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Os irmãos Machado

Postado em 01/03/2001

 

À esquerda, Alcântara Machado (Iconographia); 
à direita, Brasílio Neto (Arquivo FCESP)

São Paulo relembra a vida de Antônio de Alcântara e Brasílio Neto

CECÍLIA PRADA

Uma das mais tradicionais e ilustres famílias paulistas, a dos Alcântara Machado, tem uma razão dupla para festejar, nesta passagem de século: a ocorrência dos centenários de nascimento de dois irmãos que, idênticos em formação e em mérito intelectual, diferenciados por temperamento e interesses, marcaram de forma determinante sua passagem, na cidade e no país: Brasílio Machado Neto (1900-1968) e Antônio de Alcântara Machado (1901-1935).

Eram eles bisnetos do brigadeiro José Joaquim Machado de Oliveira, netos do jurista barão Brasílio Machado e filhos de José de Alcântara Machado de Oliveira (1875-1941), também jurista e professor, mais tarde diretor da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, e escritor, membro da Academia Brasileira de Letras. Este último deixou, além de numerosos trabalhos em medicina legal, um estudo crítico sobre o romântico Gonçalves de Magalhães e uma obra de história ainda lida e citada até hoje, Vida e Morte do Bandeirante, de 1929, ilustrada pelo famoso caricaturista Belmonte.

Nascidos e criados nesse ambiente familiar tão propício ao desenvolvimento intelectual, os dois irmãos, estimulados pelo pai e pelo convívio com as mentes mais brilhantes da cidade, no momento mesmo em que esta se transformava em metrópole, podem ser tomados – cada qual em sua trajetória existencial individuada – como exemplos da inserção da aristocracia paulistana cafeeira no novo feitio, desenvolvido, industrializado, que a nação ia assumindo naquelas primeiras décadas do século 20.

O mais conhecido dos dois, Antônio, apesar de ter vivido apenas 34 anos, deixou um legado literário importante. Lidos e estudados até hoje, seus livros de contos e crônicas, e um romance inacabado, sagraram-no como um dos próceres do modernismo e um inovador da ficção urbana. O mais velho, Brasílio Neto, de temperamento mais prático e mais conservador, homem de ação, encaminhado para o comércio e a política desde cedo, tornou-se um realizador e inovador das práticas mercantis no país. Empresário, político, deputado, depois presidente da Assembléia Legislativa do estado, da Associação Comercial e da Confederação Nacional do Comércio, participou, em 1946, da criação do Senac e do Sesc e foi o primeiro presidente dessas entidades em São Paulo.

Em abril de 1963 fundou a revista Problemas Brasileiros.

A Belle Époque paulistana

O escritor e jurista Cândido Mota Filho – um dos teóricos do nosso modernismo, participante da Semana de Arte Moderna de 1922 – foi grande amigo, desde a infância, de Brasílio Neto, e freqüentador assíduo da casa da família Alcântara Machado, na Rua Frederico Steidel (no bairro de Santa Cecília, em São Paulo). Em artigo publicado na revista Problemas Brasileiros em março de 1969, homenageando o amigo que morrera no final do ano anterior, ele relatava que a casa se caracterizava, segundo a própria senhora Alcântara Machado, por ser "comandada pelos livros, em primeiro lugar, e depois pela política".

Essa casa não existe mais. Sofreu a sina de tantas mansões do velho centro, dos bairros de Higienópolis, Santa Cecília, Campos Elísios e da região da Paulista, onde se concentrava a aristocracia paulistana. Amplas, com quintais cheios de árvores frutíferas, acolhedoras, elas transpunham para a cidade as características da aristocracia rural e favoreciam o convívio de parentes, amigos, agregados. Guardando a lembrança daqueles tempos, Mota Filho – falecido em 1977 – dizia que almoçava freqüentemente com os amigos, e que o bate-papo se prolongava depois, com a inclusão do pai deles, "entrelaçando episódios familiares, fatos políticos e comentários sobre os últimos livros ou sobre os rumos que estavam seguindo os participantes da Semana de Arte Moderna". Ocasiões em que "tinha sempre pretexto para ouvir o Antônio, com sua risada inconfundível, a traduzir, em contos orais, o cotidiano paulista".

