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Em pauta
Infância perdida

Postado em 01/04/2001

Até recentemente, a historiografia não considerava as crianças no contexto social. Recentes pesquisas, algumas presentes neste Em Pauta, desvendam uma situação perversa, vinculada ao panorama sócioeconômico brasileiro do passado, mas cujas heranças chegam até os dias atuais

Maria Luiza Marcílio
é professora titular do Depto. de História da USP e
presidente da Comissão de Direitos Humanos/USP

"[...] a infeliz mãe desta criança, por seu estado de pobreza vê-se na acerba necessidade de lançar na Roda desse Pio Estabelecimento sua filha querida..." (Porto Alegre, 1863, Arquivo da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre, bilhete deixado com a criança Palmira na Roda de Expostos, 20-4-1863)
"Ao primeiro de Janeiro de 1770, nesta Sé de São Paulo, baptizou e pôs os santos óleos [...] a Manoel, filho de Angela, agregada de Ignacia Leme e de pai incógnito [...] (São Paulo, 1770, Livro 4 de batizados da Sé, 1762-1772, Arquivo da Cúria de São Paulo)
"Aos 13 de janeiro de 1798 nesta Sé, baptizou e pôs os santos óleos [...] a Marciana, filha de Bras Pires, pardo forro e Ifigenia, parda escrava de Claudio Cardozo de Silveira [...] (São Paulo, 1798, Livro de batizados de escravos da Sé, 3-1-41, Arquivo da Cúria de São Paulo)

Três exemplos históricos de crianças excluídas: o primeiro é de uma menina recém-nascida "exposta", isto é, abandonada na Roda de Expostos de Porto Alegre; o segundo, um menino ilegítimo cujo registro menciona apenas o nome da mãe, filho de pai desconhecido; e o último, uma menina escrava, filha de pai alforriado, mas de mãe escrava.
Crianças abandonadas, ilegítimas, escravas, negras e órfãs pobres constituíram, nos quatro primeiros séculos de nossa história, a quase totalidade da infância brasileira. Restava a ínfima minoria das crianças da elite, proprietárias, geralmente brancas e destinadas a compor a pequena classe dos dominantes da sociedade.
A maioria silenciosa estava, de maneira geral, excluída igualmente do mundo das letras e do saber. Havendo poucas escolas, a maioria dos alunos provinha dos meios privilegiados e era encaminhada para os cursos secundários e para as escolas superiores existentes. Os pobres, quando muito, eram introduzidos nas primeiras letras, para em seguida iniciarem-se, com pouca idade, no mundo do trabalho braçal.
Esta situação mudou nas últimas décadas. A Declaração Universal dos Direitos da Criança (1959), da qual o Brasil foi um dos signatários, proclamou a igualdade entre todas as crianças, independentemente de cor, sexo, riqueza, origem, religião etc. E isso foi inscrito em nossa Constituição de 1988 e no Estatuto da Criança e do Adolescente (1990). E mais: foi declarada que toda a criança tem direito igual à educação. Com esse avanços a criança brasileira tornou-se "prioridade absoluta" da nação, e sujeito de Direitos, proibindo-se qualquer forma de discriminação ou exclusão. O Brasil ainda carrega muitas formas de violação desses direitos conquistados. Daí a necessidade de um engajamento pessoal, para o avanço da cidadania e do respeito aos Direitos conquistados pelas crianças.


Moysés Kuhlmann Jr.

