Postado em 22/12/2014
Campanhas publicitárias que gastam mais para incentivar a junk food do que o orçamento dos governos para combater os males dela; lobby sobre políticos para fazer valer seus interesses. O doutor Enrique Jacoby é ácido com a indústria de alimentos – a má alimentação gerada por seus produtos é a assassina número um do mundo, diz. Jacoby aponta, no entanto, caminhos para mudar esse cenário. Aposta na culinária tradicional, desenvolvida ao longo de séculos em cada país e que se baseia em alimentos naturais, saudáveis. Dos pratos típicos da região Norte às receitas do chef Alex Atala, o médico enxerga boas inciativas no Brasil e em países como Japão, Itália e França. Mas é categórico quanto à cozinha dos Estados Unidos: “Não há o que preservar”.
Nascido em Lima, no Peru, em 1953, Jacoby é formado em medicina pela Universidade Nacional Maior de São Marcos, também na capital. Foi vice-ministro da Saúde em seu país e hoje atua como representante da Organização Pan-Americana da Saúde, a Opas, em Washington. Estuda o crescente número de crianças e adolescentes obesos, que a própria entidade considera uma epidemia. Na visão do pesquisador, uma das chaves para reverter esse processo está nas mãos dos representantes de Estado. O problema, no entanto, não é de fácil solução: “O lobby da indústria alimentícia é enorme. As empresas compram influências e vontades políticas em qualquer lugar”. Confira a entrevista completa a seguir.
Sesc São Paulo: Qual é o ponto fundamental na discussão sobre se alimentar bem?
Enrique Jacoby: Se nós pensarmos no contexto atual, o ponto central seria conseguirmos balancear nossa dieta, consumindo alimentos de diferentes grupos, como vegetais, legumes, cereais, peixes e carnes. Acho que essa seria a maneira mais simples de responder, mas é claro que também procuramos prazer na comida, não se trata de dizer que este alimento é melhor do que aquele, e sim de resgatar a ideia de culinária tradicional.
E em que sentido essa tradição é importante?
Nós transformamos alimentos em refeições, em pratos, e aí é que a tradição se mostra fundamental, porque a maior parte da culinária tradicional do mundo não vem de laboratório, de técnicos ou químicos, e sim de um fenômeno cultural que demora séculos até se desenvolver. Quando você fala de tradições culinárias chinesas, por exemplo, estamos falando de pelo menos 2.000 anos de evolução. É um processo muito longo, e por isso é importante que se preserve os resultados. Ao longo dos tempos, combinamos nutrientes de uma maneira bem sucedida, porque, se você pensar, antes das doenças trazidas por junk food, o ser humano se baseava em alimentos frescos e em tradições culinárias, e grande parte delas era saudável.
Quando isso começou a ser substituído?
O fenômeno de marketing dos últimos 20 anos, a nova economia e a modernização das cidades demoraram um tempo mínimo, de duas a três décadas, para destruir tradições construídas ao longo de séculos. Veja o que aconteceu no Chile, eles perderam tudo. Quase 70% do que os chilenos consomem hoje é comida processada, e assim é no Canadá e nos Estados Unidos.
Hoje em dia, muitas doenças estão intimamente associadas a essas mudanças de hábitos.
É o assassino número um da humanidade, já é o número um! Má alimentação hoje mata mais pessoas do que qualquer outra coisa.
E por que você acha que as pessoas continuam se alimentando mal, mesmo tendo consciência disso? Há alguma saída?
É claro que há esperança, mas somos reféns da modernização e esse tem sido o retrato da transição nutricional. Apesar disso, há países desenvolvidos que conseguem administrar e preservar a culinária tradicional, como o Japão, a França e a Itália, para citar alguns que são do primeiro mundo e mantiveram o padrão. Eles têm grande comércio de alimentos ultraprocessados, mas o interesse e a devoção à tradição são mais fortes. Não é um problema para o qual não há saída. Nós certamente somos capazes de tornar nossos países mais predispostos a ter as políticas certas para preservar as tradições, mas não podemos continuar deixando a indústria dos alimentos entrar em nosso território com essa publicidade intensa e repulsiva. É preciso parar esse movimento, e para isso é preciso usar políticas públicas.
