Postado em 18/12/2014
Arroz, feijão, bife e batata frita. Com um bolo de milho de sobremesa. Essa bem que pode ter sido sua refeição mais recente – ou talvez tenha sido mesmo. Mas você sabe o que há de comum entre esses ingredientes e o que destoa nesse cardápio?
Trigo, arroz, batata e milho compõem cerca de 50% da alimentação calórica humana atual. A base ainda é composta por três espécies de animais, como porco, gado e frango. O feijão, tradicional no menu nacional, está fora dessa lista, assim como a soja, um dos campeões de exportações do Brasil.
A produção desses alimentos pode vir do agronegócio ou da agricultura familiar. Quase 85% das propriedades rurais do Brasil são familiares, mas, como a área delas é pequena, juntas ocupam menos de 25% da área de fazendas e sítios. E as diferenças vão muito além do tamanho da lavoura. O agronegócio, da produção em larga escala, tem colheita mecanizada ou, em alguns casos, feita por boias-frias, em condições precárias. O agricultor de pequeno porte planta e colhe em família. O primeiro trabalha com no máximo 150 variedades de alimentos, mantendo o foco em apenas 12 deles – como os já citados arroz, trigo, batata e milho. Na agricultura familiar, são oferecidas 7.000 espécies – algo fundamental em uma época de radicais mudanças climáticas, em que uma praga ou fenômeno natural pode pôr em risco alguma espécie vegetal.
Segundo o governo federal, 70% dos alimentos que entram no prato do brasileiro vêm da agricultura familiar. Na mesa, porém, o cenário é cada vez mais diversificado – e não necessariamente saudável. “Hoje há uma tendência de piora na alimentação dos brasileiros em geral. Caiu o consumo de alimentos básicos, como arroz, feijão e leite, e aumentou o de produtos industrializados, como biscoitos, refrigerantes, doces. Isso leva, automaticamente, a um excesso de consumo de calorias e perda da qualidade nutricional”, afirma Elisabetta Recine, nutricionista e coordenadora do Observatório de Políticas de Segurança Alimentar da Universidade de Brasília (UnB).
Outro fenômeno social recente contribui para isso. As pessoas têm pouco tempo para exercícios físicos e muitas vezes, em especial nas grandes cidades, vivem rotinas atribuladas, sob constante estresse, em que um dos primeiros fatores a serem sacrificados é o tempo e a qualidade das refeições. Essa combinação contribui para o aumento do sobrepeso e da obesidade entre os brasileiros.
“É uma tendência na sociedade como um todo. As famílias consomem mais esses produtos e, em um caminho perverso, eles acabam chegando à mesa e também à boca das crianças”, avalia a nutricionista da UnB.
“Apenas a agricultura familiar irá alimentar o mundo”, definiu o diretor da ONG canadense ETC Group, Pat Mooney, no seminário Rumo à Rio + 20: Por uma Outra Economia, realizado em 2012 em Porto Alegre. Segundo Mooney, este sistema de lavoura é responsável não só por colocar comida na mesa de 70% da população mundial, mas também por semear a alimentação saudável de maneira muito mais eficiente que o sistema industrial.
“É um segmento que produz bens e produtos agrícolas, mas também uma categoria responsável por um tipo particular de sociabilidade capaz de introduzir dinâmicas criativas num dado território”, define Maria Luiza Lins e Silva Pires, professora do programa de pós-graduação em Extensão Rural e Desenvolvimento Local da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), doutora em sociologia e bolsista de proatividade do CNPQ.
“A agricultura familiar tem um forte caráter de inovação, resistência, de criação de alternativas capazes de introduzir uma nova dinâmica territorial. É pautada em valores de sociabilidade, confiança e solidariedade. Esse tipo de trabalhador também é responsável pela preservação de uma paisagem rural e pela preservação de uma cultura”, afirma Maria Luiza.
Tradição
Mais que uma enxada, os agricultores familiares brasileiros carregam nas mãos uma tradição. Mesmo com diferenças de equipamentos e rotina, seu modo de vida ainda remonta, em aspectos importantes, aos seus antepassados que se sustentavam consumindo o que plantavam naquela mesma terra.
Ainda hoje a família é a base desse tipo de agricultura, que se define não só pelas bases em que se apoia –proprietários rurais que fazem uso da mão de obra disponível dentro da própria casa -, mas também pelo contraponto que faz à agricultura patronal, predominante no Brasil.
Enquanto do lado mais comprido da corda estão as médias e grandes propriedades e seus empregados contratados, do outro lado, menor, mas nem por isso menos poderoso, está o sistema familiar com produtores aparentados entre si, trabalhando em pequenas
propriedades e tirando delas algo que vai muito além de hortaliças.
São frutos da agricultura familiar, por exemplo, o importante papel de proteger a biodiversidade e o uso sustentável dos recursos naturais e também de produzir e conferir à população o acesso a alimentos saudáveis, o que vai na contramão do crescente consumo de produtos industrializados e de baixo teor nutricional.
