Postado em 01/04/2001
Através de ações múltiplas, comunidades, instituições e associações de moradores provam que a criação de opções de lazer e cultura contribui para diminuir a violência
Determinar as causas da violência é tarefa árdua. Quase não há consenso entre os especialistas. Um argumento sedutor para explicar sua ocorrência é associá-la com a miséria. No entanto, tal explicação é insidiosa, pois deriva, em grande parte dos casos, para ilações preconceituosas. Outra hipótese muito aventada está na associação com o tráfico de drogas. Mas, da mesma forma, não existem dados definitivos que quantifiquem essa relação. O fato é que a violência (e o aumento ou decréscimo de seus índices) vincula-se a uma rede de fatores socioeconômicos muito sutis, que fogem de conclusões imediatistas. À violência concreta, física e agressiva, exteriorizada no espaço público, soma-se outra, velada, que nasce camuflada pelas paredes domésticas: trata-se da violência contra a mulher ou contra a criança. Pois, então, como combatê-las? O secretário de Segurança Pública do Estado de São Paulo, Marco Vinício Petreluzzi, sinaliza para algumas saídas: "A criminalidade não é um fenômeno que surge isoladamente. Engloba fatores multicausais e está relacionada com todo o conjunto da sociedade. Deve ser pensada e combatida, portanto, por todos os setores dessa mesma sociedade".
Se por um lado os especialistas ostentam opiniões controversas, por outro as "questões sociais" aparecem em todos os discursos. Talvez os conceitos mais importantes nesse caso sejam respeito e cidadania. E, por trás deles, aparecem outros, como a educação, a saúde e o lazer. Sim, é preciso deixar claro: o lazer é uma prioridade, no mesmo nível dos seus pares citados, mas que, infelizmente, costuma ser desprezado na maioria das políticas públicas.
Estendendo a cidade de São Paulo como pano de fundo, nos bairros ricos o lazer está mais presente, uma vez que, além de o desenho urbano contribuir com parques, praças, teatros, cinemas e clubes, seus moradores podem "adquiri-lo". Mas, quando se toma a periferia como parâmetro, as alternativas minguam. Sem investimento público, a população mais desfavorecida vê-se desprovida de opções de lazer e aquelas que se oferecem normalmente encontram-se deterioradas.
O lazer não pode ser encarado como panacéia, antídoto contra a violência. Não é porque um menino tem acesso a um parque ou ao teatro que ele não irá delinqüir ou se drogar. No entanto, junto com outros elementos, o lazer auxilia na composição da essência da cidadania. Nas palavras de Dante Silvestre Neto, sociólogo e especialista em lazer, que fez seus estudos na área sob a orientação de Joffre Dumazedier, professor da Sorbonne e pesquisador do Centro Nacional de Pesquisas Científicas, da França, "o tempo é o patrimônio mais valioso do qual dispomos, mesmo porque não sabemos de quanto tempo dispomos. Colhidos pelo mal-estar da finitude, pela imponderabilidade do tempo, cada um de nós experimenta, em relação a ele, uma dupla expectativa: queremos mais tempo e queremos um tempo melhor. Ou seja, um tempo para nós mesmos, para fazermos aquilo que queremos, do jeito que queremos, onde queremos e na companhia de quem queremos. Eis porque o lazer não é uma reivindicação banal, e sim uma aspiração existencial. Uma cidade que nega aos seus habitantes as condições mínimas necessárias ao uso plenamente satisfatório de seu tempo livre é uma anticidade, é uma contracidade, é a negação da idéia de cidade. Não abriga cidadãos, apenas suporta moradores".
A seguir são relatadas algumas iniciativas que tentam conferir à população carente uma alternativa digna para a hora do recreio.
