Postado em 17/11/2014
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Cleyde Yaconis nos recebeu em sua casa em Jordanésia, a 40 km de São Paulo, numa manhã chuvosa de janeiro. Com a simplicidade que é uma característica sua, talvez um pouco tímida, logo nos diz que não gosta de dar entrevistas, de se expor. Exceção que abriu para a Revista “A Terceira Idade”, dado o contexto e objetivos desta publicação.
REVISTA: Conte-nos um pouco de sua história; infância, maturidade, relacio namentos e lugares onde andou e viveu.
CLEYDE: Minha mãe era uma mulher linda Uma mulher simples, inteligente, brilhante. Era professora recém formada quando casou, mas acabou não exercendo a profissão, pois o marido não queria que ela trabalhasse. Meu pai não punha comida em casa, mas não deixava a mulher trabalhar. A gente mudava muito de cidade. Eu me lembro de Rio Claro, quando eu tinha uns três anos e nossa alimentação era salsa roubada de uma quitanda. Como não tinha dinheiro para calça e combinação, ela fazia macaquinhos de algodão para nós três. Depois viemos para São Paulo, onde morei na Rua Caconde, Jardim Paulista. A gente morava num bangalô, meu pai sumia, a gente passava fome. É a lembrança que tenho. Foi quando ele nos abandonou e fomos viver na casa da vó Maria, em Pirassununga. Minha mãe tinha o estigma de “separada” e nós ficamos um ano lá no fundo do quintal, num depósito do meu avô e nunca sentamos à mesa. Comíamos quando sobrava. Foi aí que mamãe conseguiu vaga para lecionar numa escola rural e fomos morar numa fazenda de colonização japonesa. Quando eu tinha nove anos , mamãe conseguiu uma transferência para uma escola de São Vicente e fomos viver em Santos, pois ela queria que as filhas estudassem. Morávamos numa favela, num casebre feito de contêineres. Era uma fase de miséria absoluta, onde chegamos a roubar para comer. Mas isso não enfeia a vida quando se tem uma mãe e irmãs como eu tive a sorte de ter. Foi uma época dura, mas nós tínhamos certeza de que iríamos sobreviver e vencer. A infância é a fase mais feliz da minha vida, momentos de lutas, de vitórias, ao lado de mamãe e minhas duas irmãs. Era fantástico porque nada disso, a pobreza, a fome, nos massacrava, ao contrário, cada dor era um elemento a mais para nos dar energia e luta. Nenhuma coisa má que nos aconteceu resultou em algo mau, sempre resultou em algo melhor. Depois tivemos uma adolescência extraordinária. Tivemos muita gente que nos fez sofrer, mas também tivemos muita gente que nos ajudou, como Miguel Silveira, Flávio de Carvalho. Era um contra-senso, naquele barraco nós recebíamos pessoas da maior importância, que saíam de São Paulo e iam lá para Santos ver a Cacilda dançar. Então, por esse contra-senso no ambiente em que a gente vivia, no colégio fomos muito judiadas. Mas não faz mal, foi bom também, porque isso nos dá armas para defesa. Quando você é atacada, você aprende a se defender.
REVISTA: Essa sua estrutura, essa persistência de estar lidando com a vida, eu acho que tem um pouco a ver com esse começo, não é?
CLEYDE: Ah, sim, sem dúvida nenhuma. Para mim, viver é uma missão. Eu não considero minha carreira uma profissão como outra qualquer, acho que a arte é diferente, acho que ultrapassa a palavra profissão. Até isso eu digo que é mais complicado, eu não cedo ao repertório, não quero pactuar com o mau gosto e o emburrecimento do povo. Acho que tenho a missão de ajudar. Eu não sou política, não vou para palanque, então o que eu posso fazer é no palco, eu cuido do meu repertório. Estou fazendo essa entrevista porque é outra proposta, mas duvido que vocês me vejam por aí. A não ser em época de estréia, onde eu tenho o dever de participar da parte de publicidade do espetáculo, fora isso, eu não dou entrevista, não quero saber de fotografia, de estar em eventos. Eu não conheço nenhum restaurante em São Paulo, nada, não vou a lugar nenhum, só vou trabalhar e venho para minha casa, vou assistir a uns espetáculos e cuido do meu repertório. Eu tenho...a palavra é orgulho, tenho mesmo, tenho orgulho do repertório que tenhonesses 54 anos de teatro. Eu acho que estou tentando corresponder ao que me foi determinado. Eu sei que tenho talento, seria ridículo dizer que não, então a minha forma de corresponder e de agradecer esse talento é cuidar do talento, cuidar do que eu faço. É um dever, é uma obrigação e a forma de eu agradecer por esse dom que me deram.
REVISTA: Qual a lembrança que você tem dos seus avós?
CLEYDE: Do meu avô, maravilhosa. Meu avô era um homem cultíssimo, era da nobreza, era conde Von Becker, e casou com uma camponesa. Eu não tenho mágoa dela, ela deve ter sofrido muito com esse rigor, mamãe dizia que não podia se cantar nada, só hinos. Tanta religião e no entanto a vida ficou pobre espiritualmente. Meu avô tinha microscópio, ele me deu um microscópio quando eu tinha quatro ou cinco anos, ele falava sobre a mitologia grega, eu me lembro. Mas tudo escondido e ele tinha paixão pela minha avó. Com 70 anos, ele tinha ciúmes da mulher dele. Então é um pouco melancólico, como melancólico foi o contato com meu pai. No último contato eu tinha 18 anos, mas eu não tinha maturidade. Por mais maduras que nós fossemos em relação às outras moças, eu não tinha ainda a maturidade de dizer: “Por que você fez isso?” Eu gostaria de ter dialogado, porque ele também perdeu, ele perdeu o convívio com três filhas e com uma mulher gigantesca, uma mulher fantástica. Não fomos nós que perdemos, foi ele. Não é verdade? Ele morreu moço, com 48 anos, não sei direito do que, foi operado e não resistiu. Mas nós não tivemos a possibilidade de argumentar. Talvez se eu fosse mais velha, mais adulta, mas naquela época, quando ele apareceu, nós tivemos uma reação normal de orgulho de termos sobrevivido sem ele. Ele foi em casa, nessa época nós morávamos numa casinha, num sobradinho de alvenaria, já tinha sofá, tinha alguns móveis, então nós ficamos um pouco felizes por ele nos encontrar já tendo ultrapassado a pior fase.