Então é uma questão de iniciativas que devem partir do governo?
Em parte sim. Quando você vai a um país sem tradições culinárias, você está perdido, porque não há escolha. Mas se você pensa no Brasil, México, Peru, por exemplo, esses lugares têm uma forte tradição culinária que precisamos preservar. Há chefs hoje em dia, como o Alex Atala, que celebram essa cultura, e também existem mexicanos fazendo o mesmo, revitalizando tradições. Claro, eles defendem seus restaurantes, seus próprios negócios, mas ainda assim reforçam a ideia de que o que se tem ali é bom. Agora, se você pensar nos Estados Unidos, não há o que preservar, é preciso criar uma nova tradição.
Você considera que ainda é muito difícil botar esse tema na agenda política?
O lobby da indústria alimentícia é enorme. Muitos políticos preferem ficar quietos e não dizer nada a respeito, porque direta ou indiretamente eles recebem dinheiro de grandes corporações, e isso é um problema. As empresas compram influências e vontades políticas em qualquer lugar. Em 2009, a verba dessas corporações destinada à publicidade era de US$ 40 bilhões. Todos os ministros da Saúde e da Agricultura do mundo, juntos, não conseguem destinar 1% disso para fazer frente. Entende qual é a realidade? Nós precisamos diminuir o volume dessas marcas, e não é que precisamos botar um minuto por dia de comunicação dirigida à população, porque elas, as indústrias, passam pelo menos uma hora repetindo ‘eat junk, eat junk, eat junk’. Agora, se essas grandes corporações conseguem destinar US$ 40 bilhões apenas para marketing e comunicação, imagine você quanto elas não estão ganhando. Junk food é uma máquina de fazer dinheiro. Essas indústrias não fazem alimentos, elas fazem dinheiro.
Há algumas iniciativas públicas que parecem caminhar nesse sentido, como diminuir o tamanho dos refrigerantes em Nova York, assim como no Brasil se controla a quantidade de sal em alimentos processados. Esse é um caminho a seguir?
Não, isso é parte da questão, mas não a mais importante. Se você diminui a quantidade de gordura ou sal dos alimentos processados, o resultado não é comida saudável. Se você tira o lixo do lixo, o resto ainda é lixo. Eu fui persuadido de que podemos limitar quantidades de determinados ingredientes, e é útil se for para estabelecer padrões, por exemplo, proibindo que tal produto seja anunciado na televisão, mas não se pode dizer que ao tirar gorduras e sal estaremos produzindo comida saudável. O produto final continua sendo junk food, mas pode ser um recurso útil para regulamentar.
Hoje em dia, é muito mais fácil e mais barato consumir alimentos ultraprocessados do que os alimentos considerados saudáveis. Em que medida você acha que uma dieta balanceada é influenciada pela questão econômica?
Se você for para determinadas regiões do Norte do Brasil, verá que as pessoas estão comendo alimentos saudáveis, da culinária local, e não comida processada. Acho que há, sim, uma tendência em favorecer os produtos industrializados dando a eles preços baixos, e isso precisa ser revisto, mas eu não acho que podemos generalizar e dizer que em todo lugar a comida saudável é mais cara do que as outras. Há muitos países onde existe acesso a alimentos naturais em todas as estações do ano, e a preços acessíveis mesmo para as camadas mais pobres da população. Então, eu não colocaria isso como uma regra. A longo prazo, porém, a comida processada certamente ficará ainda mais barata do que qualquer comida que venha do campo, mas, no fim, se você fizer um balanço, verá que está perdendo.
Por quê?
Mesmo que você gaste mais com alimentos saudáveis, estará pagando por sua saúde. Se decidir pagar menos hoje, no futuro esse custo será alto, porque você vai começar a ter problemas vasculares e várias outras doenças consequentes desse tempo de má alimentação. No fim das contas, o baixo preço da junk food causa poluição, epidemias, acaba sendo um preço bem mais alto se considerarmos tudo o que envolve sua produção e consumo. Isso apenas para dizer que, economicamente, o balanço é manipulado. Se as pessoas fizessem os cálculos do que o meio ambiente está perdendo e de como estão cuidando do próprio corpo, elas voltariam a cozinhar todos os dias.
