Postado em 02/12/2014
O professor de filosofia fala sobre temas ligados à cultura política brasileira, como os movimentos de junho de 2013, déficit republicano, participação popular e corrupção
Especialista em filosofia política, Sérgio Cardoso é professor do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), onde realiza pesquisas sobre ética e política em Montaigne, filosofia política no Renascimento e tradição republicana. Na entrevista a seguir, Sérgio fala desses e de outros temas relacionados à cultura política: “No Brasil, temos um déficit republicano. É um déficit de sentimento público e de cidadania que se manifesta em vários níveis. No registro social, a exclusão, a invisibilidade social de boa parte da população pobre. No registro político, nossa relação frouxa e ambígua com a lei. No registro econômico, a privatização sem escrúpulos do público”.
Terminamos um processo político que veio logo após uma movimentação de massas poderosíssima, em 2013. Depois de tudo isso, a gente pode ou não dizer que a indiferença política é uma tônica em uma sociedade como a brasileira?
Acho que não. O que eu vi nos movimentos de junho foi uma mobilização da sociedade, em termos de temas. Você tinha os problemas urbanos, mas no fundo o que juntou a multidão, no meu entender, foi a corrupção e a insuportabilidade dos agentes políticos. Isso faz algum sentido, mas é uma crítica difusa. Nas últimas eleições, na verdade, essa crítica redundou em muito pouco. Não sou muito otimista com esses movimentos de acusação difusa da política, sobretudo quando põem na frente a bandeira da anticorrupção. Na antiguidade, os antidemocráticos viam a volubilidade como a característica mais notável do povo. Mas haja volubilidade nesse caso, não é?! Penso que essas manifestações que associam vários descontentamentos reais precisam ganhar expressão propriamente política, e não de revolta contra um difuso “o que está aí”. Nestes termos, eles se tornam objeto de todas as manipulações possíveis. Tenho muita simpatia pelo Movimento Passe Livre, por exemplo, entre outros movimentos, mas nenhuma por grupos que se dão por bandeira a anticorrupção como acusação da política e dos políticos, sem nomeá-los e sem recorrer a instrumentos públicos, institucionais, de acusação e punição. Gostaria de ver todos saírem às ruas para pressionar pela reforma política. Mas ela, no entanto, não se fará por voluntarismos, mas por debates e embates políticos. Não há como fugir disso nas democracias.
Sobre a questão de se dizer que a atual juventude é alienada ou desconectada da política, isso é um mito?
Eu convivo diariamente na universidade com jovens e, na minha observação, você tem duas posturas: os jovens preocupados com a formação profissional, e outros preocupados com a ordem política, mas não no sentido institucional. Há um descontentamento com a ordem das coisas que acho saudável, mas ele se traduz, pelo menos no meio que conheço, como um “é assim mesmo e vamos cuidar da nossa vida”, ou em atitudes quase pseudorrevolucionárias, como se fosse possível transformar essa ordem por um voluntarismo político. Vejo essa parte da juventude mais acadêmica estar penetrada por velhos jargões da política, querendo mudar a ordem do mundo e achando que isso é possível. Em alguns momentos da história isso é possível, mas essa janela não se coloca a todo momento. Não é por voluntarismo que você vai mudar a ordem, a sociedade. A democracia exige um corpo a corpo com as instituições, a convivência com a pluralidade de opiniões e convicções. Os mais jovens estão pouco dispostos a essa realidade. Estou falando de um grupo mais revolucionário, mas que tem pouca possibilidade na sociedade. Até os anos 1980, esse ainda era um raciocínio político válido, porque havia esperanças revolucionárias, mas hoje temos um compromisso com a ordem democrática. O que, para um país como o Brasil, é uma coisa difícil, devido ao déficit democrático da nossa ordem.
Você diria que é grande esse déficit?