Classes unidas
Um dos exemplos pode ser conferido na periferia de Tatuapé, bairro da capital. Lá, a exemplo de muitos outros lugares, as ruas são estreitas e as vielas sem saída, mas as crianças não são mais vítimas fáceis de ardilosos traficantes ou amigos viciados. Na Vila Luísa, a comunidade já descruzou os braços. Tudo começou com um morador que conseguiu mobilizar os demais, e até mesmo a Administração Regional da Mooca, que responde pela região, e transformou em praça um canteiro de obras da prefeitura. O lugar não é muito grande nem conta com infra-estrutura sofisticada, mas é suficiente para manter as crianças ocupadas quando não estão na escola. "Temos uma pista de cooper de 400 metros e uma rampa para skatistas da região inteira", conta o idealizador da transformação, Andrea Valentino, de 54 anos. Aposentado, Andrea insistiu diariamente para que a regional desse apoio à construção da praça sob o viaduto Aricanduva. A idéia saiu do papel em setembro, com direito a inauguração oficial e tudo. O antigo canteiro de obras ganhou mudas de árvores frutíferas, duas quadras pequenas, mesinhas, bancos e até um playground, que pode ser ampliado com a ajuda de comerciantes da região. O local é aberto e conta com freqüentadores assíduos, como o estudante Gustavo Calabria Galussi, de 10 anos. "Venho aqui diariamente", conta. "Antes da praça, eu ficava a tarde toda jogando videogame." Gustavo conta que gosta mesmo é de andar de bicicleta, mas... "minha mãe não deixava porque era perigoso ficar na rua". Agora, a diversão de Gustavo é fazer manobras radicais em sua tão adorada bicicleta ou arriscar uns "vôos" em seu patinete na pista de skate. "Também jogo futebol ou vôlei quando tem time aqui na praça."
O exemplo de Gustavo mostra que, mesmo num país de vários problemas como o Brasil, e em sua principal e mais problemática metrópole, estratégias bem-sucedidas lá fora podem obter êxito aqui também. Nova York, por exemplo, (a comparação parece descabida, mas não é) esteve envolvida nas manchetes policiais até meados da década passada. O prefeito Rudolf Giulianni, um ex-promotor público, determinou, entre outras medidas, que quadras de basquete e praças, antes fechadas à noite ou nos finais de semana, fossem abertas para uso ilimitado da população. Não se trata da invenção da roda, mas de uma parceira inteligente entre o governo e a sociedade para uma ocupação saudável de espaços que de fato são públicos e, logo, exigem a responsabilidade de todos. É claro que é impossível não considerar o fato de que, juntamente com essas medidas, Giulianni criou ainda vários outros espaços e também realizou uma ampla reeducação e recapacitação da polícia. Seguindo o exemplo, outras capitais mundiais, como Paris e Madri, fizeram os níveis de criminalidade despencar com ações semelhantes. Porém, o que fica de exemplo, e que pode ser seguido por outros países, é que essas cidades perceberam que o lazer é um instrumento eficaz no combate à violência. E essa noção não encontra fronteiras. Aqui mesmo ela começa a vigorar. No bairro do Imirim, outra região carente de São Paulo, um colégio particular, o Colégio Piaget, deixava o silêncio ocupar sua quadra poliesportiva nos dias e horários sem aula. Até que um dia um estridente apito, daqueles de juiz de futebol, afugentou a ociosidade do espaço. O "dono do apito", o professor de educação física Raphael de Castro, de 18 anos, descobriu que a situação podia ser diferente. Agora, todos os sábados pela manhã é dia de treino de uma escolinha de futebol que mobiliza meninos carentes do bairro. Por se tratar de um espaço que lembra o palco de campeonatos profissionais, o estimulo é maior. A garotada sente que não é apenas uma simples partida de futebol de rua. "Eu ficava preocupado com essas crianças, que tinham contato com pessoas mal-intencionadas enquanto brincavam em praças e campinhos do bairro", relata o professor, que ainda é aluno na Universidade Nove de Julho. "Além disso eu queria unir os conhecimentos do curso com uma proposta para tirar os meninos da rua", prossegue. "O bairro é carente e logo cedo as crianças acabam se envolvendo com drogas e violência", temia. Com o intuito de mudar esse futuro, ele começou a trabalhar. Uma vez com a idéia na cabeça, não foi difícil reunir interessados em fazer parte do time da "escolinha do professor Raphael". O próximo passo era elaborar um projeto e entrar em contato com a direção do colégio - onde ele próprio foi aluno por vários anos -, que topou no ato. "Entendemos que esse tipo de ação é muito compatível com a proposta social do Piaget", avalia Alex Donizete Ribeiro Andreaça, professor de educação física do colégio e, hoje, também responsável pela empreitada que recebeu o nome de Projeto por um Futuro Melhor.