Atualmente, porém, o agricultor familiar vê antigas valorações negativas atribuídas ao seu trabalho caírem por terra e serem substituídas por avaliações que reconhecem sua relevância, eficiência e, ainda mais importante, sua sustentabilidade. O crescimento do conceito de alimentação saudável vem jogando uma nova luz sobre a agricultura familiar – uma luz mais brilhante. A professora Maria Luiza, da UFRPE (Universidade Federal Rural de Pernambuco), enxerga com otimismo esses progressos, mas considera que ainda há um caminho a ser trilhado até que seja feita a justiça histórica. “Esse é um processo de construção da mudança, não é a mudança em si.”
Segundo Maria Luiza, os efeitos dessas políticas só serão sentidos ao longo do tempo, “assim como a agricultura familiar que existe hoje no Brasil é resultado da ausência de políticas públicas historicamente definidas”.
Primórdios
A história da agricultura familiar confunde-se com a história da própria humanidade, desde que o homem passou a domesticar animais e a entender a importância de cultivar frutos e hortaliças perto de seu local de habitação. Quem trabalhava a terra eram as mulheres. Quando os homens saíam de casa para caçar alimentos ricos em proteína, as mulheres, que em geral estavam grávidas e cuidando dos filhos, passavam a cultivar sementes e frutos. É apenas no Século XVIII, com a Revolução Industrial, que a forma de cultivo sofre alterações. Surgem as grandes cidades, os centros de consumo, que acabam expulsando para longe as áreas de cultivo de alimentos. Os produtores que antes plantavam e cultivavam alimentos apenas para consumo próprio e de suas comunidades passam a ter que produzir maior quantidade de comida para alimentar também a população das novas cidades que se formam.
Nos anos 1960 e 1970, com a chamada Revolução Verde, a necessidade de se produzir alimentos em maior quantidade torna-se urgente e novas tecnologias ganham força com a entrada de pesticidas, fertilizantes e maquinário agrícola. É o início do melhoramento genético de sementes, mesmo que em um processo lento e gradual. O produtor que comia um fruto maior e mais doce passa a germinar a semente daquela espécie. Gradualmente, há uma seleção que muda a produção. É na mesma necessidade de demanda que a groindústria dá os primeiros passos.
Com o surgimento da indústria de alimentos, a qualidade piora. Esse segmento busca fabricar mais rápido, em maior quantidade, com baixo investimento e alto lucro e um processo cada vez mais homogêneo de produção.
O pequeno produtor, que tradicionalmente diversificava sua produção para reduzir desperdícios e adaptar- -se às variações climáticas, pouco a pouco perde espaço. Um dos resultados dessa transição é o aumento do sobrepeso e da obesidade, inclusive entre as crianças. Nos últimos 30 anos, o Brasil reduziu significativamente a desnutrição infantil, mas o problema coexiste hoje
com a obesidade. Uma em cada três crianças brasileiras está com peso acima do recomendado. Fenômeno recente da insegurança alimentar e nutricional que pode se expressar na população independentemente de sexo, idade, raça ou classe social.
“Há uma grande necessidade de recuperar e reorganizar a importância da alimentação dentro das casas dos brasileiros. Valorizar os alimentos saudáveis, planejar a alimentação, preparar as refeições dentro de casa, abrir mão de uma praticidade muitas vezes ilusória. Deve-se realmente investir tempo e racionalidade no preparo e na escolha dos alimentos. Isso é fundamental”, afirma Elisabetta.
E um dos melhores caminhos são as chamadas feiras de orgânicos. Nas grandes cidades, elas têm papel fundamental para mostrar a importância da agricultura familiar, do pequeno produtor e incentivar o relacionamento entre as pessoas e a alimentação. Fruto da parceria entre o Parque da Água Branca, localizado na Zona Oeste de São Paulo, e a Associação de Agricultura Orgânica (AAO-SP), uma feira desse tipo é organizada desde 1991. Conforme o presidente da AAO, o agricultor e educador ambiental Guaraci Maria Diniz Jr., “a feira é mais uma oportunidade para os consumidores adquirirem produtos orgânicos diretamente dos produtores, incentivando a agricultura familiar, limpa, que não usa agrotóxicos nem adubos químicos e tem como princípio primordial a conservação do meio ambiente – e, em tempos de aguda estiagem, a conservação dos recursos hídricos”.
No local, concentram-se 45 produtores orgânicos que ofertam hortaliças, frutas e legumes, além de laticínios, e processados como sucos, pães, geleias, pizzas, bolos e café, entre outros artigos. Durante o funcionamento da feira há também um café da manhã orgânico, a exemplo do que já ocorre em outra feira promovida pela AAO, num shopping de São Paulo, também na Zona Oeste. A capital paulista conta com cerca de dez feiras orgânicas.
Para Braz Albertini, presidente da Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de São Paulo, que é também pequeno produtor e participa de ao menos quatro feiras, as iniciativas são uma forma de romper com as dificuldades enfrentadas pelos produtores, como a produção isolada e em pequenos volumes. Transporte, pedágio e outros gastos aumentam os custos desse sistema de produção. “Os governos devem se encarregar de uma organização que torne viável a participação dos pequenos produtores no sistema de fornecimento de alimentos. Essa organização pode ser desde as feiras agropecuárias desenvolvidas pelas prefeituras até a destinação dos produtos da agricultura familiar para presídios e merenda escolar”, afirma Albertini.
