhecimento estará inexoravelmente acoplado. Assim, os governos terão de conhecer melhor as coisas e fazer com que os membros de seus escalões sejam mais inteligentes e estudiosos.
Como o senhor analisa as outras fontes de energia?
O Brasil é um país continental e 91% do território é bem abastecido de chuvas. É um país extensivamente úmido, com drenagens perenes. Mesmo no Nordeste mais seco os rios chegavam ao mar, antes da construção dos açudes. Era óbvio que com 91% do território abastecido, esses recursos foram aproveitados para a construção de hidrelétricas. Mas, mesmo assim, as hidrelétricas trazem problemas, principalmente em regiões florestais. Agora, quem quer construir barragens, faz um relatório muito epidérmico que não indica os reais impactos. Essa atitude criou muitos problemas, principalmente com os ambientalistas que obstaram a construção de algumas barragens. Então a matriz, predominantemente hidrelétrica, deveria se diversificar. Muito recentemente, pensou-se nas termelétricas, que dariam certa compensação ao sistema. Mas, veja bem, isso levaria muito tempo para ser feito. A construção de uma termelétrica deveria seguir um plano mais lógico, que não atendesse aos interesses do capitalismo selvagem. Eu defendo a idéia de que deve haver mudanças fundamentais na matriz, mas não com esse tipo de exploração absolutamente irracional. Já a energia nuclear é indispensável em todo o mundo, mas não deveria ser construída em Angra dos Reis ou em grandes capitais, deveria haver, no lugar, outras áreas para a produção. Hoje, a construção da terceira usina de Angra tem que ser acelerada, o que suprime as pesquisas de previsão de impacto. Se uma barragem leva sete anos para ser construída não vai resolver o problema da falta de energia deste ano ou quando houver um repiquete de falta de chuva em anos seguintes.
O senhor citou a obra de Carlos Augusto Figueiredo Monteiro, um conhecimento produzido pela universidade. Não estaria faltando um intercâmbio maior entre as instituições?
A universidade é uma instituição da sociedade que cuida da recuperação do conhecimento acumulado por todas as áreas do saber, além de acrescentar fatos novos, frutos de observações e experimentações, que são a síntese de assuntos especiais. No entanto, ela não tem força para orientar diretamente o governo. Os governos têm segmentos diferenciados que precisam buscar o conhecimento onde quer que ele esteja. Há uma dicotomia entre o poder e o conhecimento. O poder precisa ser mais ético, mais versátil, mais capaz e não apenas clientelesco. Em contrapartida, a universidade precisa ser mais produtiva, não basta recuperar o conhecimento acumulado. Atualmente, o grande problema da universidade está na pesquisa. É a pesquisa que acrescenta mais conhecimento àquilo que se sabe. Nessa direção, eu penso que existem algumas deturpações. As lideranças universitárias deveriam alertar os governantes sobre a necessidade de bons conhecimentos. A ciência, fruto da pesquisa, é um dos valores de observação da condição humana. Mas tudo isso que se conhece, da pré-história até nossos dias, não pode ser colocado a serviço do capitalismo. O conhecimento humano deve servir àqueles que têm o dever de gerenciar o Estado Nação, ou melhor, deve servir sobretudo aos excluídos.
Essa propalada carência de nacionalismo e a ignorância por parte do poder têm outras implicações além da crise energética?
A Amazônia é um excelente exemplo, que se constitui em um megadomínio de natureza. Pelo menos por 4,2 milhões de quilômetros quadrados existia uma floresta quase contínua, com pequenas brechas de cerrado e pequenos trechos de terra arenosa branca. Esse império florestal ficou quase intacto até 1950: é o grande milagre de toda a face da Terra. E por quê? Porque o extrativismo não era predatório. A retirada do látex para a borracha, por exemplo, não demandava a derrubada das árvores. Não se destruía quase nada. De repente, então, vêm as estradas de rodagem, multiplicam-se os acossamentos ditos agrícolas, que na verdade foram uma expansão fundiária. As experiências agropecuárias destruíram pedaços de propriedades para construir pastagens. A agricultura, senso estrito, nunca existiu nessas áreas. Pois bem, em função dos acontecimentos relacionados à implantação de Brasília, estabeleceram-se as primeiras rodovias para integrar o território do chamado "arquipélago brasileiro". Mas ninguém previu os impactos das estradas. E esse problema persiste até hoje. O governo não exige previsões de impacto corretas, pelo contrário, é muito flexível para empresas que querem fazer um projeto. A essência dos estudos de impactos ambientais é até hoje apenas de âmbito formal. Eu tenho estudado, por exemplo, o que aconteceu com a região ao sul do Pará, uma das áreas mais depredadas de todo o país. Lá, existem ao longo da PA 150, que sai de Belém e vai até o sul de Marabá, dois flancos de devastação, que seguem de três a quatro quilômetros pelas duas margens da estrada. O brasileiro tem uma tradição de fazenda, de propriedade rural. Seguindo esse sonho, muitas pessoas residentes em várias partes do Brasil compravam os terrenos. Depois começam a devastar, da periferia do quarteirão para o centro e, de repente, não resta mais nada, mesmo porque não tem ninguém para fazer gerenciamento e fiscalização.
O senhor tem alguma idéia que possa reduzir o impacto ambiental na Amazônia para apresentar aos governantes?
Há algum tempo, me atrevi a escrever um pequeno trabalho chamado Desenvolvimento com o Máximo das Florestas em Pé. Não pensava na floresta como uma paisagem, mas na biodiversidade total que se chama floresta: o império da árvore. E a partir desse trabalho desenvolvi algumas idéias sobre um projeto para a Amazônia que apontava que quem tinha territórios muito grandes dentro das matas deveria retirar, porcentualmente, menos florestas, e quem tinha áreas menores poderia tirar mais floresta. Essa espécie de alternativa estava relacionada ao fato de que algumas empresas possuem um milhão de hectares de floresta. Isso representa dez milhões de metros quadrados ou o equivalente a três vezes e meia a área metropolitana de São Paulo. Precisamos, portanto, de leis mais sérias que impeçam que pessoas que puderam dominar um espaço muito grande arrancassem tanta mata.