As regras são simples mas sempre pautadas por preocupações que vão além do esporte. Para jogar futebol, é preciso estudar e ter bom rendimento na escola. "Caso contrário, entro em contato com os pais para saber se há algum problema em casa e qual providência podem tomar para melhorar o desempenho da criança", acrescenta Raphael. Com o passar do tempo, o trabalho foi ganhando corpo e atualmente tem cunho social bastante forte. "Não era raro encontrar alunos que começavam a treinar descalços ou que ainda enfrentavam dificuldades para comprar material escolar", completa Alex. "Por isso, realizamos campanhas na escola para conseguir o que as crianças precisam. Dessa forma, também despertamos em nossos alunos o sentido da solidariedade e da cidadania". Além do bate-bola na quadra, há outro fora dela. Os treinos sempre são intercalados por uma conversa ou mesmo uma palestra sobre violência, Aids ou drogas, os principais perigos aos quais os jovens, não só os da periferia, ficam vulneráveis. "Procuro trazer profissionais de áreas específicas para explicar certas coisas a eles", conta Alex. Para quem freqüenta a escolinha, o lazer e o esporte reservam oportunidades também para se informar sobre esses perigos. E já é possível ver os resultados: "Até brinco nos campinhos do bairro, mas tenho consciência de que não é legal me envolver com drogas", afirma Danilo Vital do Nascimento, de 14 anos. Convidado para jogar no time juvenil da Lusa, Danilo atribui o sucesso à disciplina e acrescenta: "É importante saber o que se quer e ter objetivos para não cair na criminalidade".
Longe do videogame
O padre Júlio Lancellotti, da Pastoral do Menor, resume o papel que cabe ao lazer e à cultura no combate à violência: "O lazer deve ser visto como meio de produção de cultura e resistência - não o lazer do controle social que não leva à nada -, busca experiências de encontro nas quais os conflitos sejam trabalhados, refletidos e canalizados, nas quais a força da agressividade se transforme em criatividade e liberdade para criar e construir a paz, em novas possibilidades de organização, de produção e de início de cooperativas de trabalho".
Assim, mais conscientes e bem orientadas, as crianças beneficiadas por esse tipo de iniciativa tornam-se mais "fortes" e menos vulneráveis. É nisso que o Movimento Infanto-Juvenil Crescendo com Arte, o Mica, acredita. Sem sede nem patrocinadores, a entidade surgiu há nove anos, na Zona Norte, com a proposta de incentivar crianças e adolescentes a se expressar por meio da arte. A idealizadora do projeto, a professora Maria José Soares, conta com outras colegas voluntárias, capacitadas em áreas específicas, para levar oficinas de artes plásticas, música, teatro e dança a aproximadamente duzentas crianças da região. "O intuito é despertar a criatividade desses jovens", explica. As aulas ocorrem em locais determinados pelas professoras do programa e esse locais são os mais diversos e alternativos. "As de artes plásticas, por exemplo, são realizadas na garagem de uma delas", conta Maria José. "Outras oficinas ocorrem em bibliotecas, escolas e até no Arquivo do Estado de São Paulo." "O que importa é a estratégia para manter a criança com o pensamento voltado para a arte e, conseqüentemente, para a paz", emenda a professora de teatro Nira Niróska. Orgulhosa dos alunos, ela ressalta o desenvolvimento deles dentro e fora do palco. "Algumas mães nos cumprimentam e nos agradecem porque os filhos estão mais dóceis e amáveis", revela. Os jovens atores atribuem o novo comportamento à possibilidade de extravasar as emoções. "Na escola, nem sempre temos essa oportunidade", comenta Augusto Ribeiro da Costa, de 12 anos. "Com o teatro, acabei perdendo a vergonha de falar com os colegas e aprendi a confiar nas pessoas." As oficinas são uma troca constante entre alunos e professoras. "Às vezes, são eles quem nos ensinam", comenta Nira. "Isso responde por que os alunos tornam-se mais dóceis com o passar do tempo", comenta a professora de artes plásticas Herminda Tavela Abrantes. Depois de três anos cursando artes plásticas no Mica, Lion Castro Silva, de 11 anos, só dá alegria para a mãe, Lúcia. "Ele ficou mais doce com as pessoas e melhorou na escola", diz.