Outra ação reconhecida pela Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) realizada no Brasil foi o Programa Nacional de Alimentação Escolar, que estabelece como meta a compra de 30% dos alimentos que compõem a merenda diretamente dos produtores locais.
Além disso, o governo federal comprometeu-se a destinar US$ 150 mil ao Fundo Fiduciário Multilateral do Ano Internacional da Agricultura Familiar, administrado pela FAO. Em outubro, a organização promoveu em sua sede em Roma o Diálogo Global sobre Agricultura Familiar, reunindo autoridades, agricultores familiares, sociedade civil, setor privado, acadêmicos e agências de desenvolvimento para definir estratégias de ação para os próximos anos e realizar um balanço dos avanços conquistados em 2014.
Biodiversidade e sustentabilidade
Um dos desafios da agricultura familiar no século XXI é aliar a produção à biodiversidade e ao uso de agricultura familiar recursos sustentáveis. O incentivo e aplicação de técnicas como sistemas agroflorestais, controle biológico e construção de paisagens multifuncionais nas propriedades rurais, especialmente naquelas em que predomina a agricultura familiar, faz-se urgente, segundo especialistas.
Uma das metas incentivadas pelo Ano Internacional da Agricultura Familiar é fortalecer a assistência técnica por meio de Casas de Agricultura Ecológica – programas que incluem melhoria de estradas vicinais rurais e expansão de infraestrutura de saneamento básico como necessidades prementes.
Apoiar a certificação orgânica dos agricultores familiares, em especial a certificação participativa, é outro objetivo. Da mesma forma, garantir a introdução de alimentos orgânicos produzidos nos municípios e usá-los na alimentação escolar, melhorando a qualidade das merendas e incentivando a diversidade de cultivos.
A monocultura de produtos desafia a permanência e o desenvolvimento da agricultura familiar. A pressão das grandes empresas voltadas ao cultivo de apenas um produto, ameaça pequenos trabalhadores rurais que buscam reconhecimento profissional e econômico.
A monocultura traz desvantagens ambientais porque exaure o solo com o tempo e reduz a biodiversidade. As desvantagens sociais ocorrem porque reduz o uso da mão-de-obra no campo e afugenta as populações rurais. E ainda há desvantagens econômicas, pois apresenta enormes riscos, já que uma única doença ou praga ou a queda do preço do produto no mercado podem pôr a perder toda a cadeia produtiva regional. Já a agricultura familiar, que trabalha com uma imensa gama de produtos, faz rotatividade de cultivos, adapta-se ao clima e também às condições do solo, promove costumes locais e reproduz gostos e culturas de uma região.
O engenheiro agrônomo José Esquinas-Alcázar, que por mais de 30 anos trabalhou na FAO, defende que “é preciso um grande incentivo para o agricultor familiar manter-se na região que historicamente serviu de fonte de alimentos para ele e toda sua família. É preciso que ele seja incentivado a continuar plantando, colhendo e produzindo na região, modificando o cenário ao seu redor conforme as condições econômicas e também climáticas”.
O melhor caminho, pondera, é o do equilíbrio entre diferentes métodos. “A situação de cada país, considerando sua história e cultura, suas condições climáticas e socioeconômicas, a evolução da sua população, ou seu grau e tipo de desenvolvimento, são diferentes e, portanto, diferentes devem ser as soluções para os seus problemas agrícolas e alimentares. Tentar impor um único tipo de agricultura é irresponsável e irrealista, e, além disso, com frequência chegou a situações de não sustentabilidade ecológica e degradação social. A diversidade de sistemas agrícolas deve ser protegida e incentivada como um valor positivo e um importante amortecedor em épocas de mudanças climáticas.”
De acordo com os relatórios “Estado da Insegurança Alimentar no Mundo” e “Estado da Segurança Alimentar e Nutricional no Brasil – Um Retrato Multidimensional”, divulgados pela ONU, a agricultura familiar desempenhou papel importante no aumento da oferta de alimentos. Somente no ano passado, no Brasil os investimentos em programas de apoio aos agricultores familiares somaram R$ 17,3 bilhões.
Mas, apesar da cifra robusta, Alcázar questiona a visão excessivamente econômica dada ao setor. “A agricultura não pode ser considerada como mero exercício econômico. A agricultura, além de produzir alimentos, tem outras funções essenciais: social, ambiental, de estabilidade cultural, que são de difícil contabilidade econômica e que muitas vezes são consideradas como ‘externalidades’ do sistema. Esta é uma das causas pelas quais os preços e os valores dos produtos agrícolas não necessariamente se correspondem. Isso constitui também uma importante dificuldade para avaliar a relação custos/benefícios das atividades agrárias e da eficácia comparativa entre os diferentes tipos de agricultura”, completa o pesquisador.
Texto: Marcella Franco e Bruna Fasano; Jornalistas