REVISTA: Apesar de sua infância e adolescência sofridas, você, sua mãe Alzira e suas irmãs Dirce e Cacilda, foram felizes. E você sempre estudou. Que curso fez?
CLEYDE: Normal, professora primária. Depois eu queria fazer medicina, então entrei no Bandeirante, comecei a fazer o científico. Nós morávamos em Santos, viemos para São Paulo, eu e mamãe. A Dirce já tinha casado, casou com o primeiro namorado, felicíssima, graças a Deus, casou muito bem. A Cacilda estava casada com o Tito Fleury e eu vim com a mamãe. Mamãe dava aula no São Miguel e eu recomecei os estudos para fazer medicina, fui para o Colégio Bandeirante, que era o melhor para o científico, e a Cacilda estava fazendo o clássico no São Luís, querendo fazer Direito.
REVISTA: E como é que o teatro passou a fazer parte da sua vida?
CLEYDE: Pois é, eu nunca quis fazer teatro, nem passava pela cabeça, eu fui uma menina que nunca declamou uma poesia, nada, nada, nunca fiz nada. A Cacilda desde pequena dançando, representando. Eu nada, só queria medicina. Depois do terceiro ano científico, comecei a fazer o cursinho, que era ali perto da rua Major Diogo, em São Paulo. Então, às vezes não tinha aula, eu ia ao TBC. A Cacilda estava fazendo Anjo de Pedra, do Tennessee Williams. Um espetáculo extraordiná rio. Foi a primeira vez que fiquei assim num fascínio. Era uma coisa espantosa a direção do Luciano Salce e eu assisti não sei quantas vezes. Uma noite em que eu fui assistir, a Nydia Licia, que fazia o segundo papel feminino, teve não sei o que, acho que foi uma crise de apendicite violenta, chegou a terminar o espetáculo e foram correndo para o hospital. Daí ficou aquela correria, eu não entendia a gente louca de teatro: “Quem faz, como é que faz, tem substituta?” Eu falei: “Quer que eu faça?” Foi um susto, porque eu não tinha noção de que eutinha de cor, de tantas vezes que eu assisti, mas não que eu decorei porque quis. Eu falei: “Ela entra e fala tá, tá, tá”. Todo mundo: “Mas você sabe!”. Eu já tinha assistido 15, 20 vezes, com tanta atenção. Aí subimos, o Ziembinsky me ensaiou, o Salce , eu estreei dois dias depois e fiz 15 dias. Aí o Zimba disse: “Você não quer fazer um papelzinho no Pega Fogo? Preciso de uma empregadinha”. Eu digo: “Não, não quero”. “Mas você tem talento, você pode fazer a empregadinha e ganha tanto”. Eu pensei: “Ainda vão me pagar para fazer, imagina!”. Quem me dava mesada era a Cacilda, me dava “x” e o que eles me pagariam correspondia a quatro meses de mesada. Então comecei a fazer por dinheiro.
REVISTA: Cleyde, desde o começo da sua carreira você interpretou personagens mais velhos, não é? Aos 30 anos, você representou uma pessoa de 80.
CLEYDE: Sim. Muita gente fazia isso porque não tínhamos atores com 50, 60 anos.
REVISTA: O fato de você ter interpretado personagens mais velhos durante um período, alguns personagens marcantes, isso de certa maneira contribuiu para a forma com que você tem encarado a sua, digamos, terceira idade?
CLEYDE: Eu acho que é a minha tendência, eu sempre gostei, me dou muito melhor com pessoas idosas do que com crianças. Eu não gosto de conviver com crianças, não tenho talento para conviver, acho criança uma coisa complicadíssima, dificílima. Tanto que eu não tenho filhos, por opção. Por exemplo, eu sou muito mais paciente de ouvir a mesma história dez vezes de uma pessoa desmemoriada, como se ouvisse a primeira. O idoso nunca me cansou, eu sempre admirei a riqueza, porque o idoso, do meu ponto de vista, me dá mais. A criança nos suga, tenho a impressão de que criança chupa a carótida (risos). O idoso nos dá muito mais e a criança nos suga com a vitalidade, o tempo, o ritmo da criança. Então eu sempre me dei muito bem, talvez isso tenha me ajudado a fazer uma coleção de personagens. É muito engraçado, agora com 81 anos, estou fazendo personagens com 60. Com 30 eu fazia de 80, agora que estou com 80 faço de 60, estou fazendo personagens mais jovens. A Mary Tyrone devia ter uns 65, a da “Jornada”. Essa personagem que estou fazendo deve ter também seus 60.
REVISTA: Cleyde, você é uma das atrizes mais premiadas desse país. Dentre esses prêmios, você recebeu o Moliére por ter feito a Geni de “Toda Nudez Será Castigada”.
CLEYDE: E um outro por uma peça “Baile de Máscaras” do Mauro Rasi.
REVISTA: Porque a Geni foi um papel recusado por muitas atrizes?