é doutor em História pela USP
e pesquisador da Fundação Carlos Chagas

A criança escrava sofreu ao viver sua infância nas condições impostas pela aviltante relação de trabalho que perdurou por séculos em nosso país. Obrigada, quando bebê, a ficar aprisionada nas costas de sua mãe ocupada na faina diária, excluída do leite materno, no todo ou em parte, separada do pai, crescia vendo a vida dos de sua cor e a dos senhores. Se por vezes lhes permitiam brincar com os filhos dos patrões, também ali lhes caberia ocupar o lugar subalterno. Obrigadas a trabalhar desde cedo, muitas enfrentaram as adversidades de suas vidas com sua energia de infância. Encontravam momentos de desenvolver a destreza muscular, a fantasia e os dons criativos, de distrair-se nas ruas, correr e jogar, de nadar nos riachos ou colher frutas dos mais variados sabores.
Como um castigo, a escravidão começa a extinguir-se libertando os bebês, mas não as suas mães. A Lei do Ventre Livre faz os patrões quererem ver-se livres desses seres indesejáveis, como se lê no artigo "A Creche", escrito no jornal A Mãi de Família, publicado no Rio de Janeiro em 1881: "Que tarefa não é a de educar o filho de uma escrava, um ente de uma condição nova que a lei teve de constituir sob a condição de ingênuo! Que grave responsabilidade não assumimos conservando em nosso lar, junto de nossos filhos, essas criaturazinhas que hoje embalamos descuidosas, para amanhã vê-las talvez convertidas em inimigos da nossa tranqüilidade, e quiçá mesmo da nossa honra!".
A criança pobre passa a ser representada como ameaça que irá engrossar as fileiras dos agora assalariados na luta por justiça social, ou como futuro criminoso a assaltar a propriedade dos privilegiados. Dizia o médico baiano, Alfredo Ferreira de Magalhães, em 1922: "A proteção dos meninos infelizes é ao mesmo tempo a proteção dos nossos filhos; devemos ter o máximo interesse em alcançar para os meninos desgraçados uma certa dose de moralidade e felicidade, de saúde e de bem estar. [...] não se deverá esquecer também que 'as altas virtudes de uma elite de nada servem se nas camadas inferiores se acumulam seres cuja decadência nos inquieta'".
As instituições educacionais para essas crianças segregam-nas do convívio social com outras classes e destinam-se a promover o conformismo e a submissão. "Provindos de origem modesta, onde impera a necessidade, recebem às vezes educação luxuosa incompatível com sua pobreza. [...] O dever social do asilo é retirar o menor desamparado do meio pernicioso em que o encontra, prover a sua subsistência, melhorar as suas condições de saúde, inspirar-lhe os hábitos do trabalho, educá-lo, instruí-lo, sem esquecer as suas condições de pobreza", afirmava Zeferino de Faria, também em 1922. Ainda hoje, criança pobre é representada como criança de rua, virtual trombadinha ou menor infrator: nivelam-se idades, dos 0 aos 18 anos, igualam-se os poucos que cometem crimes, os que moram nas ruas e os que as freqüentam para trabalhar e brincar.
Em uma história de crianças fora da escola, a exclusão continuou: embora desde 1971 a escolaridade obrigatória tenha passado a oito séries, em 1990 apenas 26,2% da população acima de 14 anos havia concluído todo esse ciclo, 59,3% completaram a quarta série, correspondente ao antigo ensino primário, enquanto a primeira série já teria retido quase 20%. Crianças abandonadas pela escola, em um flagrante desrespeito aos preceitos constitucionais.


