Postado em 01/04/2001
Ploft-Dóing-Píííí
Tocar ou tirar som? Fazer música ou barulho? À medida que a concepção de música evolui, artistas e seus instrumentos curiosos inovam suas composições
Não será mediante uma sucessão de ruídos imitativos da vida, mas sim mediante uma fantástica associação destes vários timbres, que a nova orquestra obterá as mais complexas e novas emoções sonoras. Para isto cada instrumento deverá oferecer a possibilidade de mudar o tom, e deverá conter uma maior ou menor extensão", Luigi Russolo, em "A Arte dos Ruídos Manifesto Futurista" (artigo compilado em Música Eletroacústica: História e Estética, organizado por Flô Menezes)
No vibrátil mundo da música, o som está em todos os lugares. O ar expirado num sopro seria apenas vento, não fosse a criatividade do homem que embocou um anteparo cilíndrico e domesticou o ruído até então primário. Ao vento já amestrado pelas flautas, somaram-se as cordas, a percussão e, no ritmo da toada, os instrumentos se sofisticaram ao extremo - depurando os tons, qualificando as melodias. O italiano Luigi Russolo, em "A Arte dos Ruídos Manifesto Futurista" (artigo compilado em Música Eletroacústica: História e Estética, organizado por Flô Menezes) escreveu: "Nasceu assim a concepção do som como coisa em si, distinta e independente da vida, e disto resultou a música, mundo fantástico sobreposto ao real, mudo inviolável e sagrado".
E, na febre criativa, as invenções se multiplicavam. Se nos debruçarmos apenas sobre o Ocidente, as manifestações musicais em seus mais variados matizes eram enriquecidas com o fabrico de novos instrumentos. Do alaúde, derivou-se o violão; do cravo, de acordes quase monocórdios, o piano-forte, com sua sonoridade complexa e completa, de variantes jamais imaginadas. É de se perguntar, por exemplo, o que seria de Beethoven sem essa ferramenta.
Mas o engenho humano desconhece limites e o espírito inventivo subverte mesmo as invenções mais bem acabadas. A criatividade é mesmo infinita e os instrumentos ganham outras versões, são inventados e reinventados, desafiados na sua finalidade. Os ruídos, afinal, vibram por todo o éter, a esperar que mentes destemidas o transformem em música.
Um exemplo dessa engenhosidade é oferecido pelo suíço Walter Smetak, que durante boa parte de sua vida morou na Bahia. Ele era um violoncelista que gostava de criar, inventar. Produzia instrumentos um tanto desproporcionais à natureza humana e aos espaços de apresentação, como por exemplo uma flauta, confeccionada em madeira por ele próprio, que deveria ser tocada por catorze pessoas. Ou seja, além de exigir uma técnica específica, tais instrumentos requeriam transporte e acomodação especial, o que os tornava mais objetos de arte do que produtores de som.
Veja-se ainda o caso do piano, que poderia ser considerado o instrumento total - a etapa derradeira da evolução musical. Porém, quem diria, mesmo esse bastião da música Ocidental não escapou dos arrebatamentos dos músicos mais desconfiados. O nosso Hermeto Pascoal, descontente, encheu-lhe de moedas, enquanto o americano John Cage recheou-lhe de tachinhas, borrachas e pinos vários, processo que denominou de Bacanal.
"Eu não faço instrumentos. Eu tiro som das coisas", afirma o alagoano Hermeto Pascoal, nome latejante e pioneiro quando se fala em obtenção, digamos, pouco usual, de sons no Brasil. "Eu toco saxofone, flauta, piano e sempre ganho muitos instrumentos de presente, mas prefiro produzir sons naturais. É um processo de criatividade, a imaginação é muito importante." O multiinstrumentista, assim aclamado por aqui e pelo mundo, conta ainda que "outro dia mesmo eu estava tirando um som do ralo do chuveiro. É um processo muito simples: você liga o chuveiro bem forte e deixa cair bastante água, daí é você vai pondo e tirando o pé do ralo e dali sai uma coisa maravilhosa!".
Sons e ruídos
Mas por que o pé de Hermeto seria mais musical que o pé de um outro mortal qualquer? Afinal, o que diferencia som de ruído; o mero barulho da música? Os leitores e os músicos mais desavisados podem pensar que o processo de criação se resume a pegar um objeto qualquer e sair batucando, mas o próprio Hermeto adverte: "Para improvisar, é preciso ter uma estrutura anterior. A pessoa tem que saber tocar, ter uma noção de harmonia e de acordes, porque é daí que vem a inspiração para a composição de uma melodia".
No mesmo sentido, Luigi Russolo sugere que "o ruído com efeito diferencia-se do som na medida em que as vibrações que o produzem são confusas e irregulares, seja no tempo, seja na intensidade. Todo ruído possui um tom, às vezes também um acorde que predomina no conjunto de suas vibrações irregulares". Regressando no tempo, o mesmo Russolo lembra que antes da Revolução Industrial não havia ruídos: "Hoje, ele triunfa soberano sobre a sensibilidade dos homens. Por muitos séculos a vida se desenvolveu em silêncio, ou, no melhor dos casos, em surdina (...) Pois, se negligenciarmos os excepcionais movimentos telúricos, os furacões, as tempestades, as avalanches e as cascatas, a natureza é silenciosa".
