Postado em 01/03/2001
A trajetória do italiano Franco Berardi é no mínimo eclética. Na década de 60, ingressa no grupo Poder Operário, quando estudava na Faculdade de Letras e Filosofia da Universidade de Bolonha, onde se gradua em Estética. Em 1970, publica seu primeiro livro, denominado Contra o trabalho e, em 1975, funda a revista A/traverso, que se torna o núcleo do movimento criativo de Bolonha: a relação entre tecnologia e comunicação, além do movimento social estavam, àquela época, no centro do seu trabalho intelectual. Em 1977, foge da cidade, pois a polícia o perseguia por instigação ao ódio de classe através do rádio. De lá, vai a Paris, onde conhece Felix Guattari e Michel Foucault e publica Enfim o céu caiu sobre a terra.
Na década de 80, volta à Itália onde colabora com várias revistas e publica outros livros. Após morar em Nova Iorque e viajar pela Índia, Nepal e China, retorna ao país natal e passa a se dedicar ao fenômeno da rede telemática. Em meados daquela década, publica o artigo "Tecnologia comunicativa", que preconiza a expansão da web como fenômeno social e cultural decisivo.
Recentemente, Franco Berardi dedicou seus trabalhos à cibercultura e à infosfera, como demonstram os textos Cyberpunk, Mais cyber que punk, Política da mutação e Mutação e cyberpunk, entre outros. Hoje, ele dá aulas na Universidade de Bolonha, onde organiza a publicação internacional Cibernautas, com quatro volumes já publicados.
A seguir, entrevista exclusiva do pensador italiano para a Revista E.
Recentemente, em Davos, na Suíça, houve o encontro anual em que se discute o futuro do capitalismo e da globalização. De que maneira as novas tecnologias ajudam nesse processo?
Isso que se chama de new economy é, na verdade, a produção global colocada em rede. Esse processo não teria tido espaço sem o progresso das novas tecnologias.
Gostaríamos que o senhor comentasse a virtualidade em face da individualidade, da transgressão e da liberdade?
O processo de virtualização não é definível por si mesmo. Suas formas têm um contato estreito com as formas da vida social. Se a vida social é pobre, a virtualização também servirá como um substituto igualmente empobrecido. Se a vida é rica, a virtualização servirá como um amplificador. O que se passa atualmente é a integração entre o sistema virtual e a economia capitalista. Mas, a colonização capitalista do ciberespaço não está destinada a invadir todas as dimensões da Internet. O fato novo está na inesgotabilidade da web. A web pode ser colonizada, mas novas vias de fuga não param de proliferar.
Virtual, na sua opinião, quer dizer liberdade ?
Virtual significa a possibilidade de uma liberdade que não temos conseguido no mundo territorial.
Em sua opinião, a Internet pode ser considerada nociva?
Eu não acho que a Internet, em si, possa ser considerada nociva. Nociva é a dominação capitalista da economia, que penetra pela Internet como sempre penetrou em todos os campos da existência social, nos territórios, nos modelos de vida.
Para o senhor, a Internet (ou o mundo virtual) obliteram a realidade? Ou seja, aquilo que se vê em uma tela é apenas um jogo de linguagem?
A Internet cria uma nova situação comunicativa, na qual o comunicador é destacado do objeto de sua comunicação. Mas toda vida social é um jogo lingüístico. O dinheiro é um jogo lingüístico. Porém, tratam-se de jogos lingüísticos que modelam a cognição, a percepção e, sem dúvida, a economia. A Internet é um jogo lingüístico que nos permite realizar intercâmbios em âmbito global. Isso significa produzir realidade e não obliterá-la. Evidentemente, tudo isso tem um outro lado. Um desequilíbrio se produz entre a dimensão virtual, a emocionalidade e o corpo. No mundo da virtualidade, o corpo não é mais impenetrável, pela simples razão que eu transporto a minha inteligência, a minha corporidade ao mundo que eu prefiro.
Como se interagem o ciberespaço e o cibertempo?
O cybermundo, por definição, não tem limites, mas o cybertempo sim. No ciberespaço está o desequilíbrio fundamental da sociedade digital, ele é o ponto de interconexão entre um número ilimitado de agentes de enunciação que se proliferam na infosfera. O cibertempo é a duração concreta de vida de que o cérebro orgânico de um ser humano dispõe. O ciberespaço é organicamente limitado e não pode se mover com a mesma velocidade da web. Em um regime de competição, como a economia liberal, isso produz um efeito de overload, de pânico, de sofrimento, de psicopatia.
Qual a principal diferença entre conhecimento e informação?
Informação é a tradução abstrata de um evento. Conhecimento significa experiência, regozijo, significa tocar no "corpo" da coisa. Para se conhecer, é preciso tempo, é preciso ter vivido, não basta se expor ao fluxo de informação.
No mesmo sentido, a velocidade da comunicação nestes últimos tempos, na era digital, não passa por cima da reflexão? O senhor não crê que a comunicação em tempo real possa eliminar aquela pausa da reflexão, ou seja, a base da elaboração do pensamento?
A questão, a meu ver, é de um outro gênero. O verdadeiro problema é que o ciberespaço se estende continuamente e cada vez mais veloz, enquanto o cibertempo está atrelado à nossa capacidade de elaboração da informação que provém do mundo, do ciberespaço. A relação entre ciberespaço e cibertempo é um problema da época em que estamos entrando. O organismo consciente, ou seja, o homem, é sempre capaz de elaborar de maneira reflexiva aquilo que provém do ambiente em que ele se encontra.
