por Denise Martha
Imagine-se dentro de uma grande sala escura. Diante de você há uma vasta tela. Nela se projeta nebulosa imagem de majestosa fonte neoclássica. Ao centro, um monumento do deus Apolo, cercado por cavalos de patas imponentes no ar. Ao redor, chafarizes jorram água em fluência crescente.
Sobre a imagem se inscreve "Atualidades Atlântida".
Sob os olhos do Departamento de Imprensa e Propaganda - órgão do Estado Novo de Getúlio Vargas - que proibiu a exibição de O grande ditador fundava-se a 16/9/1941 a Atlântida Empresa do Brasil S.A..
Cem mil ações nominais postas à venda pelo valor de cem mil réis cada, graças à mobilização de Moacyr Fenelon (Cronista de rádio, ex-técnico de Luiz de Barros1 ), dos irmãos Paulo e José Carlos Burle (este, compositor, ator e crítico de rádio) e também do Conde Pereira Carneiro, proprietário do "Jornal do Brasil". Comunista de carteirinha, Fenelon disse no manifesto de fundação: "iniciativa política e útil ao desenvolvimento do cinema brasileiro e conseqüentemente do país".
A meta era a produção contínua para criar uma indústria de cinema, somando qualidade e identidade popular.
Primeiro vieram os cinejornais valendo-se da obrigatoriedade de exibição do complemento nacional, antes do filme estrangeiro.
Moleque Tião (1943), roteiro de Alinor Azevedo inspirado no neo realismo italiano, onde prevaleciam questões sociais sobre as cenas musicais, foi o primeiro longa de ficção. A direção de José Carlos Burle e o desempenho de Grande Otelo fizeram do filme sucesso de público e crítica.
Seguiram-se os menos saudados: É proibido sonhar (1943), Gente honesta (1944) e Fantasma por acaso (1946), requintadas comédias de Moacyr Fenelon. Luz dos meus olhos" 1947) e Também somos irmãos (1949), irônicos dramas de J. C. Burle.
Baixam as águas das receitas. A saída foi alternar os lançamentos das fitas carnavalescas com as sérias, na base de 3 para 1. Assim, em 1944, José Carlos Burle e Ruy Costa filmam a primeira chanchada2, com título apropriado à situação da produtora : Tristezas não pagam dívidas. No rastro, a oportunista Não adianta chorar (1945) de Watson Macedo, era lançada às pressas no carnaval, com a volta da dupla Oscarito e Otelo3. Advindo dos estúdios de Carmem Santos, Watson que aspirava por filmes sérios ergueu a chanchada ao êxito (Segura esta mulher (1946), Este mundo é um pandeiro (1947) e Carnaval no fogo (1949)4. Ele optaria por sua própria produtora em 1953.
A nova estratégia de lançamentos criou pela primeira vez no Brasil um casamento entre público e cinema, consagrando o "casting" formado por Eliana, Anselmo Duarte, José Lewgoy, John Herbert, Cyll Farney, Adelaide Chiozzo, entre outros.
Em 1947, Luiz Severiano Ribeiro, dono de uma rede exibidora no Rio, Norte e Nordeste, tornou-se sócio majoritário da Atlântida e concentrou, além das funções de exibidor/distribuidor, a de produtor. Foi assim que surgiu o fenômeno histórico-industrial sem precedentes no nosso cinema. O fato passou desapercebido pela crítica da época, mas a comédia romanceada, os espertalhões, os vilões mulherengos, os conservadores, manicures, domésticas, camelôs, "as coroas", o mocinho e a mocinha conquistavam platéias.
Desencantado com o rumo das "águas de Atlântida", Fenelon afastou-se em 1947. Adquire mais tarde os estúdios da PAM Filmes onde criou a Flama Filmes. Encarnando uma luta pessoal pelo cinema nacional, fundou a Associação do Cinema Brasileiro, que inspirou a Lei de Obrigatoriedade da exibição dos nossos filmes e o I Congresso Nacional do Cinema Brasileiro (1952). J. C. Burle despede-se da Atlântida com uma sátira aos filmes da empresa: Carnaval atlântida (1952).
Jovens como Carlos Manga, J.B.Tanko e Roberto Farias marcariam a fase áurea da chanchada, parodiando Hollywood com temas musicais agora diversos.
Nos anos 50, o suporte de energia e transportes implantado para o crescimento industrial e o conseqüente fluxo migratório constituíram um público em potencial para a chanchada.
Todavia, seria a TV o armagedon a engolir um a um, diretores, cômicos e o próprio gênero. A Atlântida deixava assim submerso, o elo perdido entre o cinema brasileiro e o grande público...
Notas: 1 - Luiz de Barros dirigiu o primeiro filme sonoro brasileiro: Acabaram-se os otários (1929); 2 - Peça ou filme onde predominam graças vulgares e não eruditas; 3 - A primeira aparição da dupla foi em Noites cariocas (1935) da produtora carioca Uiara que teve vida curta; 4 - Há uma curiosa relação entre este título e o incêndio de 1952 que destruiu todo o barracão da produtora e o acêrvo ali depositado.
Denise Martha é Educadora e técnica de
Programação do CineSesc