Quando a sociedade perdeu o hábito de cozinhar?
Obviamente foi um processo, mas quando penso sobre a questão, me lembro dos italianos e inverto a pergunta: como diabos eles conseguiram preservar esse hábito? Como ainda são tão próximos da agricultura? O que acontece em países que gostam de imitar outros, como os Estados Unidos, é que eles trilham caminhos absolutamente obscuros e a população sequer sabe a origem do que consome. A comida não vem do refrigerador ou do supermercado! A comida vem do campo, e essa falta de conexão com os alimentos é algo que a Itália não deixou acontecer. Tenho um grande interesse por esse fenômeno, porque você não verá livros nas prateleiras italianas tentando ensinar a população a se alimentar bem, enquanto na América do Norte boa parte dos novos títulos é sobre como viver de forma saudável. Americanos são obcecados com a ideia de se alimentar bem, mas não o fazem.
Como assim?
Nós perdemos a autonomia de preparar os alimentos porque temos hoje em dia alguém nos servindo. Alguém vem e diz: “Tenho aqui sua comida pronta, você só precisa colocá-la por um minuto dentro do micro-ondas”, e há pessoas que acham isso excelente. A hora da refeição é para ser algo coletivo, um tempo de socialização, de convivência, não é só questão de se alimentar. O que estou dizendo é que há muitas conveniências ligadas à comida ultraprocessada, como o preço e a praticidade, mas essa conveniência é um desastre! Não é apenas sobre saúde, embora esse seja um ponto importante, mas é sobre socialização, compartilhar experiências, e isso está sendo tirado progressivamente da nossa cultura.
De que maneira a aglomeração dos grandes centros urbanos intensifica essa falta de conexão com os alimentos?
Um dos problemas que temos nas grandes cidades é que você precisa de muitas horas para cumprir todos os seus compromissos. Ou seja, quase não resta tempo para outras tarefas e atividades. Se o sistema de transporte melhorasse, por exemplo, você conseguiria organizar melhor a rotina. Seria como chegar a alguém da parcela mais pobre da população, que vive mais afastada dos grandes centros, e dizer ao fim de um ano: “Nós estamos te devolvendo um mês da sua vida que você perdeu se transportando de um local para outro”.
No último Guia Alimentar para a População Brasileira, que esteve em consulta pública em 2014, há uma sentença que diz que “a informação esclarece consumidores e empodera cidadãos”. Você poderia comentá-la?
Comer bem ou querer cozinhar deve começar na base, e quanto antes melhor. Nós sentimos e descobrimos ingredientes locais desde muito cedo. Tudo o que aprendemos tem conexão emocional, é algo progressivo, não estritamente racional, e por isso os cinco primeiros anos de vida são importantes. Se uma mãe lactante se alimenta de cebolas, alho, frutas e vegetais, por exemplo, a criança será capaz de detectar essas substâncias, assim como ela pode detectar o cigarro de uma mãe fumante. A informação também deve estar na escola, em campanhas públicas, na televisão, na internet, no rádio, para que as pessoas sejam informadas sobre o que elas estão consumindo. Em resumo, a mensagem para que cidadãos valorizem a culinária tradicional precisa ser algo completamente simples para todos.
Que consequências vamos ter que enfrentar nos próximos anos se não mudarmos esse cenário atual?
Muitas doenças, como as cardiovasculares e o diabetes, aparecendo cada vez mais cedo, e uma geração que provavelmente viverá menos do que as anteriores. Além disso, muito dinheiro precisará ser investido para remediar consequências, o que pode acabar quebrando alguns governos, pois tratar de doenças crônicas envolve custos muito altos. Olha, não é um bom panorama, e acho que é necessário agir logo, de uma maneira ecológica, voltando a respeitar as bases, o meio ambiente. Estamos usando os recursos naturais para combustível, para alimentar animais e esquecemos de nós mesmos. Agindo em consonância com o meio ambiente, e usando as informações que temos adquirido nas duas últimas décadas sobre as consequências desses hábitos na saúde, acho que conseguimos definir prioridades para o futuro. Não podemos só melhorar o PIB, a economia, é preciso pensar cada vez mais nos hábitos da população.
Texto: Gabriel Vituri