A cidade, naqueles anos da infância e da mocidade dos irmãos Machado, perdia seu sossego provinciano, recebia levas de imigrantes italianos, ganhava – em 1900 – a bela Estação da Luz, a remodelação de bairros inteiros com a instalação de um sistema de águas e esgotos, abertura de avenidas, a construção de um primeiro bairro planejado (Campos Elísios), o Teatro Municipal (1911), os edifícios públicos de Ramos de Azevedo, os grandes estabelecimentos de ensino – como o Instituto de Educação (mais tarde Escola Normal Caetano de Campos), que vinham somar-se a outros centros de estudos mais tradicionais, como a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco – as Arcadas –, fundada em 1828.

Em 1900 os bondes elétricos da Light substituíam os tílburis e os bondes de tração animal (criados em 1871). Uma rede de hotéis se estendia, e os viajantes vindos à capital iam aos poucos abandonando o costume de se hospedar em casa de parentes e adquirindo hábitos mais sofisticados. Em Paris, os fazendeiros de café queimavam notas em orgias com coristas francesas de meias pretas. Sobre os restos da sociedade escravocrata e ruralista, a República "abria as asas sobre nós", com seu cortejo ideológico de liberdade e belas palavras. Mas, aos programas políticos não cumpridos, aos conflitos militares e revoltas, São Paulo contrapunha um desenvolvimento econômico acelerado, que em poucas décadas faria dela "o maior centro industrial da América Latina", como diziam as inscrições nas costas dos bancos dos bondes da Light.

São Paulo adquiria rapidamente característica de metrópole. Sua população, de apenas 26 mil pessoas em 1872, em 1900 já era quase dez vezes maior, com 240 mil habitantes. Ao desenvolvimento econômico somavam-se, no campo das artes e das letras, a aceleração do intercâmbio cultural com os países europeus e o surgimento da mentalidade de "vanguarda" que alguns anos mais tarde resultaria no evento que é considerado até hoje o divisor de águas de toda a vida intelectual e cultural do país – a Semana de Arte Moderna de 1922, com seus múltiplos e prolongados desdobramentos.

No campo político, eram aqueles anos de hegemonia paulista incontestada, embora mal sofrida pelos outros estados. Acusados de "arrogantes", os paulistas iam transformando a romântica Paulicéia do século 19 numa certa "locomotiva" muito antipática mas bastante operosa, posto que – no dizer não de um paulista mas do cientista baiano Artur Neiva – "puxava 20 vagões vazios". O escritor Mário Donato, em sua ainda inédita história de São Paulo, O País dos Paulistas, enfatiza o poder político local, mantenedor dos ideais republicanos contra os grupos monarquistas, ainda fortes no início do século 20 nos outros estados.

Na sua atuação nos vários campos da vida pública – nas artes, na economia e na política – os irmãos Machado não se afastaram muito do quadro de sua formação familiar. Foram seus frutos maduros, e devem ser lembrados, principalmente entre os paulistas, como expoentes de seu meio e de sua época.

Um quatrocentão no Brás

Com o muito patrício nome de Antônio Castilho de Alcântara Machado d’Oliveira, o neto mais novo do barão e filho do acadêmico José seria o escritor do mundo novo que se formava, fervilhante de imigrantes, paralelamente às linhas das ferrovias – os bairros italianos que deram título à sua obra mais conhecida, o livro de contos Brás, Bexiga e Barra Funda, publicado em 1927. Seus personagens são os moleques de rua e de cortiço – como aquele Gaetaninho que morre debaixo de um bonde –, as italianinhas namoradeiras, os fanáticos do futebol do Palestra Itália, os operários, as lavadeiras e costureiras, os tecelões. O dinamismo dos enredos criados, o realismo da linguagem pitoresca, o dialeto ítalo-paulista transposto com fidelidade marcam o encontro na "metrópole" dos filhos das classes abastadas (como ele) com o povo.

Pertenceu, sem dúvida, ao grupo modernista de São Paulo, mas não aderiu à Semana de 22. O testemunho de Cândido Mota Filho não deixa dúvida de como o "modernismo" infiltrava-se nos salões da sociedade, na intimidade das famílias, ou nas Arcadas de São Francisco – onde, prosseguindo a tradição jurídica familiar, os irmãos Brasílio Neto e Antônio estudavam. Essa não-participação de Antônio em 22 explica-se por ser ele mais moço dez anos do que os principais organizadores do evento, como Mário e Oswald de Andrade. Ou talvez por se ter conservado sempre um pouco à parte, mantendo em relação ao que escrevia uma atitude vista por alguns como mais de divertissement do que de engajamento.