CLEYDE: Pois é, o mais engraçado é isso, porque eu sou caretona. Eu sou careta, tem coisas que não gosto mesmo, de facilidades, não entendo a liberdade sexual como uma coisa muito importante. Eu gostaria de ter sido casada, ter ficado com um marido só. Tóxico... eu nunca vi um cigarro de maconha, além de nunca ter fumado, nunca nem vi, não sei nem como é, falam do cheiro e não sei como é. E aceitei fazer a Geni, não entendo. Todas as atrizes que eram cariocas, todas recusaram, me parece que por causa de uma frase, quando ela diz que sexo para ela não pegava. A Geni era uma prostituta, mas era muito pura. Ela dizia: “basta pegar uma bacia, tchó, tchó, tchó, lavar a xoxota”. O sexo para ela era uma coisa física que, lavando, não atingia a alma, era isso que ela queria dizer. Ela podia dormir com 500 homens que continuava intocável, porque lavando “o sexo saía”. Eu aceitei o papel e, não entanto, sou careta, mas eu interpreto. Se eu faço rainha Elizabeth, sou rainha. Se faço a Geni, sou prostituta. É uma coisa que eu não entendo. Por exemplo, eu sou careta, mas não sou idiota; se a minha personagem tem que ficar nua, fica nua; se é para dizer palavrão, ela diz palavrão. Depende de quem ela é. Eu faço a rainha Elizabeth do Shiller, que fala em versos, enfim, a beleza literária e depois falo palavrão fazendo a Geni, mas é uma interpretação. Quando eu estava em Porto Alegre, recebi um telefonema do Nélson Rodrigues: “Cleyde, estou desesperado, você tem que fazer a peça”. Eu digo: “Que peça é?” Toda Nudez Será Castigada. Eu perguntei: “Quem dirige?” Ele falou Ziembinsky. Eu falei: “Já tem o elenco?”. “Já tenho o elenco: Luíz Linhares, Nelson Xavier, Elza Gomes”. Eu falei: “Já aceitei”. E ele: “Você não quer ler a peça?” Eu falei que não, peça de Nélson Rodrigues, direção de Ziembinsky. Vou ler a peça? Já aceitei, vou para o Rio. Eu não entendia porquê as atrizes... Que coisa estranha, né?
REVISTA: Elas recusavam?
CLEYDE:Todas, a Fernanda, a Teresa Raquel. O espetáculo estava com tudo pronto, o elenco pronto e não tinha a protagonista, porque as atrizes se horrorizavam com a personagem. Não sei explicar, só elas poderiam dizer.
REVISTA: Você fez e faz teatro, cinema, televisão. No entanto, o teatro tem um peso mais forte, uma tônica maior na sua vida.
CLEYDE: Eu sou uma atriz de teatro que faz cinema e televisão.
REVISTA: É possível o ator brasileiro sobreviver com dignidade fazendo teatro?
CLEYDE: Sim. Com 54 anos de profissão eu só tenho essa casa e um carro, porque cobro muito pouco fazendo teatro. Eu ganho pouco.
REVISTA: Ou seja, teatro no Brasil, infelizmente, ainda paga muito pouco.
CLEYDE: Sim. Mas chega, porque eu não uso jóias, não uso nada, não gosto de roupa, minhas roupas têm 20, 30 anos, não entendo de grife, uso o que eu compro. Tendo a minha casa, comida para a minha cachorrada, meu funcionário ganhando direitinho, meu carro é baratinho, não entendo porque comprar carro que faz 200 por hora para andar a 10, realmente não preciso de muito dinheiro. Tendo a minha comidinha, quero minha cachorrada bem tratada e tenho esta casa, para que quero mais? Não preciso de mais nada.
REVISTA: Você é muito criteriosa na escolha dos textos que você encena. Quais critérios são determinantes para que você escolha um texto?
CLEYDE: A dramaturgia de qualidade em primeiro lugar. Eu não gosto de falar, não quero criticar quem faz, mas eu não quero fazer besteirol, bobagem, que outro público assiste. É importante rir, mas se pode rir de uma comédia de qualidade. Eu não sou contra a comédia, mas usar a gag, rir de bobagem não estou a fim, primeiro porque não acho graça. Eu vou assistir aos espetáculos, mas não dou uma risada. Agora, cinema mudo, Haroldo Lloyd, Carlitos. Entende? Dizem: “Você não ri”. Não, eu rio, mas desse humor banal eu não acho graça. Então não posso fazer. Eu prezo o valor literário do espetáculo, a dramaturgia de qualidade. Eu não vejo só o meu papel, é claro que quero fazer papel bom, seria ridículo dizer que eu quero ponta, não é verdade, eu quero um bom papel, mas num grande texto. Agora, politicamente, um grande texto que queira convencer o público de que a direita é a opção política eu não faço, por melhor qualidade que tenha o texto. Então interfere também no que a peça pode servir ao homem, no que ela podeajudar nos direitos humanos. Então, se a peça é um grande texto, mas que contraria o que eu penso politicamente, eu também não faço. Recuso para não ter problema se sei que no elenco o tóxico entra, também não faço. Não faço porque não quero me aborrecer, cada um faz o que quer. Eu fumei, por exemplo, 50 anos e não me tornei uma ex-fumante chata. Assim como eu fumei, quem quiser fuma, escolhe. Essa é a liberdade. Tem ex-fumante que, tenha paciência, começa a pregar. Eu deixei de fumar não por causa de câncer no pulmão, até hoje não sei por que deixei de fumar. É ridículo falar no mal do fumo com este mundo, com a poluição, onde o peixe é impregnado de mercúrio, o frango, a carne, é tudo cheio de droga. Cigarro dá câncer no pulmão? O planeta Terra é um poluente. Hoje quem não tiver câncer é simplesmente por sorte, porque come cancerígeno, a verdura tem cancerígeno, a água tem cancerígeno, o ar tem cancerígeno, sabemos nós o que tem de contêineres com produtos radioativos jogados nesse bendito mar, que é a lixeira do mundo. Então, não me venha falar do cigarro, eu acho uma atitude hipócrita quando se faz à vontade, propaganda de bebida, principalmente com jovens. Eu moro aqui em Jordanésia, quando venho de noite do teatro vejo a garotada com 12 anos bebendo cerveja. Agora, cerveja não é ruim e o cigarro é? Eu acho muito engraçado, quando o cigarro só prejudica quem fuma, enquanto que o álcool destrói, interfere na família. Então, eu que sou uma ex-fumante, podem fumar na minha frente, não incomoda, podem soltar fumaça.
