Postado em 02/12/2014
É cada vez mais comum o telejornalismo brasileiro se utilizar de elementos ficcionais nas narrativas das notícias na TV. Com isso, gêneros televisivos têm seus destinos cruzados, trazendo à tona a pergunta: onde começa e onde termina a ficção no noticiário? Analisam o assunto os professores Kleber Mendonça, da Universidade Federal Fluminense (UFF), e Walter de Sousa Junior, da Universidade de São Paulo (USP).
O melodrama no telejornal
por Walter de Sousa Junior
A novidade caiu como uma bomba na Internet no último 15 de setembro: Patrícia Poeta deixaria de apresentar o Jornal Nacional (JN), onde dividia há três anos a bancada com o editor do programa, William Bonner. No período, ela substituiu Fátima Bernardes, esposa de Bonner, que foi requisitada pela direção da Rede Globo para apresentar um programa matinal. Pouco depois do anúncio, os boatos pipocaram. O primeiro deles apontava que Bonner havia articulado a saída da apresentadora, pois jamais se “conformara” com a entrada de Poeta no lugar da esposa, versão que sobrepunha a oficial da emissora, de que o contrato de Poeta previa que ela ficaria somente três anos no JN. Outro revelava que havia a possibilidade de afastamento por a apresentadora ter acabado de comprar um apartamento no valor de R$ 23 milhões em Ipanema, bairro do Rio de Janeiro, de proprietário que teria seu nome ligado ao do bicheiro Carlinhos Cachoeira, que já havia sido manchete do mesmo telejornal por clamoroso caso de tráfico de influência em Brasília.
Assim, se por um lado a justificativa envolvia uma suspeita digna das chamadas de abertura do JN, por outro parecia envolver trama das mais melodramáticas, capaz de levar a irmã de Poeta, dias depois, a defendê-la na mesma rede: “Quando se muda a ordem das coisas, logo vêm as teorias, perguntas de o que deu errado, quem brigou, obrigou, desistiu. Quando, na verdade, a história é uma só: gente que quer viver feliz a vida toda, sem esperar”.
Aliás, sem ter de esperar que a narrativa aponte um final – feliz, claro –, nota-se que o que está em jogo nesse processo de substituição de apresentadores de um telejornal emblemático, que por duas décadas deteve 60% da audiência nacional – hoje ela oscila para abaixo dos 20% –, é o fato de ele ter absorvido tão profundamente a estrutura narrativa da teleficção como forma de atrair audiência para o seu noticiário. Bonner e Fátima ilustraram a bancada do JN entre 1999 e 2011 e, além de assumirem a pecha de “par romântico” do telejornalismo, levaram a cabo uma forma de “contar” notícias pouco experimentada pela televisão brasileira. Com isso, inauguraram um estilo que não só garantiu sobrevida ao telejornal, que passou anos detendo o monopólio das informações dos sucessivos governos militares, como se acomodou melhor numa grade cada vez mais dominada pelas telenovelas. Incorporou, para tanto, elementos antes restritos à teleficção: seriação, núcleos narrativos, personagens coadjuvantes e narrativa movida pela subjetividade dos personagens.
Um dos casos mais ilustrativos dessa justaposição de gêneros televisivos foi a cobertura do chamado “Caso Pedrinho”, iniciado em 8 de novembro de 2002 e que se estendeu por 40 reportagens do JN até 22 de maio de 2003. A reportagem inicial registrou que uma família de Brasília havia reencontrado o filho roubado na maternidade após 16 anos de procura. Ele vivia em Goiânia, com a mãe adotiva – o pai era recém-falecido –, Vilma Martins, que foi reconhecida pela mãe biológica, Maria Auxiliadora, como a enfermeira que a atendeu na maternidade. Logo, as suspeitas do roubo recaíram sobre a mulher. O menino, Osvaldo Jr., como foi criado, ou Pedrinho, como a mãe verdadeira o chamava, se viu dividido entre as duas famílias, o que o fez pedir, durante uma reportagem, que a Justiça não reabrisse o caso do roubo na maternidade.
A primeira grande reviravolta do caso aconteceu no dia 21 de novembro de 2002, quando foi revelado que uma neta do pai adotivo de Pedrinho ouvira por acaso uma conversa entre Vilma e outros parentes em que ela assumia o roubo do menino da maternidade. Com essa informação, a moça fez uma denúncia ao SOS Criança que, enfim, acabou por revelar o paradeiro do filho procurado por Maria Auxiliadora fazia 16 anos. Outra reviravolta viria à tona em 12 de fevereiro de 2003: um exame de DNA feito com outra filha de Vilma, Roberta, provou que ela também tinha sido roubada na maternidade. O mais interessante é que o exame foi feito à revelia da moça pelo delegado que a inquiriu na delegacia, usando para isso a ponta do cigarro deixado por ela no cinzeiro da delegacia.