Eu diria que, mais do que democrático, é principalmente um déficit republicano na nossa cultura política. É um déficit de sentimento público e de cidadania que se manifesta em vários níveis. No registro social, a exclusão, a invisibilidade social de boa parte da população pobre, que vez ou outra irrompe à tona da vida normal da sociedade de forma violenta: incêndios de ônibus nas periferias, invasões, roubos coletivos. Também a exclusão política dos sertões e, hoje, dos grotões, onde a lei e o Estado não chegam. No registro político, nossa relação frouxa e ambígua com a lei. Enquanto existe uma cobrança do cumprimento da lei pelos outros, para nós mesmos ela aparece como flexível e negociável. No registro econômico, a privatização sem escrúpulos do público, nas mais diversas camadas sociais, mas sobretudo nas mais altas, que sonegam impostos, acuam os governantes, corrompem eleições. Historicamente esse déficit aparece mais claramente ainda. José Murilo de Carvalho mostra muito bem que nossos republicanos no final do século 19 não aspiravam exatamente aos valores republicanos, sobretudo o valor da igualdade política. Eles queriam o federalismo, mais autonomia para os estados e para os arranjos políticos locais. Uma colega minha historiadora, Heloísa Starling, fala quanto ao Brasil em “República inconclusa” e, mais precisa e elegantemente, em nosso “mal-estar na República”.
Se houvesse maior participação popular, o Brasil poderia ser um país menos corrupto?
Sim. O sinal de uma ordem verdadeiramente democrática republicana é a igualdade, do ponto de vista social. Se há uma igualdade social, há uma equalização das condições econômicas. Mas isso implica participação. Isso é educado pelas instituições, quando elas induzem essa participação, quando elas não dissuadem as pessoas de tomar parte. As instituições são indutoras dessa educação política. Em geral, elas dissuadem disso. A nossa Câmara dos Deputados, por exemplo. A reforma política no Brasil, por isso, é fundamental. Senão, nós temos esse bloqueamento das possibilidades do país. Acredito que deve haver uma mudança institucional. Não são só os indivíduos, é preciso um avanço na democratização da ordem política. A lei da ficha limpa ajuda muito, a lei de financiamento de campanha também ajudaria muito.
Há um grande número de pessoas que se eximem da política com os receios mais variados: ou porque não têm paciência, ou porque acham que a política é assunto dos outros... Como você vê isso?
É verdade que a política dá trabalho. A vida privada já nos pede tanto. Sair para a participação política tem um custo pessoal muito grande. Eu tinha um amigo que dizia “não quero ser cidadão, quero ser indivíduo”, porque dá trabalho. Tanto que a participação, na tradição republicana, é posta como uma virtude cívica, porque exige dedicação. Existem momentos em que a vida política é espetacular. Aqueles momentos mágicos em que você se sente parte de um todo transformando a realidade. O movimento das Diretas Já, por exemplo. Quando você está lá, independentemente da sua condição social, no vale do Anhangabaú, com a sua bandeira, aquilo é de uma força passional emotiva enorme. Nesses momentos, a política é muito gratificante, mas em geral ela é custosa. Isso precisa ser considerado.
Diante da realidade desses déficits comentados, qual o papel de quem pesquisa filosofia política?
Penso que me cabe, antes de tudo, buscar atualizar o ideário e os valores da tradição republicana. Eu e um grupo de colegas, da USP e de outras universidades, vários da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), estamos já há muitos anos empenhados nessa tarefa. Buscar a tradição greco-romana do governo misto, o ancestral de nossas instituições republicanas, estudar o ideário do humanismo cívico italiano (séculos 15 e 16), os debates que envolveram as grandes revoluções republicanas: a inglesa do século 17 e a americana e francesa do século 18. Esse trabalho nos parece crucial. Sobretudo porque, na linha de outros investigadores dessa tradição, interessa-nos contrastar essa longa tradição com a tradição liberal que nasce no 17, aquela que quase tudo centra no indivíduo e nas leis “naturais” do mercado. A tradição republicana está centrada na ideia de um governo de leis, e não de homens. Afirma, modernamente, o caráter social e histórico (não natural) do direito, exige a participação política dos cidadãos, afirma a precedência inquestionável do interesse público sobre os dos indivíduos.
República é, antes de tudo, “coisa do povo”. O que seria esse “povo”?