Assim, o músico é o alquimista com dom de Midas. Em vez de transformar matéria em ouro, capta os ruídos dispersos e os ordena em música. Mago é a alcunha de Tom Zé, outro nome bastante conhecido no rol dos instrumentistas geniais. Desde 1978, ele fabrica aquilo que ele chama de "instrozémentos", que, segundo o compositor, seriam os verdadeiros protagonistas da música, e não apenas simples participantes. A propósito do tema, o músico afirma que seu processso criativo intuitivo assemelha-se a "escolher uma namorada. Você não sabe explicar. São afinidades. Harmonizar timbres diferentes é uma tentativa de formular um discurso, uma sintaxe, uma oração. Quando se afinam instrumentos como uma garrafa, eu acho uma pena. Ó, meu Deus! ela (ou eles) estava tão bonita desafinada: agora parece uma simples flauta. Lá se foi o mistério".
"Parceiro" de Tom Zé e Hermeto na invencionice sonora, John Cage, morto em 1992, concluiu, no decorrer do aprimoramento de seu estilo, que, no âmbito da música de concerto, a idéia do aleatório e a valorização do acaso seriam imprescindíveis. Liberdade total para a composição, onde o som e o silêncio fossem distribuídos pela casualidade. Para tanto, Cage muitas vezes recorria ao I Ching, jogo milenar de sorte chinês. "Uso o I Ching em qualquer atividade que não exista um objetivo definido ou um alvo a ser atingido, como quando escrevo poesia ou componho música", afirmou o multiartista em entrevista a Rodrigo Garcia Lopes (entrevista publicada na íntegra em Vozes e Visões: Panorama da Arte e Cultura Norte-americanas Hoje). Segundo ele, "o que se busca não é a interdeterminância ou determinância e sim não-intenção. Ela é a base do silêncio, que está cheio de sons que simplesmente ocorrem. A única diferença entre aqueles sons e sons que você provoca é a intenção. O mais importante é a ausência de intenção e a aceitação do que acontece".
Instrumentando
Na busca de novas sonoridades, esses criadores podem trilhar o caminho radical da abstração e da aleatoriedade, como o fez Cage, como também partir para experimentações mais prosaicas. Conceber instrumentos, fabricar sons, reproduzir timbres, quebrar, colar, montar, inventar. Daí surgem muitas coisas malucas, entre elas, instrumentos que se tornam parte de suas orquestras e são ferramentas indispensáveis para suas composições.
Quanto aos instrumentos convencionais, Tom Zé os vira de cabeça pra baixo: "É o caso da guitarra e do baixo, usados como se regredissem na sua história, como se ainda não fossem capazes de produzir canto e harmonia e estivessem ainda no estágio de um proto-instrumento de percussão." Dentre suas endiabradas criações, o músico descreve a origem do enceroscópio, instrumento feito com enceradeiras, aspiradores de pó e liqüidificadores. "Em 1972, uma enceradeira de casa emperrou. Os ruídos que ela fazia eram curiosos. Em vez de consertá-la, peguei outra mais usada e tentei emperrar do mesmo jeito. A partir daí os tropeços e acertos foram desenvolvendo o instrumento que hoje se chama enceroscópio". Em seus shows mais recentes, são usados ainda a serroterapia (um dispositivo feito com canos de madeira, PVC e outros), o buzinório (conjunto de buzinas manejadas por um teclado) e as canetas Lazzari (pequeno instrumento com canetas esferográficas).
Formado em 1978, o quarteto mineiro Uakti, encabeçado por Marco Antônio Guimarães, discípulo de Smetak na Bahia, também desenvolveu um trabalho inovador. Todos os instrumentos construídos na oficina do Uakti são exclusivos, não se usa o mesmo molde duas vezes. Cabaças, cordas, madeira, peles, borracha, vidro, tubos de PVC, água, são a matéria-prima de suas traquitanas. Nas apresentações do grupo, são dispostos em cena cerca de quarenta instrumentos. Segundo Décio Ramos, integrante do grupo, "são dezenas de instrumentos diferentes, das três famílias, sopro, cordas e percussão, todos eles com timbres muito particulares e distintos, oferecendo um colorido riquíssimo de sons". E completa: "Acredito que para se criar instrumentos é necessário, primeiramente, habilidade manual, saber trabalhar com ferramentas, ter uma formação musical e, o principal, muita criatividade".
O som da lata - Antúlio Madureira faz música com latas e serrotes O pernanbucano Antúlio Madureira constrói uma apresentação performática na qual insere e agrupa diversos elementos da cultura popular nordestina. Entre eles, serrotes, garrafas e latas. Segundo o próprio Antúlio, "trata-se de uma forma teatralizada de mostrar os instrumentos populares, tocados por pessoas humildes. Busquei figuras do cotidiano nordestino, entre eles tocadores de lata que perambulam pelas ruas". Sua pesquisa foi até um pouco além: descobriu no circo palhaços tocadores de garrafas, instrumento que foi logo incorporado em seu espetáculo. Pandeiros, pífaros, gaitas e violas, entre outros, também entram na roda. "Unir estes instrumentos é uma maneira de tirar mais recurso deles, mas há uma técnica para isso", conta Antúlio. Outra "ferramenta" utilizada é o sintetizador, moderno, recurso que permite levar ao palco o som de instrumentos que não estão ali e também multiplicá-lo. Mas a criatividade do músico não pára por aí. Antúlio Madureira também concebeu alguns instrumentos, como a latla, uma mistura de tabla indiana com latas. Os ritmos interpretados percorrem as vastas raízes nordestinas: maracatu, coco-de-roda, samba, frevo etc. |