A arte também é usada contra a violência por um grupo de jovens de Santo André, na região do ABC. Sempre com música, teatro, dança e cidadania na cabeça, um dia eles se reuniram para discutir os problemas do município e acabaram realizando um Fórum da Juventude. "Isso foi em 1997 e ali nasceu um sentimento de querer transformar, de lutar pelos nossos direitos e conquistá-los, lembra Robson Luiz, que ministra a oficina de canto e coral do Centro de Referência da Juventude (CRJ), hoje o "Q. G. da galera". Robson é um dos líderes da Associação Negroatividades (ACN), que alia as atitudes do jovem negro às demais discussões sociais.
O CRJ nasceu dos bate-papos com outros movimentos jovens da cidade e provou que essa história de violência entre "tribos" não precisa ser uma verdade imutável. "Levamos nossas reivindicações ao Poder Público e conquistamos nosso espaço", explica Renato Zerbinato, de 24 anos, um dos líderes do movimento punk no município. O local funciona, na verdade, como um centro de convivência, onde a orientação e a troca de idéias ocupam o espaço do autoritarismo rumo à organização e à disciplina. Além dos cursos de artes oferecidos gratuitamente a adolescentes, o CRJ também serve como ponto de encontro da juventude. Ali se reúnem quase todos os movimentos jovens de Santo André. Todos com o propósito de discutir sua situação na sociedade. É um entra-e-sai constante, com camisetas e cabelos que definem a qual grupo cada um pertence. Mas todas as "tribos" convivem em harmonia. Enquanto numa sala um pessoal discute animadamente as diretrizes das ações da Pastoral da Juventude a favor dos excluídos, no andar de cima punks com camisetas pretas nas quais se lêem frases anti-religiosas, entre outros adereços, debatem a liberdade e a igualdade entre os povos. "Entendemos que, em vez de se oprimir, o jovem precisa de espaço para extravasar e mostrar sua arte", acredita o assistente administrativo da entidade, Marcelo Viana da Silva, de 24 anos. Também um dos líderes do Negroatividades, Marcelo começou a se interessar pelas causas sociais quando ainda tinha 11 anos. "Sempre participei do movimento hip-hop", conta. "Acho que é um movimento muito completo na forma de atuar e de se comunicar com a juventude", avalia.
Barbara Souza é jornalista
Combate à violência - O lazer e a cultura tornam-se uma saída contra a violência "Nossos centros comunitários e centros de defesa da criança e do adolescente - que atuam com jovens em situação de risco, em liberdade assistida e dependentes químicos - têm conseguido resultados positivos na conjugação da cultura e lazer como forma de diminuir e superar a violência. A cultura e o lazer, como espaço físico e social de encontro, organização, produção e cooperação, fazem surgir expressões das mais variadas: música, dança e produção artística como a grafitagem. Lazer ligado à vida e à sua produção. Vida que se produz nas relações humanas, no prazer de ser e sentir, e na produção do conhecimento e de bens necessários para a convivência e a sobrevivência. O que não conseguimos observar são políticas públicas voltadas para os adolescentes, principalmente em situação de risco, que levem em conta a questão da cultura e do lazer como necessidade básica e fundamental da pessoa humana e como dimensão de todo programa socioeducativo, preventivo e terapêutico. O lazer não é o supérfluo, espaço de controle para onde se mandam os jovens acreditando que eles não resistiriam às suas seduções. Penso o lazer como parte essencial da dimensão humana e assim ele deveria ser considerado e incluído em nossas ações e proposições." Pe. Júlio R. Lancellotti |