No momento, uma parte do meu tempo de pesquisador está sendo ocupada por esse estudo. É preciso deixar claro, hoje, o que entendemos por povo, no registro político. Nos últimos anos no Brasil, sobretudo nas jornadas de junho, muito se usou do nome do povo em vão. O pensamento político antigo já definia povo pelos caminhos mais diversos. Pela divisão do trabalho, com Platão; pela cidadania, isto é, pela participação nas decisões políticas, com Aristóteles; pela identificação com um conjunto de crenças e valores, com Políbio; ou ainda pelo reconhecimento do direito natural, com Cícero. Hoje a gente fala como se povo fosse uma evidência que está na nossa frente. As manifestações de junho reforçaram esse caminho de pesquisar as noções de povo na filosofia política.
Você não acha que a política brasileira ainda é muito caudatária em relação a simbolismos como “o operário”, a “luta das minorias”, quando em muitos locais em que a democracia está mais arraigada essas categorias já estão superadas?
É o que eu dizia sobre os estudantes. Depois de um período de experiência democrática, de experiência institucional, você continua falando a mesma linguagem da revolução. Acredito que é preciso, sim, uma renovação das categorias de análise da vida política. Os nossos esquemas de pensamento vieram muito do século 19, de uma fase pós-Revolução Francesa. Acho que ajuda muito voltar à grande tradição da filosofia política, que vem dos gregos, e às grandes revoluções, porque não se trabalha mais com essas categorias e a gente passou a viver esse centralismo da economia. O Montaigne, por exemplo, é uma maravilha, porque você se vê imerso em um mundo completamente diferente do seu. Não é esse mundo que nasceu no século 17 e vai até o século 20, com a ideia contratualista e de que existe um centro do poder. No século 16, não havia isso. Isso era uma das possibilidades de pensar política, mas você tinha outras possibilidades, como no caso do Montaigne, que pensava a política através da cultura, dos costumes. Então, ao mesmo tempo em que você se vê em um mundo completamente diferente do seu, você se identifica com aquilo, porque nós sabemos que hoje estamos no final de um ciclo intelectual e político que fez seu caminho e se esgotou. Tenho plena convicção disso, então acho mais fácil ler autores do século 16 do que autores contemporâneos que insistem em uma coisa que está morta, contaminada por essa ideologia vinda do racionalismo político ou intelectual. Isso fez muito sentido, fez história, mas se esgotou, e nós estamos inventando outras formas. Não sei como vai ser, e acho que os novos meios de comunicação têm muito a ver com isso. É impossível você pensar em um centro de racionalidade levando em conta, por exemplo, a informação que corre na internet, a fragmentação das posições. Estamos entrando em um outro universo, mas não sabemos ainda bem qual é.
Sobre esses momentos revolucionários, você acredita que vivemos em um tempo no qual não há espaço para grandes revoluções, mas sim para mudanças graduais?
Não sou otimista com movimentos como a Primavera Árabe. Acho que são movimentos simbolicamente muito importantes, que são preservados na memória de um povo, mas não acredito em grandes mudanças voluntaristas. O levantamento da sociedade contra um poder autoritário deve ser feito, mas ela precisa, no interior desse movimento, encontrar formas de institucionalização. Do contrário, pouca coisa acontece. Não é questão de você gostar ou não desses movimentos, porque eles acontecem. O problema é como eles se resolvem no interior deles, na direção de alguma mudança interessante.
Nessa estrutura política das democracias ocidentais republicanas que temos, quem de fato governa? A gente pode dizer que o presidente realmente governa?
Em primeiro lugar, é o mercado. Nós assistimos a isso nas últimas eleições. Quando você tem oscilações tão grandes do mercado sem que as companhias tenham mudado um centímetro, você sabe que é um movimento especulativo. Há uma facilidade muito grande de deslocamento de capital que te põe contra a parede o tempo todo, que põe o governo contra a parede o tempo todo. Por isso, não tenho nenhuma dúvida de que o mercado, em parte, nos governa. Além do mercado, existem as instituições que a gente construiu. No Brasil, essas instituições são muito fracas, do ponto de vista do funcionamento democrático: a pluralidade dos partidos, o regime do voto que ainda depende em grande parte do coronelismo, das lideranças locais que impõem o voto, a incapacidade dos partidos políticos terem produzido uma efetiva oposição política programática, com projetos. Temos uma fragilidade muito grande dos partidos políticos brasileiros, comparados aos Republicanos e Democratas nos Estados Unidos e à direita e esquerda na França, por exemplo. Lá há projetos, programas. É algo muito mais enraizado do que aqui. Essa incapacidade nossa de dar forma institucional como expressão das várias partes da sociedade é muito grave. Não haver um bom partido de direita no Brasil, por exemplo, é grave, porque representa uma parte da sociedade. Quando não há um discurso, um projeto, uma formulação do seu horizonte, aí tudo é oportunismo.