REVISTA: Cleyde, como é conviver e trabalhar com jovens?
CLEYDE: Me dou muito bem, porque eu sou muito franca. Inclusive não gosto da palavra aula, eu faço as conversas lá no “Célia Helena”, fiz agora com Ulysses Cruz, eles me chamaram e eu fiquei fazendo. Eu sou muito franca com os jovens, eu digo: “Adoro certas coisas de vocês, gostaria de gostar de alguma coisa de vocês que ainda não gosto, mas gostaria de chegar a gostar e tem coisas de vocês que eu não quero gostar”. Então, partindo desse princípio, com toda a franqueza eu digo: “Isso eu detesto de vocês”. A questão da adrenalina... eu não posso gostar de jovens que não têm o menor respeito pela vida deles. Eu morro de dó quando vejo criança de quatro anos brincando com joelheira, cotoveleira, capacete. O jovem acha que só se diverte quando corre risco de vida. Isso eu detesto, não quero gostar dessa irresponsabilidade em relação à vida, disso eu não quero gostar, acho um absurdo. Não é uma judiação criança com quatro anos se divertindo? Se divertindo? Eu brinquei com quatro anos no rio, subindo em árvore. Na minha época a gente andava de bicicleta, hoje bicicleta é um aparelho mortal, a criança para andar de bicicleta precisa de cotoveleira, joelheira, capacete? O que é isso?
REVISTA: Os esportes radicais?
CLEYDE: Por quê não gosto? Porque mostra uma pobreza interior muito perigosa no jovem. Ele é pobre espiritualmente, então ele precisa enriquecer com uma excitação, mas o cultivo espiritual no jovem está completamente abandonado. Então eu sou muito franca, tem coisas que eu adoro, coisas que eu gostaria de gostar e coisas que eu não quero gostar.
REVISTA: Mas esse convívio com jovens em seu trabalho tem sido uma coisa...
CLEYDE: Muito boa, muito boa, uma vitalidade, uma troca. E veja que eu já acho que estou na quarta idade, não é mais a terceira, a terceira é até 68, 70, eu estou na quarta, porque a diferença de 70 para 80 é muito grande.
REVISTA: Quais são seus hábitos?
CLEYDE: Eu faço musculação, faço exercício, não engordo. Mas não faço regime, acho comer uma coisa horrível, não gosto do processo de comer, então para mim não tem problema porque como um pouquinho, sempre comi pouco. O meu peso é o mesmo há 40 ou 50 anos. Mas busco a vitalidade do jovem. Então, quando eu estou cansada e trabalho com um jovem, na parte física ele me puxa. Eu posso puxá-los na tarimba, na confecção do personagem, mas a troca de vitalidade, ficar em pé ensaiando horas, ele te dá uma energia no ensaio, uma energia física que é muito boa, alegria. Até brincadeira, ensaiar não tão respeitosamente, isso é bom. Como eu falei, em razão da seriedade da minha vida, gosto de me relacionar com jovens menos “responsáveis”, menos exigentes. Eu sou exigente demais comigo mesma, então eles me dão um relax.
REVISTA: Qual foi o peso que teve na sua carreira e mesmo na sua vida pessoal ter Cacilda Becker como irmã?
CLEYDE: A Cacilda era uma coisa espantosa. A mais maternal era a Cacilda, a Cacilda sempre queria tudo embaixo da saia dela, ela era protetora da classe teatral. Não esqueça que o Plínio Marcos disse: “Perdemos nossa mãe”. A Cacilda era a mãezona. Se ela não fosse atriz, eu acho que era o tipo de mulher que queria ter 12 filhos, aquela mesa cheia de gente. Por isso ela tinha a classe teatral embaixo da asa. Eu dizia para Cacilda: “Cacilda, larga de ser ridícula”, porque ela me chamava de “minha irmãzinha”. Ela era desse tipo que colocava dinheirinho escondido na minha bolsa, esse lado familiar. Então eu dizia: “Larga de ser boba, Cacilda, você é ridícula, quando você estiver com 83 e eu com 80 vai me dar a mão para atravessar a rua?”. Então esse lado protetor, isso também ela carregava como atriz. Quando eu comecei, ela já era profissional, ela já tinha feito trabalho com o Raul Roulien , depois com a Bibi Ferreira, já devia ter dois anos trabalhando no TBC. Agora, não esqueça que não era só a Cacilda, tinha Paulo Autran, Sérgio Cardoso e Ziembinsky. Nós não tínhamos escola, foi o aprendizado na prática. Isso é o que hoje eu faço com os jovens, “vai por esse caminho, vai por aqui, cuidado nessa cena, procure isso, procure aquilo”, ela fazia comigo em casa. Evidentemente, assim como ela olhava todos os atores, eu presumo que ela devia olhar ainda mais para mim. Ela ficava uma pilha nas minhas estréias e eu nas estréias dela.
REVISTA: E a morte da Cacilda, como foi assimilada?