A saga só foi dada por encerrada em 22 de maio de 2003, quando enfim a prisão de Vilma foi decretada e seu paradeiro descoberto – escondia-se no maleiro do guarda-roupa de uma vizinha. Ela então é levada ao presídio, onde é recebida com insultos por populares.
A construção da narrativa seriada apresentada pelo JN aponta para vários elementos do gênero teatral do melodrama, que compreende a matriz cultural da telenovela. Sintetizado nos anos 1800 na França pós-napoleônica por Guilbert de Pixérécourt para ser um gênero dedicado àqueles que “não sabem ler”, o melodrama se constitui de elementos recorrentes baseados no apelo sentimental, linguagem universal a alcançar esse público. Seguem-se, identificados na trama de Pedrinho:
1 A Providência – O sequestro foi revelado por um acaso, não por algum fator intencional. A conversa foi ouvida e a verdade veio à tona.
2 A virtude – Logo há a separação entre a virtuosa Maria Auxiliadora e a viciosa Vilma Martins. Na trama melodramática, a virtude certamente triunfará ao final.
3 O sofrimento por amor – Maria Auxiliadora passou anos procurando o filho. Publicou um livro contando o seu sofrimento. E aparece no dia do reencontro rezando para Nossa Senhora de Aparecida.
4 A vilania – Mesmo com a defesa do filho Pedrinho, Vilma é feita vilã. Não importa que tenha criado o rapaz até então.
5 As vítimas – O tempo revelou duas mães privadas de seus respectivos bebês.
6 A peripécia – A reviravolta no decorrer da narrativa conduz ao inevitável triunfo da virtude.
7 O resgate – Final feliz para Pedrinho: ele decide morar com os pais biológicos enquanto Vilma vai para a cadeia.
A trama editada pelo JN em 40 capítulos – aliás, 40 reportagens – tinha os ingredientes de uma trama melodramática. Assim, num átimo de circularidade cultural, conceito de Mikhail Bakhtin que revela processos de apropriações simbólicas que completam ciclos que se desdobram sobre si mesmos, a série de reportagens acabou “inspirando” uma telenovela do horário das 21h. Aguinaldo Silva, que até então se consagrara como autor de telenovelas escritas no estilo literário do “realismo fantástico”, usado por escritores latino-americanos que viveram e produziram em meio a períodos de autoritarismo político, se diz cansado do estilo. “Cansei de realismo fantástico, chega de mulher voando, quero realidade”, disse à reportagem da revista Veja na época. A mesma deu o mapa da nova produção da Rede Globo: “Silva tirou o mote de Senhora do Destino das manchetes dos jornais: o sequestro do garoto Pedrinho por Vilma Martins Costa. Ela levou o bebê de uma maternidade de Brasília, em 1986, e o criou como se fosse seu filho até ser desmascarada, em 2003”.
A trama foi um grande sucesso, alcançando a maior audiência do horário na década, com 50 pontos. Pedrinho, por sua vez, em entrevista à mesma revista Veja em 2005, ao ser perguntado sobre a mãe que o criou por 16 anos, desmontou a edição do JN ao afirmar: “Ela também é minha mãe e sempre será. (...) O crime que ela cometeu foi horrível, mas eu a perdoei. Ainda tenho muito carinho por ela. Não havia como não perdoar”. Além de quebrar o elemento da vilania, desfaz a virtude atribuída à principal vítima da história, sua mãe biológica, Maria Auxiliadora. Perguntado se ela perdoaria Vilma, ele responde: “Ela age como se tivesse passado uma borracha no passado. Minha mãe costuma dizer que o que importa é nossa vida daqui para frente”.
A opção por contar histórias se mantém característica do noticiário do JN, que reelaborou suas narrativas a partir do tripé básico do melodrama clássico: 1. O herói virtuoso, que gera compaixão por sua condição de inocente; 2. A vítima do sistema, perseguida por vilões na maior parte sem face, como a burocracia e a corrupção; 3. O vilão que, quando identificado, está prestes a ser desmascarado e punido pelas forças virtuosas guiadas pela Providência. Como síntese desses três elementos melodramáticos, o JN cerca suas narrativas com a imagem do “cidadão que faz”, ou seja, aquele que sofreu mas venceu, e, vitorioso, exerce sua cidadania acima de tudo. Uma representação, enfim, de um personagem social idealizado, assim como a democracia que emerge tanto do noticiário como das campanhas sociais conduzidas pelos autores de teleficção em seus produtos melodramáticos.
