Postado em 01/04/2001
Morávamos num bairro novo e pouco habitado. Entre uma casa e outra havia muitos terrenos baldios, onde remanesciam eucaliptos da antiga fazenda, que antecedeu o loteamento. Eram casas pequenas de quarto e cozinha, iluminadas por pálidas luzes de lampiões, que nos inspiravam um certo gosto por histórias de lobisomem, mula-sem-cabeça e outros fantasmas.
Quando havia banheiro, nessas pequenas casas, era no fundo do quintal, junto à fossa ou beirada de rio. E, à noite, quando mulher ou criança sentiam necessidade, usavam penico, para não ter de enfrentar os demônios noctívagos. Já os homens, machos mesmo, diziam que se serviam do penico só para não tomarem friagem noturna.
Sei que, naquela noite de sexta-feira santa, acordei muito assustado, com um tropel de cachorros do lado de fora da nossa casa. Com o olho grudado na fresta aberta na janela, meu pai narrava toda a movimentação ensandecida dos cães do bairro. Minha mãe, muito nervosa, implorava que ele fechasse a janela, pois num dia como aquele nem Deus nos salvaria, e acrescentava a sua afirmação:
- Hoje Deus tá morto e todos os demônios estão soltos.
O pior de tudo, lamentava minha mãe, era meu irmão, recém-nascido, ainda sem batismo. Pois num dia como aquele, menino pagão nem a Virgem Maria defenderia.
Já meu pai achava que todo esse medo era pura bobagem. Coisa de mulher. O que devia estar acontecendo era alguma cachorra no cio, causando toda aquela arruaça entre a cachorrada. Eu como não sabia, perguntei o que era cio, e ouvi:
- Cala boca, menino!
Calei. Naquele tempo a gente obedecia mesmo. Mas abri bem os olhos, porque ainda não me tinham mandado fechá-los: minha mãe acendia uma vela e começava a rezar pedindo proteção para meu irmão sem batismo. Meu pai foi até o guarda-roupa, abriu uma caixa, que estava dentro de outra, pegou o revólver e fez mira, através da fresta da janela. Aí percebi que a coisa era séria. Cobri bem a cabeça, com as cobertas, e fui avisando a todos os santos do meu conhecimento que, além de batizado, eu também era crismado, e, se me livrassem daquela, até deixava a rua de lado, para ir ao catecismo.
Nisso, meu pai anunciou que os cães ensandecidos subiram lá pro lado da casa da Bastiana. Minha mãe parou a reza. Agora tinha certeza de que era demônio mesmo, disfarçado no pêlo de cachorro, aproveitando aquela noite para ir dormir com aquela sem-vergonha. Meu pai disse pra ela não falar assim da moça. Minha mãe quis saber por que ele estava se doendo pela vagabunda. Defendendo-se, ele respondeu que não estava se doendo por ninguém, só achava que não precisava falar desse jeito, pois ela sempre fora boa vizinha.
- Quer dizer que você tem a coragem de falar, na minha cara, depois que me encheu de filhos, que a vizinha é boa?!
- Pô! Não é nada disso - contestou meu pai.
- Pois não quero nem ver você cumprimentando essa bruaca dessa safada nojenta.
E ficou assim a discussão dos dois, pois o barulho dos cães aumentou tanto que ninguém podia ouvir ou pensar em outra coisa. Meu pai gritou que agora eles vinham na direção da nossa casa, e disparou um tiro.
Mesmo sem ser bala de prata, lá fora, o coisa-ruim do inferno morreu com um longo e agudo uivo de dor.
Meu pai, que só urinava no penico para não tomar friagem, fechou bem a janela e correu para cama. Eu fechei os olhos, o mais que pude, para não ver as labaredas que saíam do coisa-ruim morrendo. Com força, apertei o nariz, para não sentir o cheiro de enxofre exalado pelo furo do tiro, bem no centro do peito daquele demônio, e só respirei pela boca.
No sábado de Aleluia, acordei com meu pai todo prosa contando seu combate com o diabo, que era tão danado que, mesmo morto, levou nosso porco gordo e mais meia dúzia de patos, que criávamos soltos no quintal, para as profundezas do inferno.
Fui filho de herói do sábado de Aleluia até o domingo de Páscoa, quando almoçávamos, tendo omelete como mistura, e o descarado do vizinho, acho que, para zombar do meu pai, veio convidar nossa família para comer um pedaço de porco e de pato, que o danado do diabo, já quase morto e não agüentando carregar até o inferno, havia deixado na casa dele.
Não sei se me doeu mais a sem-vergonhice daquele vizinho ou a perda da condição de herói do meu pai. Sei que meu pai ficou mudo. Foi minha mãe, que sempre amou o marido, fosse ele herói ou não, que se antecipou na resposta, para não deixar meu pai desmoralizado:
- Olha, vizinho, agradecemos muito seu convite, mas carne de bicho que o diabo pôs a mão, minha família não come!
Nelson Albissú é escritor e
autor de Sol, nuvem e menino, entre outros