CLEYDE: Foi a primeira perda. Mas hoje a morte para mim é uma coisa muito natural, ela está me esperando, eu converso com ela sempre. Foi a Cacilda, depois foi a mamãe, depois foi a Dirce e eu não sei por que eu fiquei por último. É uma coisa que me deixa muito tranqüila, porque a Dirce ficou viúva e veio para casa, nunca tinha me ocorrido, nós estávamos muito bem e eu estava certa de que a gente ia ficar assim velhinha aqui no quintal, ela gostava muito de plantas, morando comigo, nunca me passou pela cabeça o que ia acontecer. É tão estranho. Quando ela soube, foi super-rápido, foi câncer no fígado, então entre declarar a doença e a morte foram 40 e poucos dias, foi super-rápido. Quando ela soube, ela disse: “Graças a Deus, eu rezei tanto para não ser a última”. Ela era muito frágil, ela não teria agüentado se eu morresse antes. Então você vê como Deus é fantástico? Quando ela disse “eu rezei tanto”, eu levei um susto, porque nunca tinha me ocor rido que uma de nós duas iria embora antes e ela já rezava para não ser a última e foi atendida. Então, pelo fato dela ter sido atendida, eu nunca vi uma coisa mais serena para morrer. Ela amoleceu o corpo, como que dizendo: “Me leve”. Eu estava com a Maria Tereza Vargas, estávamos as duas e ela suspirou e morreu. Uma coisa espantosa, mas porque ela já estava rezando antes. Só que ela não precisava ter ido tão depressa, não precisavam ter atendido ela tão rápido.
REVISTA: Como você faz essa relação da religiosidade com a morte e com a vida?
CLEYDE: Eu acho que viver é uma missão mesmo. O filho da Cacilda e o neto são espíritas, são kardecistas. Então eu acredito, acho que a gente tem que aprender. Eu converso com o que chamam de Deus muito naturalmente, não sei se é uma força, é um mistério que não consigo deslindar. Então, já que é impossível deslindar o mistério da existência da vida, eu aceito esse mistério e me faz muito bem rezar. Eu rezo não sei quantas vezes por dia, você acredita? A natureza me dá muita certeza da vida e da morte, já perdi tanto cachorro que morre, meus dois gatinhos morreram, árvores que morrem. Você duvida disso quando você se diferencia da natureza, mas quando você passa a fazer parte da natureza a vida e morte é uma coisa muito natural, nasceu, viveu, morreu. É só aceitar simplesmente isso, porque é assim a natureza, eu perco árvores. Qual é a diferença? Dez anos atrás eu perdi uma cachorrinha, morri de desespero, como eu sofri com a minha mãe, com a Cacilda, com a Dirce! Eu sinto falta, mas não sofro pela morte mai. Para compensar a falta, eu vou mostrar, na minha casa tenho uma parede da Cacilda, chamo “Parede da Cacilda”, a parede da minha mãe e a parede da Dirce, eu encho a minha casa de fotografias delas. Dizem que isso nos deixa melancólicos. De jeito nenhum. Eu viro a cabeça e dou de cara com elas, elas estão comigo. Eu tenho certeza absoluta de que no meu momento minha mãe vai me pegar no colo, ou a Cacilda, porque a Dirce era menos maternal. De repente pode até ser ela, mas mais maternal era a Cacilda, “minha irmãzinha” ela dizia, coisa típica da Cacilda. Eu não faço unha, nós éramos completamente diferentes, ela era vaidosa. Lembro de um dia em que ela pegou a minha mão, eu tenho calo na mão, a unha quebrada, ela disse: “Não faz isso, olha a sua mão”. Eu virei para ela: “Cacilda, o que você quer, que eu tenha a mão bonita ou seja feliz?” Ela falou: “Feliz”. E nunca mais me amolou.
REVISTA: Essa busca pela felicidade que eu acho que você foi construindo pode ser a responsável pela sua qualidade de vida e essa longevidade diferenciada?
CLEYDE: É. Eu não ligo para as coisas que dizem importantes. Inclusive chega a me irritar um pouco, eu não posso entender. Às vezes, colegas meus ficam prestigiando griffe, moda, revistas que eu folheio só quando vou ao cabeleireiro. Esse cabelo agora é da peça, viu? Então você pega a revista: fulano vestiu a sandália de cinco mil reais. Nesse mundo, griffe, sapato, roupa, o preço das coisas. Como é que pode, por que, para que? Não concordo com isso, concordar é pactuar. Eu vejo aqui o filho do meu caseiro, quando tinha cinco, seis anos, a mãe comprou alguma coisa e ele disse: “Mas não é de grife”. Nós estamos em 2005, o que aconteceu agora, essa onda, esse tsunami é um aviso da natureza. Disseram que morreu muita gente. Não, morreu muito pouca gente, porque é um pequeno aviso de que a natureza está ficando brava e cansada. Não morreu muita gente, morreu pouca, porque a próxima onda, que não vai demorar, vai ser muito pior. Isso foi um aviso, a natureza está avisando. Depois você abre a revista e vê os valores atuais. Eu tento preservar os meus valores.
REVISTA: Como você analisa a atual situação política no mundo?
CLEYDE: Péssima, péssima. Eu já desisti... tóxico, corrupção, prostituição. Isso eu acho que é um ciclo da civilização e esse ciclo vai terminar. Dizem que sou pessimista. Não, eu sou otimista, porque depois que esse ciclo terminar vai recomeçar um novo ciclo com novos valores. Eu digo para vocês, eu acredito, está próxima a grande hecatombe. Vocês não acham? Eu tenho certeza, virá, vai sobrar talvez no máximo um terço da humanidade. Então, quando vejo criança nascendo, eu tenho uma tristeza. Acho tão secundária a situação política do Brasil, compreende? Os juros e tudo... bobagem. Está muito próxima a hecatombe. E as pessoas poderosas não têm filhos, não têm netos? O que é isso? A grande preocupação para mim não é a política, se vai subir juros ou não. Eu sou uma pessoa que vive com dois, três mil reais, não preciso mais do que isso. Tem gente que ganha 400, 500, eu ganho cinco mil em teatro e acho um ótimo salário. Então estar preocupado com coisas menores quando não sabemos se daqui a dez anos vai ter água? Me desculpe, querido, não me interessa a situação política.