“A construção da narrativa seriada apresentada pelo JN aponta para vários elementos do gênero teatral do melodrama, que compreende a matriz cultural da telenovela”
Walter de Sousa Junior é jornalista e professor doutor pela ECA/USP.
Sua dissertação de mestrado, O Jornal das Oito (2002), tratou da relação entre noticiário e melodrama.
É autor dos livros Moda Inviolada – Uma história da música caipira (Quíron, 2006) e
Mixórdia no picadeiro – Circo-teatro em São Paulo (1930-1970) (Terceira Margem, 2011)
Do mito do real à dramatização das notícias na TV
por Kleber Mendonça
Uma característica do telejornalismo brasileiro atual é o crescimento de elementos ficcionais nas notícias. Os repórteres, acostumados às normas de redação que pregam a objetividade e a neutralidade, parecem optar, cada vez mais, pela relativização de suas rotinas de trabalho.
O uso de trilha sonora, a escolha melodramática de apontar vilões, a busca pelo final feliz ou o close na lágrima do personagem diante da tragédia são exemplos dessa mudança. E mais: apresentadores defendem, enfáticos, opiniões e críticas como verdadeiros heróis na veemente defesa dos “pobres” telespectadores. Diante de tanto drama, parece nos restar o papel passivo de vítimas dos acontecimentos que nos emocionam.
O incômodo dessa mudança se ancora na chamada teoria do espelho, que explicaria o jornalismo como reflexo fiel da realidade. Para entendermos melhor tais transformações, no entanto, proponho embaralhar essas certezas. O escritor catalão Enrique Vila-Matas, quando perguntado sobre a insistência em misturar fatos históricos e acontecimentos inventados em sua literatura, defende uma tese inquietante. Para ele, levamos séculos separando a ficção e a realidade com um biombo imaginário. Em suas palavras, o invento japonês “divide em dois espaços um quarto e nos oferece a possibilidade de diferenciar as duas áreas. Mas a separação é artificial, já que oculta que, de fato, há um só espaço”.
A metáfora ilustra que narrar e inventar o mundo são partes de um mesmo espaço discursivo. Com isso, não haveria maior equívoco do que crer ser possível entender a vida “objetivamente”, sem alguma dose de invenção. Isso quer dizer que tudo que vemos e dizemos é sempre ficção e não há nada “real” no mundo? Não é bem assim.
A provocação do escritor chama a atenção para um fato que, muitas vezes, passa despercebido: ao usarmos a língua para “descrever” o mundo, corremos o risco de tomar nossas “interpretações” como parte da “verdade” a respeito das coisas. Ao defender que toda narrativa sobre o mundo traz sempre algo de inventado, Vila-Matas nos alerta para questionarmos nossas “ilusões de verdade”.
No jornalismo, essa constatação ajuda a olhar as notícias para além de espelhos e de modo mais crítico. Não podemos esquecer que argumentar que um dizer reflete “apenas” a verdade pode ser uma forma de mascarar a tentativa de nos fazer acreditar em um ponto de vista como se fosse a única expressão do “real”.
Quantas vezes, no entanto, não nos deparamos na vida com situações em que duas pessoas contam histórias completamente distintas ao nos descreverem o mesmo acontecimento? Quem tem razão ou diz a verdade? Talvez a resposta para esse dilema seja constatarmos a impossibilidade de narrar o real sem um ponto de vista. Nos restaria, assim, a tentativa de descrever não só o mundo, mas também os múltiplos enfoques existentes, contextualizando cada um deles.
Esse esforço complexificador deveria nortear o trabalho do jornalista: para além de constatar a “verdade”, cabe à notícia nos colocar em contato com os diferentes lados de cada acontecimento. Sabendo que estamos fadados à interpretação, podemos abandonar as máscaras de objetividade, colocar de lado os espelhos e deixar claro a partir de qual lugar os fatos são “descritos”.
Fortaleceríamos, assim, a necessidade de saber filtrar os realces ficcionais das interpretações dos fatos. Com base em um olhar crítico é que seremos capazes de, livremente, tirarmos nossas conclusões. Esse esforço seria uma forma de fazer com que o processo de formação da opinião pública, mediado pelo jornalismo, amadurecesse ainda mais. Sem precisarmos de biombos, máscaras ou espelhos.
Por essa razão, defendo, aqui, que o problema não é tanto a dramatização “ficcional” dos fatos, mas a força persuasiva que alguns efeitos ficcionais querem causar. Sobretudo ao percebermos que as emissoras de TV não buscam apenas relatar os fatos em seus telejornais, mas, sim, interferir nos acontecimentos reportados.