Você não vê hoje a sociedade um pouco além desses conceitos de esquerda e direita? Existe parcela da população que seria mais conservadora na economia, liberal na política e tolerante em questões mais pessoais, por exemplo.
Quando você fala em esquerda e direita na política, você tem um discurso conservador da ordem e um discurso que tenta avançar, no sentido da equalização. Do ponto de vista político, isso é o fundamental. As sensibilidades culturais são múltiplas, diversas, dependem de questões religiosas, entre outras. O que decide no horizonte da política é se você quer manter a ordem político-social ou se você tem interesse em um avanço da equalização em um sentido não só econômico, mas social, das condições, de estender o respeito à dignidade das pessoas, valorizar a cidadania geral das pessoas. Porque, apesar de estarmos em uma democracia e o voto ser, a rigor, igual, há uma grande diferença de autonomia cultural, de educação e mesmo social para determinar o voto.
Por que o voto não é igual?
Formalmente, é igual. Mas de fato você tem desde o coronelismo, o voto de cabresto, até o voto comprometido de alguma maneira pelas hierarquias sociais. Não só nas camadas economicamente mais frágeis, mas também nas camadas médias e mais privilegiadas. Outro ponto é que o voto seria muito mais igual se você tivesse um debate do ponto de vista da tomada de posição da imprensa, por exemplo. Acho que todo jornal tem direito a tomar posição em uma eleição presidencial. Um dos grandes jornais de São Paulo faz isso. Mas quando você vê a manipulação de grande parte da imprensa, que se pensa como uma imprensa liberal, isenta, e que acaba sendo uma imprensa de campanha, aí não existe igualdade, porque boa parte da população se deixa levar nesse jogo.
Como você vê essa manifestação da opinião pública digital que se efetivou muito com as redes sociais? Ela facilita no processo civilizatório da convivência democrática, apesar de vermos tantas manifestações amplamente passionais e ignorantes?
Acho que isso ainda não encontrou uma expressão mais adequada para a vida política, para a vida social e a própria vida cultural. Ainda há muita coisa para assentar, para cristalizar. Essa violência das redes sociais se deve ao fato de você ter uma expressão individual passional em que você não é demandado num efetivo diálogo, num efetivo debate. Uma das coisas que mais amo no Renascimento é que ele trouxe a ideia de civilização, da vida civil, na cidade, por oposição à vida rústica do campo. Há essa ideia de que o confronto dos homens os torna mais polidos, mais refinados, trazendo junto a ideia de uma educação e uma formação do homem. É fascinante a maneira como o Renascimento levou adiante essa ideia. Na internet, hoje, mais do que esse polimento dos homens uns pelos outros, da busca de uma razão, do bem, do justo, há uma vontade de manifestar a individualidade. Eu brinco com os meus sobrinhos que houve uma época em que as pessoas queriam ser alguma coisa. Logo depois, as pessoas queriam ter propriedades, dinheiro. Hoje, as pessoas querem acontecer, aparecer, e isso é um fenômeno novo. Então, quanto mais violento e passional você for, mais você aparece.
“Apesar de estarmos em uma democracia e o voto ser, a rigor, igual, há uma grande diferença de autonomia cultural, de educação e mesmo social para determinar o voto”
“Houve uma época em que as pessoas queriam ser alguma coisa. Logo depois, as pessoas queriam ter propriedades, dinheiro. Hoje, as pessoas querem acontecer, aparecer, e isso é um fenômeno novo”
“Não sou otimista com movimentos como a Primavera Árabe. Acho que são movimentos simbolicamente muito importantes, que são preservados na memória de um povo, mas não acredito em grandes mudanças voluntaristas”
“É preciso deixar claro, hoje, o que entendemos por povo, no registro político. Nos últimos anos no Brasil, sobretudo nas jornadas de junho, muito se usou do nome do povo em vão. O pensamento político antigo já definia povo pelos caminhos mais diversos”