É o que afirma, por exemplo, o crítico e professor de literatura Alfredo Bosi. Reconhecendo nele o talento ímpar, que o colocaria como inovador da ficção urbana, e lamentando que sua morte precoce interrompesse uma carreira tão promissora, Bosi não vê em seu estilo e em sua temática "nenhuma identificação coerente com o imigrante", mas sim "um populismo literário ambíguo ... esse fatal olhar de fora os novos bairros operários e da classe média a crescerem e consolidarem uma nova São Paulo".

A maioria dos críticos que o vêm estudando, porém, têm uma visão bastante diversa da obra de Antônio de Alcântara Machado. Múcio Leão frisa "o imenso amor" que envolvia sua utilização do material humano que recolheu pela cidade. Álvaro Lins e Sérgio Milliet, entre muitos outros, sagraram-no como um dos escritores "mais representativos" do modernismo, dono de um talento que no breve período de sua maturidade literária (de 1928 a 1935) nos deu obras de grande originalidade estilística, como o livro de contos Laranja da China e o romance Mana Maria, que deixou inacabado e seria publicado postumamente, em 1936.

Mário de Andrade, que teve grande influência sobre Alcântara Machado, louvava nele o fato de ter sido, de todos os escritores de sua geração, "aquele que teve menos a preocupação de fazer moderno". Wilson Martins, em artigo publicado em 1961 – quando a José Olympio editou a obra completa do escritor, sob o título de Novelas Paulistanas –, enfatiza esse aspecto de sua literatura, a capacidade de transcender os modismos vanguardistas e liberar-se de estritas imposições programáticas para dedicar-se com paixão e seriedade ao tratamento da riquíssima temática do urbano-paulistano, servida por um estilo original. Diz: "Por breves que tenham sido a vida e a vida literária de Alcântara Machado ... é bem certo que faltaria alguma coisa à literatura brasileira se ela (a sua obra) não tivesse sido escrita".

No jornalismo também, desde os tempos de estudante até sua morte, Antônio de Alcântara Machado brilhou. Foi redator, crítico teatral e diretor do "Jornal do Comércio", colaborador dos "Diários Associados", e em 1934 tornou-se diretor do "Diário da Noite", no Rio de Janeiro. Foi diretor da "Revista de Antropofagia", da "Revista Nova", e também de "Terra Roxa e Outras Terras". Teve destacada atuação na Revolução Constitucionalista de 1932 e foi para o Rio de Janeiro como secretário da bancada paulista à Constituinte de 1934, da qual seu pai foi membro. Foi eleito deputado federal. Viajou ao exterior, conheceu vários países europeus e reuniu suas crônicas de viagem no livro Pathé Baby (1926). Pouco antes de sua morte esteve na Argentina e no Uruguai, com outros escritores, a convite do jornal "Crítica".

Faleceu em 14 de abril de 1935, em conseqüência de uma operação de apendicite.

Dois temperamentos

Dotado também de sonoro nome tradicional, fruto da mesma cultura e da mesma formação, Brasílio Augusto Machado de Oliveira Neto viveu exatamente o dobro da vida do irmão. Ao falecer, em 28 de novembro de 1968, deixava também marcada, na metrópole que tivera tempo de ver florescer em toda a sua pujança, sua atuação no campo da prática empresarial e política.

A diferença de temperamento e de objetivos dos dois irmãos já podia ser percebida na adolescência. Enquanto o introvertido Antônio se aferrava aos livros, Brasílio se mostrava mais voltado para os esportes – chegou a ser campeão paulista, e depois, brasileiro, de tênis. Cândido Mota Filho ressalta sua "vocação de comandante" desde menino – "inventando brinquedos e determinando os jogos que iríamos realizar com alguns garotos do bairro, nas tardes domingueiras". Ainda na sua lembrança, "menino voluntarioso, que parecia ter nascido para dar ordens, firme sem ser ríspido, incapaz de tolerar discussões por muito tempo", mas também "de uma lealdade quase bravia".