REVISTA: Pensado nessa hecatombe, o que você sugere para as pessoas que estão envelhecendo? Hoje a medicina, a ciência já cumpriu a parte dela e nos garante que viveremos até 120. Agora, o que fazer com esse tempo de vida, o que você recomenda para as pessoas que hoje estão com 60 anos e que a ciência garante que vão viver até 120? Como aproveitar a vida?
CLEYDE: Eu acho que aproveitar a vida é sempre no servir. Por exemplo, eu não estou cuidando de um asilo, mas no momento em que eu não tiver mais possibilida de de trabalhar em teatro, isso vai acontecer. Por enquanto a minha cabeça é muito boa, mas não sei por quanto tempo ela estará boa. Mas eu acho que posso servir. Eu posso não poder mais fazer teatro, mas ainda posso servir, eu vou entrar num grupo de ajuda, vou cuidar de outras velhas que estiverem pior do que eu. Ou vou cuidar dos animais. Se você não pode cuidar de velhos ou não tem força para cuidar de crianças, se dedique a cães abandonados, gatos abandonados. É doação, é a maneira de você viver melhor. Quando você dá, você recebe automaticamente. Agora, evidentemente, você deve ter reparado no meu físico, porque não é de hoje, eu não passei a cuidar da alimentação depois de “x” idade, mas sempre. Primeiro porque com a pobreza a gente comia muita verdura, tinha um homem que tinha horta, a gente comia salada de salsa. Eu roubei para comer, tinha um homem que tinha uma plantação, a gente ia de noite, pegava cenoura, cortava e tornava a plantar o cabinho. O homem chegava de manhã, olhava a plantação dele, tudo caído. (risos) Então eu nunca tive uma alimentação farta e abundante, gordura, manteiga, não tinha nada disso. Mamãe comprava feijão, arroz e batata, e o resto a gente pegava na feira. Eu não gosto de gordura, não como, como o que é feito no forno. Frango é cheio de produtos cancerígenos, então, tiro a pele, eu só cozinho num caldo de abacaxi ou laranja, gosto muito de sabor agridoce. Eu gasto uma lata de óleo de fritura, apenas uma em dois meses. Carne não como, frango só cozido no forno com caldo demfruta, pego o peito de frango e gosto de rechear com gengibre, manga e abacaxi. Gosto muito de grão, como muita sopa, sopa de lentilha, sopa de ervilha, sopa de grão de bico, gosto de cozido com repolho, batata doce mas não preciso da carne. E tenho uma hortinha, que não tem agrotóxico. Couve... como meu funcionário não é entendido, eu planto mostarda, rúcula, almeirão, alface, tudo que é fácil, como ele não sabe cultivar não vou arranjar um problema para ele e nem para mim. Então eu como uma comida muito sadia. Hoje tem batata doce, tem um peitinho de frango, mas tudo no forno, 90% no forno.
REVISTA: Você diz que está sempre servindo, tem a ver com aquilo que a sua mãe dizia na sua infância, que na sua casa...
CLEYDE: Ninguém fica com a mão no colo. Isso as pessoas deviam aprender: “nesta casa ninguém fica com a mão no colo”. E outra coisa que ela dizia: “Nós somos um banquinho de quatro pernas”. Se você tem uma família, seja um banquinho de tantas pernas, se uma falhar desequilibra. A saúde e o viver bem estão ligados a uma coisa: trabalho. A única coisa sua, porque filho não é seu, marido não é seu, a única coisa sua, absolutamente sua, é aquilo que você faz, a tua atividade, o teu trabalho. Isto é teu, então procure fazer o melhor possível, seja o que for. Eu varro a minha calçada, gosto de varrer bem. Se resmungar, varro mal. Tenha prazer de ver o resultado. Eu começo meu dia arrumando flor, adoro arrumar flor em casa. Não corto as minhas, não corto flor do meu quintal, mas as já cortadas, não há nada melhor do que você pegar o vaso de manhã, arrumar o vaso. Quando você acabar de arrumar o vaso, já os fluidos melhoraram. Reza uma prece que o teu dia começa e termina bem.
REVISTA: O teatro pode ser um instrumento de conscientização e de quebra de tabus. Ao longo da sua carreira, quais trabalhos melhor cumpriram essa função para você?
CLEYDE: Eu acho que todos. Se você não recebe nenhuma informação no sentido diretamente político, mas recebe no estético, então vale saber que uma coisa é bela, ter o prazer de ouvir um texto. Manuel Bandeira dizia que você ouve a poesia, a beleza, a escultura, a pintura. Se é arte, já cumpre, são várias as missões, cultural, de gosto, de prazer, de beleza. Não é verdade? Se acrescido a isso ainda você ajudar a armar o indefeso contra os poderosos, (aplaude)... bravo! Se além da beleza, da estética, de tudo isso, ainda você ajudar as pessoas a se defenderem do usurpador, melhor ainda.
REVISTA: De que maneira você acha que o teatro pode contribuir para a aproxima ção das gerações? Hoje fala-se muito em intergerações, o jovem, o adulto, o idoso, não tem mais aquela segmentação.