Esmeralda Blanco B. de Moura
é professora do Depto. de História da USP

O século 20 encerrou-se em meio ao impacto da crescente exclusão social e de seus desdobramentos sobre a infância e a adolescência. Crianças e adolescentes pontuaram as matérias da imprensa, tiveram suas feições estampadas em capas de revistas e em manchetes de jornais, que situavam o debate sobretudo nas questões referentes quer ao trabalho, quer à delinqüência e criminalidade infanto-juvenis. Assim, os anos 90 tornaram familiar as imagens do menino - e da menina - de rua, bem como das crianças e dos adolescentes de ambos os sexos imersos no mundo do trabalho. A chacina da Candelária, as rebeliões nas instituições disciplinares próprias para menores, assim como as imagens de meninos e meninas enegrecidos pelo carvão nas minas do país, depauperados pelo trabalho exaustivo, perigoso, insalubre e mal remunerado no campo e na cidade, imprimiram ao final do século 20 uma marca indelével. A sociedade brasileira adentrou no século 21 discutindo a responsabilidade penal do menor, a instituição da bolsa-trabalho e a importância dos investimentos na educação. Questões atuais mas que, é sempre bom lembrar, estão longe de ser recentes. Afinal, o abandono de crianças, a delinqüência e a criminalidade infanto-juvenis, bem como o trabalho em idade prematura, permearam a história brasileira ao longo de todos esses quinhentos anos tão comemorados recentemente.
O século 20 iniciou sua trajetória em meio ao debate sobre a presença incômoda e preocupante de crianças e adolescentes não só nas mais diversas e inadequadas atividades produtivas, mas também nos estabelecimentos correcionais, nas ruas das grandes cidades, maltrapilhas, famintas, esmolando, prostituindo-se, às voltas, enfim, com a delinqüência e a criminalidade. Em fins do século 19, crianças e adolescentes eram, como os adultos, personagens das fábricas e oficinas, das cadeias, dos becos e das esquinas menos recomendáveis das cidades. Ambas as questões - inserção precoce na atividade produtiva e envolvimento com o crime nas suas mais variadas versões - apresentavam um denominador comum: eram referência precisa à pobreza estrutural que o país então já abrigava.
Simultaneamente, o século 20 daria lugar a algumas diretrizes por parte do Estado no enfrentamento dessas questões: veria surgir, na cidade de São Paulo, já em 1902, o Instituto Disciplinar do Tatuapé, versão inicial da Febem, assim como a primeira consolidação de leis de assistência e proteção a menores, o Código de Menores de 1927. Veria, igualmente, o debate instalar-se nas Constituintes, nas sessões do Congresso Nacional, das Câmaras de Deputados, das Assembléias Legislativas. O teor das discussões encaminhava-se inevitavelmente para a precariedade das condições de trabalho - jornada excessiva, ambientes que favoreciam a incidência de doenças profissionais, número excessivo de crianças e de adolescentes vitimados em acidentes -, lembrando a gravidade do abandono e denunciando a exploração a que muitas crianças se viam submetidas pelas ruas. Retomando a temática da responsabilidade penal e criticando os resultados de medidas como o recolhimento em asilos e em institutos disciplinares, a polêmica encontrava na importância do direito e do acesso à educação um inevitável ponto de convergência.
O debate, portanto, não é recente. Isso para citar apenas alguns momentos mais representativos em torno das discussões centradas na infância e na adolescência. Pequenos trabalhadores ou meninos de rua, crianças e adolescentes de ambos os sexos - projeção do futuro da nação, sobretudo no olhar dos legisladores - jamais estiveram ausentes dos espaços de discussão do país. Mas esses anos todos têm demonstrando, no entanto, que as soluções implementadas passaram e têm passado ao largo de conferir à infância, sobretudo à mais humilde, uma inserção social mais digna.


Maria Lúcia Mott
é doutora em História e professora da
Faculdade Adventista de Enfermagem/SP