Curioso é também observar o gosto diferenciado, oposto mesmo, dos dois irmãos, no que se referia às artes e às atividades culturais. Enquanto o modernista Antônio desde cedo mostrou-se aberto às manifestações da vanguarda, em todos os campos da arte, Brasílio, homem muito culto também, parece ter sido sempre um conservador, um "acadêmico". O amigo Lahyr de Castro Cotti, que o acompanhou durante mais de 35 anos como colaborador e eventual companheiro de viagens, lembrava a emoção intensa experimentada por Brasílio diante das obras clássicas de Bernini e Ticiano, nos museus da Itália. E da "aula de bom gosto" que lhe teria dado no Louvre, enlevado diante da Vitória de Samotrácia.

No campo das letras, a predileção de Brasílio ia para as biografias, gênero aliás que gozava de grande prestígio (como acontece atualmente) entre o público ledor dos anos 30/40. Mota Filho relata as conversas mantidas com Brasílio sobre a necessidade desse gênero literário, que exalta valores e possibilidades individuais, diante da ameaça crescente de uma civilização de massa. Um de seus livros preferidos era a biografia de Benjamin Disraeli, modelo político, organizador do Império Britânico, escrita por André Maurois.

Deixou várias obras sobre economia, administração e política, e planejava escrever, com a ajuda de Mota Filho, a biografia de seu avô, um projeto interrompido por sua morte.

Movimentador do tempo

Quando ainda estudante, Brasílio se iniciou em atividades comerciais e associativas. Nomeado logo após sua formatura tabelião do 4º Cartório de Protestos na Capital, ocupou de 1931 a 1940 os cargos de diretor e posteriormente de presidente da Associação dos Serventuários de Justiça. Como comerciante e industrial, fixando-se no ramo de rádio e eletricidade, aos poucos deixou-se atrair pela política de classe e foi nesta que realmente se empenhou, no resto da vida.

Diretor em 1942 da Associação Comercial de São Paulo, em 1944 ascendeu à presidência da entidade. Consciente de que "era preciso infundir no brasileiro a mentalidade econômica", trabalhou para a fundação do Instituto de Economia e da revista "Digesto Econômico". Em 1944 assumiu a presidência da Federação do Comércio do Estado de São Paulo e em 1946 tornou-se o primeiro presidente do Sesc e do Senac de São Paulo, que nasceram após a Conferência das Classes Produtoras realizada em 1945 em Teresópolis (RJ).

Em outubro de 1967 ele próprio relembrava em Problemas Brasileiros a instalação dessas entidades: "A semente, então lançada, foi uma tese apresentada pela delegação de São Paulo, que tive a honra de presidir". E, fazendo um balanço dos seus 20 anos de realizações, dava testemunho do "espírito aberto do empresariado nacional a obras sociais", resumindo a filosofia do Sesc-Senac: "A valorização do homem, com a elevação do seu teor de saúde e o aprimoramento de suas habilitações profissionais".

Em 1952 foi eleito presidente da Confederação Nacional do Comércio, e reeleito em 1956 e em 1958. No campo político, participou da Revolução Constitucionalista de 1932 e nos anos seguintes empenhou-se na reformulação do antigo Partido Republicano Paulista (PRP).

Em artigo publicado em 1969, o advogado e economista Paulo Godoy, colaborador durante muitos anos de Brasílio na Confederação Nacional do Comércio, Sesc e Senac, caracterizava-o como "realizador infatigável, mordido pela ambição de servir". E revelava, sob a aparência do homem público, a ansiedade de "nunca estar fazendo demasiado" daquele que a si próprio chamava de "usina de aflições" e assim se definia: "O meu exterior, às vezes impaciente, corresponde à inquietação de quem quer construir e realizar-se".

Diz Paulo Godoy: "Todos foram aos poucos aprendendo a lidar com aquele cacto, que sob os espinhos ocultava imprevistas camadas de mel. Dedicava-se às tarefas de corpo e alma. Era o primeiro a chegar, e muitas vezes o último a sair. Era um mágico movimentador do tempo".

No dizer do jornalista Maurício Loureiro Gama, que o conheceu muito bem, Brasílio Machado Neto era "um temperamento vibrátil, um dínamo humano, e nunca se acomodou às praxes da rotina e às minúsculas dimensões que bitolam o homem medíocre. Brasileiro até a medula, soube dar conotação nova à empresa livre voltada para o futuro, lutando pela paz social sem pensar jamais no esmagamento de reivindicações e direitos justos".

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