Postado em 12/01/2015
"O monstruoso tomado como abjeção ameaça e atrai." *
Após o mergulho nos mares do teatro ibero-americano, com o Festival MIRADA, o Sesc Santos redireciona o olhar para o (sub)mundo do corpo, permeado por discussões sobre o gênero, a tecnologia, intervenções e transformações meta-corporais. Intitulado CorpoSubCorpo, o projeto procura trazer à tona as ideias centrais que baseiam a atual concepção de corpo como suporte de linguagem.
O caminhar do cotidiano deixou de ser natural. Esse caminhar é cada vez mais motivado pelos compromissos e afazeres que ocupamos. Diante de inúmeras preocupações e da multiplicidade de estímulos, nós (humanos) vivemos um processo de embrutecimento e dessensibilização, soterrados pela enxurrada midiática e pelo modo de vida que é norteado pela vivência anti-social a que os habitantes de grandes agrupamentos urbanos são submetidos. A cidade – o oroboros do caos - nos artificializa enquanto consome a ordem que lutamos para impor. Nessa batalha pela humanização do espaço urbano não é o concreto que irá sofrer as consequências, mas nosso corpo (carne, osso e mente).
Se na superfície (pele revestida de asfalto) ficamos cada vez mais despercebidos do que acontece ao redor, o que ocorre fora de nossa carapaça orgânica é ainda menos notado. O que o solo esconde?
Nas cidades - nos bueiros, em esgotos, nas pontes e prédios abandonados - seres pouco aprazíveis, repugnantes aos nossos asseios, vivem suas vidas em alguma harmonia. Afrontando nossos padrões de beleza, limpeza e saúde, essa profícua confusão social - que segrega, exclui e tenta ignorar os inadequados, sujos e sem posses - entra em conflito constante com o status apolíneo almejado na sociedade.
Os olhos evitam as abjeções, mas ao mesmo tempo é nelas que se constroem os fetiches, a curiosidade e a atração pelo estranho. O grotesco, especialmente ligado ao “baixo ventre” (segundo Bakhtin, região dos instintos animais, como fome, sede, sexo e excrementos), também é coibido e formatado. Os desejos reprimidos, porém, impelem pulsantes a busca incessante ao prazer sem fim e, consequentemente, à vulgaridade. O fetiche da imagem perfeita narcisista é, muitas vezes, um espelho quebrado e dionisíaco.
Nas artes, o corpo abjeto (e objeto) apresenta-se performaticamente, relacionando-se co-evolutivamente, em constante regime de negociação com o contexto em que se inserem. O corpo é mídia de si próprio na medida em que seleciona (racionalmente, sensorialmente, biologicamente) informações do ambiente a serem literalmente encarnadas. Um processo de prazer-dor-conquista-punição, de uma atitude sadomasoquista, reflexo de uma sociedade que promove o entorpecimento constante, que leva, portanto, a formas de interações que envolvam o choque (físico, psicológico, moral).
É o corpo violado e violador, enfatizando a relação mútua entre a violência e prazer, discutindo acerca da objetificação (e abjeção), do consumo e mercantilização - do sexo, do gênero - e da anestesia em relação à barbárie, assim como a falsa impressão de que a ordem é a resposta para que o “cidadão de bem” – arquétipo liberal cuja perfeição se dá pelo aniquilamento do estranho e dos seus opositores – viva em uma tranquilidade asséptica e controlada.
A partir dessas reflexões, a equipe de programação da Unidade de Santos propõe adentrar o (sub)solo – agrupamento de seres estranhos -, do aprazível grotesco e das abjeções que explicitam o paradoxo da humanidade em nossos tempos. Humanidade que sobrepõe a razão à emoção, ao sentir, e perde contato com as suas entranhas. Como Júlio Verne em sua “Viagem ao Centro da Terra”, a exploração fascinante, e ao mesmo tempo terrível desse (sub)mundo, evoca o Projeto CorpoSubCorpo, programado para uma instalação (sub)utilizada no estacionamento da Unidade.
Pretende-se ainda lançar questionamentos sobre os padrões construídos (e constituídos) sobre o corpo, tabus replicados e tratados como verdades (padrões normativos, balizadores, referenciais), transversatilidade (o corpo explodido e reconstruído ad eternum), e provocar discussões que permeiem temas como arrojamento e conservadorismo (limites) na arte.
*GIL, José. “Metafenomenologia da monstruosidade: o devir-monstro”. In:
SILVA, Tomas Tadeu da. (Org.). Pedagogia dos monstros: os prazeres e os perigos
da confusão de fronteiras. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. p. 165-184.
Acesse a programação completa do projeto.