CLEYDE: Veja, eu acho que vale pela troca. Você vê em São Paulo o que tem de grupos jovens fazendo teatro. Se eles vão para o teatro é porque eles admitem que o teatro vai servi-los para viver, um estilo de vida. Não é só como profissão, é uma escolha de uma carreira de uma vida. Tirando aqueles que vão pela vaidade, pela bobagem, para ser a mocinha e o rapazinho da novela, que são os equívocos da arte de representar, só o fato de se ir ao encontro do teatro é prova de que ele aceita trocar experiências. Senão, é óbvio, se procuraria um setor da vida onde o mais velho não entra. Mas o mais velho está no teatro. Os jovens vêm sôfregos nos pro curar. Eu vejo no meu contato com os jovens que eles querem a pesquisa, eles querem saber como eu faço meu trajeto, como eu encontro a personagem, querem aprender. Não é maravilhoso? Querer aprender com o mais velho propicia a troca.
REVISTA: Você, desde o início da sua carreira até hoje, tem sempre trabalhado com grandes diretores do teatro brasileiro. Como é esse relacionamento, você se dá bem com os diretores com os quais trabalha?
CLEYDE: Eu sou muito vaidosa porque os diretores adoram trabalhar comigo, porque eu me entrego totalmente. Quando eu aceito a peça, eu embarco junto, porque acho que só quando o diretor erra, eu erro junto. Quando o espetáculo, infelizmente, não pega, eu estou junto. Mas cada diretor nos dá uma coisa, as pessoas são tão diferentes. A forma de ver um espetáculo, às vezes, é tão surpreendente: eu vejo de um jeito e vem um diretor e vê de outro. Ver através de um olhar diferente te enriquece, porque na vida você vê a vida de um jeito e eu vejo de outro. Se eu não presto atenção à forma como você vê, não aprendo nada. Eu posso até discordar, mas é importante que eu veja como você vê. Assim na direção teatral também, ele vê o espetáculo de uma forma diferente. Esse espetáculo da mãe de Marguerite Duras com o Emílio Di Biasi, eu não conseguia ver como é que um diretor podia pôr essa peça em pé, eu estava curiosa. É tão estranho, mas foi tão gostoso exatamente trabalhar quando eu não sabia como levantar aquele espetáculo. Com meus 54 anos de teatro, eu não saberia pôr aquele espetáculo em pé. Então fui acompanhando o trabalho do Emílio muito curiosa, foi excitante ver como é que ele fez, porque é uma obra literária para ser lida, do meu ponto de vista, e ele fez para ser representada. É literária a peça, é cinema. O Flávio Rangel era de um jeito, o Celi de outro. É muito importante. Imaginou ser dirigida só por um diretor? Você passa a ficar bitolada, vendo as coisas de um jeito só. É por isso que as peças continuam sendo representa das, porque a visão de cada um para levantar o espetáculo é diferente. Quando eu fiz a Medéia, foi um exemplo bem claro. Eu fiz a Medéia com o Silney Siqueira. Abujamra quase me matou, odiou e disse que eu estava completamente errada. Para ele, a Medeia era uma mulher ferida, era o útero, a mulher que foi trocada. Eu fiz a Medéia exatamente quando acabou meu casamento com o Stênio Garcia, que me largou por uma mulher 20 anos mais moça. Eu disse ao Silney que a mulher abandonada pelo marido é secundário, porque vem o Creonte a expulsa.Isso ocorreu em 69. Meu Deus do céu, marido dar chute na gente não tem importância nenhuma, o que tem impor lher que uiva, uterina, e eu fiz ao contrário, comecei uivando abandonada e, quando o Creonte expulsa a Medéia, ela se torna cerebral na vingança. Abujamra ficou louco, porque ele via só a personagem uterina e eu disse não. Se eu fizesse hoje a Medéia, faria politicamente. É muito mais grave você ser exilada de um país do que abandona da pelo homem, fica quase ridículo. Chora, bate a cabeça na parede e pronto, acabou. Mas você ser expulsa, o poder político, ah, isso é muito mais grave. Você imagina, eu ia fazer a peça com o Abujamra, nós íamos nos matar. O Silney concordou, a Márika Gidali fazia a parte física, ela é uma lutadora, então nós vimos o lado político da Medéia como muito mais importante do que o lado da mulher ferida. Hoje eu continuo achando que eu estava certa e o Abujamra continua dizendo que estou errada, que o importante é a mulher abandonada, é o útero. Não sei quem está certo. Acho que não importa, importa o resultado. Se alguém fizer a Medeia uterina fantasticamente, equivale a uma outra fazer a Medeia politicamente. São dois caminhos, não quer dizer que um seja melhor que o outro.
REVISTA: Dentro dessa missão política, você foi atingida nos momentos da ditadura, da repressão?
CLEYDE: Eu passei dois dias na cadeia lá na Estação da Luz, no Dops. Me pegaram, me prenderam, foram cinco carros me pegar na porta do TBC. Foi a Cacilda que me tirou rapidamente, não sei o que ia acontecer comigo. Eu estava casada com o Stênio ainda, falei: “Avisa a Cacilda”. Fui presa acho que às 23 horas e pouco, à 1 hora da manhã já tinha o recado: “Não mexe nessa moça”. Você sabe, né? A Cacilda salvou muitos, ela não saía do Dops e na casa dela todo mundo sabia que tinha uns dominicanos escondidos. Não subiam para pegá-los porque a Cacilda era intocável, não podiam tocar na Cacilda. Fugiam todos para o apartamento da Cacilda, porque ali era seguro. Ela me tirou em dois dias, mas eu fiquei lá. Eu fiquei sozinha numa cela, aquela de porta, não gradeada, um banquinho de cimento. Quando eu desci, tinha um buraquinho numa outra cela, ouvi: “Cleyde”, era o Mario Schemberg que estava na outra cela. Era junho, era frio, só tinha uma laje para deitar.
REVISTA: Cleyde, o que você gostaria de falar aos jovens?