Em 1934, chegou às mãos de Pérola Byington, então diretora da Cruzada Pró-Infância, um ofício do juiz de menores Eduardo de Oliveira Cruz, solicitando a internação, na Casa Maternal, mantida por aquela entidade, de uma menina de 12 anos, "débil mental" que fora recolhida no Asilo Bom Pastor, por ter sido vítima do crime de estupro e se achar em adiantado estado de gravidez.
O acompanhamento da gravidez e o acolhimento de mães solteiras não foram as únicas atividades desenvolvidas pela Cruzada Pró-Infância, associação beneficente sediada na cidade de São Paulo. Fundada nos anos 30, sob os auspícios da Associação de Educação Sanitária, com o objetivo de combater a mortalidade infantil, adotou os princípios dos Direitos da Criança e da Gestante, conhecidos como Convenção de Genebra (1924). Seu programa de ação incluía uma gama variada de atividades, desde as mais gerais, de longo prazo e grande alcance, até outras mais imediatas e específicas. Pleiteou aos poderes constituídos a obtenção de leis favoráveis à gestante e à criança, organizou um sistema de atendimento para gestantes pobres em geral, inclusive para que não lhes faltasse assistência no parto (parteira em domicílio ou encaminhamento para hospital), e o amparo aos filhos pequenos durante o tempo que estivessem afastadas de casa para dar à luz; criou um dispensário com serviços de clínica geral, higiene infantil, pré-natal, fisioterapia, dietética, odontologia; organizou um lactário humano para obtenção e distribuição gratuita de leite para recém-nascidos carentes. Em 1931, organizou no Parque Dom Pedro uma "Escola da Saúde" para crianças, que foi posteriormente incorporado pela prefeitura, dando origem aos parques infantis municipais. Manteve para crianças doentes um berçário, providenciou o envio de leite para meninos e meninas mordidos por cães hidrófobos, lançou campanha de trânsito para combater o atropelamento infantil, dentre outras tantas atividades. Atualmente a Cruzada mantém oito creches e um abrigo que recebe menores em crise familiar, encaminhados por um juiz.
A história das crianças pobres no Brasil, no século 20, passa necessariamente pela Cruzada Pró-Infância, bem como por dezenas de entidades beneficentes criadas, organizadas, administradas por mulheres das camadas mais favorecidas e/ou instruídas (professoras, médicas, educadoras sanitárias etc.), como a dra. Maria Rennotte, que idealizou a criação do Hospital da Criança de Indianópolis (da Cruz Vermelha) e Maria Antonietta de Castro e Pérola Byington.
Uma pesquisa em profundidade dessas entidades possibilita levantar uma série de questões importantes sobre as crianças pobres no Brasil no século 20, a destacar: 1) as mudanças no significado da infância e sua relação com as transformações nas formas de assistência e no enfoque assistencial; 2) o papel desempenhado pelas entidades assistenciais num período em que o poder público ainda discutia quais eram suas atribuições na área social (verifica-se, por exemplo, que o Estado acabou por incorporar muitas das atividades e programas organizados pela filantropia); 3) o papel que as mulheres educadas e de elite tiveram no estabelecimento das políticas públicas para a infância e maternidade, num período em que, vale ressaltar, nem mesmo tinham os direitos políticos de votar e serem votadas.
O nascimento não se restringe a um ato fisiológico, testemunhado por uma sociedade, naquilo que ela tem de melhor e de pior, diz o historiador Jacques Gélis. Pode-se dizer que a maneira que uma sociedade acolhe e cuida de suas crianças também dá um importante testemunho - naquilo que temos de melhor e, infelizmente, de pior.