Um exemplo distante no tempo, mas bastante atual, dessa estratégia pôde ser visto na novela Mulheres Apaixonadas, da Rede Globo, em 2003. Um momento marcante da trama foi o episódio no qual dois personagens eram vítimas de balas perdidas no bairro do Leblon, zona sul do Rio de Janeiro. Um dos protagonistas da narrativa, vivido pelo ator Toni Ramos, ficou preso a uma cadeira de rodas em função do incidente.
O desdobramento da história foi tão surpreendente como revolucionário: a emissora passou a agendar, ao longo dos capítulos, uma manifestação contra a violência no bairro carioca. O protesto reuniu, no domingo chuvoso de 14 de setembro de 2003, 40 mil pessoas. Tudo seria apenas uma passeata rotineira, não fosse o fato de, simultaneamente, estarem sendo gravadas cenas da novela.
Víamos, no Jornal Nacional do dia seguinte, o ator Toni Ramos participando do protesto de cadeira de rodas, “vivendo” seu personagem lado a lado com cidadãos travestidos em “figurantes” da trama. Era difícil, então, discernir quem estava ali “representando” um papel ou exercendo “realmente” seu direito à cidadania. Outra dúvida era se a presença de parte da população, naquele protesto, se devia à intenção de fazer política, de se encontrar pessoalmente com atores famosos ou, mesmo, de participar da gravação da novela.
A reportagem sobre o protesto encerrou a edição do telejornal da segunda-feira seguinte à manifestação. Sem intervalo comercial, as imagens “noticiosas” da passeata continuaram sendo exibidas enquanto subiam os créditos. A seguir, iniciou-se o capítulo da telenovela: com a mesma cena da caminhada, dessa vez em câmera lenta e ao som do hino nacional.
Na passagem do jornal para a novela (quase) sem rupturas, realidade e ficção se reuniram. O resultado foi a criação das condições ideais que levaram à aprovação, pelo congresso nacional, do estatuto do desarmamento, em dezembro daquele ano. Desse exemplo, podemos tirar algumas conclusões a respeito da quebra de fronteiras entre os gêneros narrativos. A mais evidente é a constatação de que o uso da “ficção” nas notícias acompanha uma outra mistura: a necessidade de a novela debater a “realidade” que vivemos.
Tal prática, definida pelos especialistas de marketing como merchandising social, só aumentou nestes últimos dez anos. O objetivo dessa interferência da “ficção” na “realidade” é promover a conscientização social em relação a temas de utilidade pública. Podemos citar alguns casos memoráveis dessa prática nas novelas: o estímulo à doação de órgãos, a crítica à violência doméstica contra as mulheres, a luta pela redução do preconceito contra os homossexuais e o caso das crianças desaparecidas.
Outra conclusão a que chegamos é a de que se os conteúdos ajudam as emissoras de TV a cumprir uma função de responsabilidade social, não podemos esquecer que todo merchandising sempre venderá algum produto. Nesse caso, somos persuadidos a comprar a própria imagem da emissora como “cidadã corporativa”, responsável por “avanços sociais” nos temas agendados nas suas próprias tramas.
Em Mulheres Apaixonadas, por mais que se tratasse de uma causa justa, cabe uma questão. Será que a melhor forma de debatermos temas tão complexos é abrir mão da razão e do direito à pluralidade de vozes e pontos de vista? O que perdemos quando adotamos a perspectiva “emocional” na qual personagens carismáticos sofrem as consequências de acontecimentos tão trágicos quanto persuasivos?
Caetano Veloso pede, em sua oração à Santa Clara, que o vídeo possa ser “o lago onde o Narciso seja um deus que saberá, também, ressuscitar”. Nossa dúvida é se conseguiremos fazer desse espelho um instrumento midiático que ajude, de fato, a entendermos nossas belezas, pluralidades e defeitos. Ou se usaremos sua capacidade de narrar e inventar mundos para transformá-lo, apenas, num oráculo que nos reserve apenas o papel de figurantes (vítimas) das mesmas tramas, eternamente retransmitidas em cadeia nacional.
“O problema não é tanto a dramatização ‘ficcional’ dos fatos, mas a força persuasiva que alguns efeitos ficcionais querem causar. Sobretudo ao percebermos que as emissoras de TV não buscam apenas relatar os fatos em seus telejornais, mas, sim, interferir nos acontecimentos reportados”
Kleber Mendonça é doutor em comunicação, professor do Departamento de Estudos Culturais e
Mídia e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense (UFF).
Coordenador do Núcleo de Estudos da Violência e Comunicação (NevCom) da UFF,
é autor do livro A Punição pela Audiência: Um Estudo do Programa Linha Direta (Faperj/Quartet, 2002)