CLEYDE: Amem a vida, sejam alegres, mas não cometam esse crime contra vocês mesmos. Usem a palavra adrenalina para fazer o bem. Odeio essa palavra adrenali na do jeito como é usada. Aos filhos de quatro, cinco anos, diria: “arranjem um brinquedo em que não ponham capacete e joelheira”. Quebrar o braço, tudo bem. A gente quebrava a perna, um cortezinho na cabeça. Mas que ele brinque sem risco de vida. Amem a vida, mas amem certo. É isso.
REVISTA: E aos velhos?
CLEYDE: Ah, tanta coisa. O velho já é uma pessoa maravilhosa. Sabe que eu falo isso e não consigo me incluir ainda? (ri) Não consigo, me sinto ainda tão bem. Aos velhos eu diria: trabalhem. Arranjem qualquer coisa, mas trabalhem. Não fiquem com a “mão no colo”, é perigoso. É perigoso porque daí a cabeça fica velha. Enquanto puderem pensem, trabalhem, leiam, façam palavras cruzadas e exercício de matemática, contem histórias. Uma coisa boa é escrever, a pessoa também se encontra. As pessoas escrevem pouco, né? Escrevam, escrevam sobre o dia que está terminando, façam um diário, uma auto-análise. Escrever é uma coisa muito boa para desenvolver a cabeça, escrevam, comecem a fazer diário.
REVISTA: Você escreve muito, Cleyde?
CLEYDE: Escrevo.
REVISTA: Como entram as tecnologias novas aí?
CLEYDE: Nada, eu odeio. (risos)
REVISTA: Você não tem Internet?
CLEYDE: Não tenho nada, não quero. Eu não quero ver o Louvre num quadradinho, me recuso, me recuso. Eu viajo e não tenho uma fotografia. Fui à Grécia, África, não tenho nenhuma foto, porque do que eu não lembro não adianta ter fotografia e o que me gravou eu lembro até hoje. Na Grécia, a rua Epidauros, onde eu fiquei num hotel que custava um dólar por dia com café da manhã, essas coisas eu gravo na memória. Daquilo que eu não gravei não adianta ter fotografia e do que eu gravei não preciso de fotografia. Tanto que não tenho fotografia minha. Graças a Deus, tenho das minhas queridas. Secretária eletrônica também não tenho.
REVISTA: Você não acha que a Internet aproxima as pessoas?
CLEYDE: Não sei porque nunca usei. Eu não tenho, então não sei a utilidade.
REVISTA: Como é que você se comunica com as suas pessoas queridas?
CLEYDE: Só por telefone. Eu fazia isso há dez anos atrás e ninguém morreu por falta disso, a comunicação, o afeto e o amor existiam. Sabe quem mora aqui na frente? O Armando Pascoal e o Odilon Nogueira, que eram os primeiros alunos da EAD, da turma de oito alunos. Eles moram aqui na frente, são meus amigos há 50 anos, sem Internet. Os meus amigos são os mesmos. Eu tenho vários conhecidos, mas amigos são uns dez. De todos esses 50 anos, os amigos, daqueles que se pede socorro, são os mesmos.
REVISTA: Você disse que não vai a restaurantes... mas você vai ao teatro...
CLEYDE: Vou ao teatro. Mas não vou a todos. Acho muito chato ver uma coisa que eu não goste por equívocos. Não vou ver besteirol porque vou ser mau público, eu não rio. Inclusive de repente meu fluido estraga o espetáculo. Acredito nisso, alguém com fluido cinza na platéia contamina 300. Então eu não vou porque de repente vou e não rio, fica aquele espetáculo péssimo, ainda vou prejudicar um colega. Eu fui ver Caixeiro Viajante, como gostei da direção. Gostei do resultado, mas exatamente por causa da direção. Tio Vânia foi bom. Depois vi aquele Café com Queijo.
REVISTA: Você continua indo para o Rio dirigindo seu carro?
CLEYDE: Se me chamam para fazer novela, adoro guiar. Das máquinas, a que eu me dou bem é o carro. Eu guio bem, gosto principalmente de guiar em estradas. A minha vocação, eu sempre falo, é a de motorista de caminhão. É a profissão que mais dá a sensação de liberdade, não é? Estrada. Você concorda? É a profissão mais livre, você não pertence a clube, a sociedade, mulher tem várias, filhos tem vários (ri). Guiar na chuva, não com uma chuvona, mas o barulho do pneu e do limpa-brisa é super relaxante. Você pega uma chuva (imita o barulho do limpador de pára-brisa) e aquele barulho do pneu é a música, é muito gostoso. Se você guiar devagar, você vê uma casinha e aí a tua imaginação voa. Eu fico olhando. As pessoas estranham, porque as pessoas entram no carro e querem chegar. Eu não, eu quero ir, não quero chegar. Entende? Tanto faz. Se a viagem Rio/São Paulo tem 500 quilômetros, tanto você pode faze-la em quatro horas e meia como em seis. A viagem é ótima. Para levar seis horas, eu saio antes, saio do Rio cinco horas da manhã, é ótima hora para sair guian do. Aí eu paro se vejo uma árvore que não conheço, levo às vezes facão e apanho muda na estrada. Agora não tem mais jurubeba nas estradas, acabaram com a jurubeba, não me conformo. Vocês não sabem o que é, né? Eu parava o carro e pegava sacos de jurubeba, fazia vinha d’alho. Eu faço geléia, faço conserva, faço perfume, faço tricô, faço crochê, costuro, cozinho, porque eu fui educada para fazer tudo. Então feijão, arroz e jurubeba, não precisa mais nada, eu ponho com alho e cebola, faço vinha d’alho. Eu tenho jurubeba, mas está dando pouca quantidade.
REVISTA: Bem, Cleyde, muito obrigado por essa entrevista e por sua carinhosa acolhida.
CLEYDE: Obrigada a vocês.