Maria Izabel de Azevedo Birolli
é doutoranda em história pela PUC/SP

São Paulo, início do século: muitas são as lembranças dos dias de ontem que nos remetem às experiências da aprendizagem precoce de uma vida de trabalho: "logo que chegamos de Santos, em 1913, aprendi a consertar sapatos com meu irmão mais velho. Fiz uma caixa com ferramentas, pregos e linha e saí pela rua consertando sapato" (Memórias do Comércio, São Paulo, FCESP: SESC: SENAC: SEBRAE, 1995, p.91). Era ali nas ruas da cidade onde quase sempre, e com a anuência da família, se dava a iniciação ao trabalho de uma boa parte dos meninos das camadas médias e, principalmente, das de baixa renda. Uma "mentalidade" que parece ter se mantido por muito tempo no Brasil, segundo Tolstoi de Paula Ferreira, é de que "a menina por ser mulher, precisa de toda a proteção e defesa, ao passo que o menino, por ser homem, por si se arranja" (Tolstói de Paula Ferreira, "Subsídio para a História da Assistência Social em São Paulo", Revista do Arquivo Municipal, ano VI, volume LXVII, São Paulo, junho/1940, p. 71). As necessidades materiais e a prescrição do discurso masculino tornaram-se cúmplices nesta tarefa: nas ruas, conhecendo e convivendo com o espaço urbano - uma vez que num breve futuro dali eles tirariam seu sustento a fim de cumprirem o papel de provedor da família, função prescrita ao sexo masculino - eles eram incentivados ou mesmo impelidos a aprender a se "arranjar", ao mesmo tempo que às meninas recomendava-se que fossem isoladas do contato com a rua e encarregadas das tarefas do lar. Essa era a divisão de tarefas que pretendia reger a vida social, mas que nem sempre, face às condições concretas, eram acatadas.
A iniciação em torno dos sete anos, aceita como forma de socialização - um tanto precoce para os dias atuais - era um fato comum, prevista como parte do viver dos meninos pobres e, quase sempre, mediada pelos pais. Era no seios das famílias pobres ou remediadas, de acordo com Humberto Gentil de Araújo, da União dos Empregados do Comércio, o lugar onde os proprietários dos estabelecimentos de varejo encontravam a mão-de-obra ideal, meninos de 11 ou 12 anos, aos quais ofereciam casa e comida como uma estratégia para reduzir, ou mesmo não pagar salário, e manter o empregado por perto, controlando as faltas e o roubo de mercadorias (Humberto Gentil de Araujo, "A Infância no Commercio" in 7º Boletim do Primeiro Congresso Brasileiro de Proteção a Infância, 1922, Rio de Janeiro, Empr. Graphica Ed., p.131). A essas relações ainda pouco elucidadas, deu-se acertadamente o nome de mercados familiares. Ou seja, muitas famílias que mal conseguiam dar de comer aos filhos, morando em cortiços sufocantes, em espaços exíguos, recebiam de bom grado as ofertas de trabalho feitas por donos de pequenas empresas, tais como quitandas, leiterias, pequenas oficinas e outros.
É necessário que se leve em conta a miséria como um dos fatores que mais influíam no afastamento temporário das crianças de suas famílias. No entanto, esse recurso - o de entregar os filhos ao cuidado de terceiros - do qual os pais lançavam mão, geralmente em momentos de crise, parece que acabou sendo incorporado como parte de "um universo simbólico razoavelmente coerente, resultando da experiência acumulada por gerações" (Cláudia Fonseca, "Pais e Filhos na Família Popular" in D'Incao, Maria Angela, Amor e Família No Brasil, São Paulo, 1989, p. 97). Em outras palavras, quando se viam impossibilitados de fornecer aos filhos certos aprendizados relevantes para seu futuro, muitos pais entregavam essa tarefa a um comerciante, ou a uma família, que acabava de criá-los com a obrigação moral - uma vez que exploravam sua mão-de-obra - de lhes oferecer um aprendizado ou facilitar seu acesso a qualquer prática que os tornassem mais aptos à vida adulta. Assim, muitas crianças pobres passavam parte da infância e da adolescência longe de sua família de origem. Encontrar alguém que se interessasse em realizar essa "troca" e que, de fato, cumprisse com o prometido, era visto pelos pais como uma grande vantagem o que, em parte, os tranqüilizava quanto ao futuro de suas crianças. Em Diamantina, onde Alice Caldeira Brant passou sua infância, viu certa vez Siá Fortunata, mãe de um menino chamado Bertolino, pobre mulher que costumava ir buscar a esmola de duzentos réis que sua avó distribuía aos necessitados todos os sábados, rejeitar a oferta: "Dê às outras, Dona Teodora; eu hoje vim só visitar a senhora. Não preciso mais, graças a Deus. Daqui a pouco eu também poderei dar esmolas. Vovó lhe perguntou: Tirou a sorte, Fortunata? Ela respondeu: É o mesmo que ter tirado, Dona Teodora. Meu filho, graças a Deus, achou um protetor" (Helena Morley (Alice Caldeira Brant), Minha Vida de Menina, São Paulo, Companhia das Letras, 1998, p.30).
Da parte dos pequenos comerciantes, que não raro possuíam um único funcionário, a exploração da mão-de-obra infantil era muitas vezes condição de sobrevivência do seu negócio, apesar de gozarem de uma boa imagem perante os pais e a sociedade, uma vez que suas funções de patrão eram confundidas com as de tutores e filantropos.