Como a tecnologia pode aprofundar o fosso social, seja entre países ricos e pobres, seja nos limites de uma só fronteira territorial?
Não foi a tecnologia que aprofundou a dívida social, mas sim a economia capitalista, a política liberal, que reduziu os recursos para a instrução social. As políticas do FMI e da OMC, por exemplo, reduziram o dinheiro disponível para a educação nos países pobres, fato que gera marginalidade.
Há algum tempo, acreditava-se que com o incurso da tecnologia na vida cotidiana, o homem teria mais tempo para se dedicar a atividades prazerosas, ao lazer e menos tempo ao trabalho. O que houve com essa quimera?
Cada vez mais, temos menos tempo de liberdade porque a contradição entre cibertempo e ciberespaço nos sufoca dentro do regime de competição econômica. As lutas operárias dos anos de 1960 e 1970 produziram a redução do tempo de trabalho nas indústrias. Mas o circuito social do trabalho aumentou enormemente, até engolir quase todo o tempo disponível.
No passado, se sustentava que o ócio era fundamental para a criatividade. Mas agora, o que acontece se não há mais espaço para praticar o ócio?
O problema é que o ócio não é somente uma necessidade para o trabalho intelectual, para o conhecimento, mas é, provavelmente, a principal força produtiva e criativa para a obtenção do conhecimento. Ora, quando o conhecimento vem através da necessidade da máquina capitalista, começa a perder sua razão, já que há um estímulo externo. Torna-se então um processo repetitivo.
A Internet é uma arma eficaz para combater o monopólio da informação?
Evidentemente, a Internet torna o monopólio da informação quase impossível. Mas, ao mesmo tempo, a explosão e a proliferação da infosfera produzem um efeito de sobrecarga.
Gostaríamos que o senhor comentasse as manifestações racistas e pedófilas que existem na Internet e os instrumentos de censura que há para combatê-las.
A censura não tem sentido e, cada vez menos, o poder lança mão desse expediente. Não se trata mais de censurar, mas de sobrecarregar o cérebro individual. Não é mais necessário esconder a verdade censurando a palavra. Basta invadir o campo do discurso com uma sobrecarga espetacular.
Faz mais de cinco anos que o senhor respondeu a uma pergunta que, à primeira vista, parece inusitada. Haviam lhe perguntado se a Internet estava morrendo. Como o senhor responderia essa questão hoje?
A Internet morre todo o tempo, continuamente, porque ela é apenas um fluxo. Muitas vezes, a hiperpotência do capital tentou invadi-la, mas isso não conseguiu matá-la. Basta notar o que se passou depois da fusão AOL-Time Warner. Muitos disseram que seria catastrófico. Dizia-se que a Internet seria engolida pela televisão. Mas, no momento, é a Internet que engole a televisão.
Como o senhor julgaria a Internet?
Eu nunca critiquei a Internet. Sempre a considerei uma esfera que está além de julgamento. A única coisa que podemos julgar é a agenda social na qual a Internet está inserida. No entanto, faz muita diferença se tal agenda é de orientação capitalista e competitiva ou se trata de uma agenda subversiva, libertária e amigável.
De que maneira a tecnologia da informação pode mudar o mundo?
A comunicação de rede é uma comunicação que institui um mundo que de qualquer modo é paralelo ao mundo real, e eu diria que se trata de um extramundo, de um mundo que existe apenas parcialmente, ocasionalmente com o mundo real. A maior parte das mudanças talvez esteja bem debaixo de nossos olhos, ou seja, na projeção de toda a atividade humana dentro da web e, também, na redução à informação binária de toda a matéria do trabalho e da matéria biológica. O que resta fazer é elaborar essa mudança em um nível conceitual, sensorial, físico e emocional.
Alguns críticos da Internet a consideram um meio vazio e pernicioso. Como o senhor rebate essas críticas?
A Internet não é, de forma alguma, um meio vazio e pernicioso... e, inclusive, não podemos considerá-la um meio. Ela é uma esfera, isto é, uma nova esfera da vida do trabalho e da comunicação e pode se tornar muito perniciosa se pretendermos enquadrá-la na esfera da velha forma social da economia capitalista.
Para finalizar, uma questão que foge das ideologias envolvidas na Internet, mas tem a ver com a técnica do veículo. Como o se
nhor analisa a prática da leitura na tela de um computador?
Quando lemos um texto escrito, impresso, é quase como um corpo a corpo que estamos vivendo com o texto, com a personagem, a emoção, o contexto, o sentimento, a intriga. Ler um texto escrito em sua página de papel é quase como mover-se internamente na história. Quando lemos na tela, é como sobrevoar um vasto território num helicóptero: de dentro do helicóptero eu vejo um amplo território, posso passar de um para o outro. Mas se quero a sensação do corpo a corpo, devo voltar para o papel. Há quem diga que o texto na tela, veiculado na rede, irá substituir o impresso. A meu ver, o que sucede é o contrário, porque quando quero ler qualquer coisa de verdade, em qualquer ponto retorno ao corpo a corpo; provavelmente a produção e o preço do livro não vão diminuir, e sim, tendem a aumentar.