Válter Vicente Sales Filho
é comunicador social e gerente adjunto de
programas socioeducativos do Sesc/SP

No Brasil, os humanos de 0 a 18 anos são classificados em duas categorias: as crianças que são bem comportadas, conformadas e promissoras, e os "de menor", que são infortunados, rebeldes e inconvenientes. Ainda que os da primeira categoria não gerem muita dor de cabeça, a não ser quando se distraem queimando índio vivo, ou usando drogas em festas sofisticadas, não há dúvidas de que os grandes problemas estão na segunda categoria. E se existem problemas, eles assombram, até mesmo pelos números. Embora a economia no Brasil seja uma das mais poderosas da América Latina, a taxa de mortalidade infantil é comparável a dos países mais pobres do continente. A violência é a principal causa de morte entre jovens até 25 anos. Somente na cidade de São Paulo vivem nas ruas alguns milhares de crianças, sujeitas a todo tipo de degradação. Notícias sobre chacinas e rebeliões envolvendo "menores" correm o mundo. Com tudo isso é realmente difícil chamar de crianças as vítimas desse flagelo. São menores mesmo. Cidadãos menores. Pessoas menores. Há poucos anos correu pelo mundo uma marcha contra a exploração do trabalho infantil, coordenada por Kaylash Sathyart, indiano conhecedor de muitas formas de miséria pelo planeta. Em sua passagem pelo Brasil ele ficou estarrecido ao observar que a miséria aqui ia além da miséria material. Ela comprometia a identidade cultural. O que Sathyart percebeu foi que, além de não ter o que comer ou onde estudar, as crianças brasileiras estavam marginalizadas da história, dos laços comunitários, das relações com os bens culturais de sua sociedade.
O efeito mais visível dessa mazela, especialmente nos grandes centros urbanos, é a violência. E não estou querendo estipular uma simplória e falsa relação entre pobreza e violência, mas considerar a violência como o fenômeno possível a uma sociedade extremamente desequilibrada, balizada pela exclusão, pelo autoritarismo e pelo conservadorismo.
O crescimento da violência entre os jovens fez borbulhar a discussão sobre a infância marginalizada. ONGs passaram a se dedicar à questão e os meios de comunicação de massa abriram espaço para o tema. Mas, deixando de lado o que tem sido feito de bom, o que quero destacar é um tipo de discurso muito comum e que revela a perversidade com a qual certos segmentos tratam a questão, em especial as elites e a classe média brasileira, que é média mesmo, inclusive no pensamento. Esses segmentos acreditam que para resolver os problemas da infância marginalizada basta adotar uma solução bem simples: decretar por lei o fim da infância. De um lado impedindo que nasçam mais pobres e de outro, reduzindo a idade para se chegar à maioridade. São as soluções possíveis a uma sociedade que confunde Direitos Humanos com defesa do crime, que defende pena de morte, que segrega, que exclui, que privilegia a punição no lugar da educação. Não é difícil que nesse contexto a criança se torne objeto de ódio e exploração. Portanto, quando se fala em controle de natalidade ou redução da maioridade penal, não são exatamente as idéias de equilíbrio ou justiça que estão em pauta, mas de controle, tutela e punição. A questão da redução da maioridade soa a rancor e a simples adesão ou não a essa proposta é impossível, pois ela se desdobra em aspectos bem complexos. Primeiro, achar que imputar responsabilidade diminui criminalidade é uma falácia. De que vale a responsabilidade numa sociedade na qual prevalece a impunidade? E como a impunidade é resolvida? Com cadeia? Com morte? Com castigo? A pulsão pela violência parece ser maior que o medo da punição ou da própria morte. Alguns apontam a educação como a melhor saída. E possivelmente com toda a razão. Entretanto, soa sinistro lembrar da escola da mesma forma que lembramos de um remédio na hora da dor de barriga. Educação é um processo inerente à construção de uma sociedade, tem por objetivo desenvolver o indivíduo em suas dimensões cognitivas, emocionais, físicas e sociais. Quando só lembramos da educação em situação de emergência, não sabemos se queremos desenvolver pessoas ou simplesmente nos proteger de nossas mazelas. Por aí percebe-se que a questão da violência passou a incomodar muito, não porque as crianças não têm saúde, família estruturada ou escola, mas porque fugiram da tutela e do controle. O risco social, portanto, não é o da criança marginal, mas o de quem está perto dela.

 

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