Postado em 01/03/2001
A sociedade brasileira busca alternativas para os resíduos gerados nas grandes cidades. A solução é a reciclagem
Quando a multinacional de fast food McDonalds decidiu adotar embalagens de papelão reciclável para acondicionar os sanduíches e refrigerantes servidos pela rede, milhares de consumidores brasileiros especialmente as crianças e os adolescentes perceberam que o cuidado com o lixo que se produz diariamente é assunto sério. Tão sério que uma empresa do porte do McDonalds podia se ver obrigada a assumir custos extraordinários, empreendendo mudanças na organização de fornecedores e readaptação dos próprios funcionários, para se enquadrar a normas ambientais "politicamente corretas", agora ditadas por uma nova mentalidade brasileira, muito mais preocupada com o manuseio, conteúdo e destino do lixo urbano. A responsabilidade pela coleta de materiais como o plástico, o vidro, o papel e o alumínio, ainda hoje simplesmente abandonados por consumidores e fabricantes após terem sido utilizados como embalagens ou matérias-primas, passou a ocupar espaços cada vez maiores na agenda prioritária dos órgãos do governo responsáveis pela saúde pública e preservação do meio ambiente.
Restrita inicialmente a apenas alguns centros intelectuais, como a própria Universidade de São Paulo (USP), a discussão do que fazer com o lixo doméstico, industrial ou hospitalar deixou definitivamente os círculos da elite para se tornar parte integrante da atividade política, cultural e econômica dominante do país. Afinal, mesmo sem pensar nos aspectos do impacto ambiental, o monumental problema do lixo nas grandes metrópoles brasileiras esbarra ainda numa limitação territorial intransponível, ou seja, em breve não haverá mais locais disponíveis para armazenagem de detritos, como se faz hoje nos chamados lixões. Diminuí-los, portanto, é tarefa urgente que deve reunir toda a sociedade civil, consumidores e empresas, e o poder público. Na Europa, apenas para citar uma fonte social que sempre foi espelho para os brasileiros, novas leis ambientais vão tornar caducos os aterros sanitários a partir de 2004. Assim, os países mais avançados do mundo estão resolvendo a questão do lixo a partir da reciclagem completa dos detritos sólidos reaproveitáveis e da incineração, com utilização de filtros para impedir contaminação atmosférica, do que não pode ser reutilizado na cadeia produtiva.
A passos ainda pouco acelerados, no entanto, a bandeira brasileira de defesa da coleta seletiva e da reciclagem do lixo encaradas agora como elementos essenciais para o crescimento econômico sustentável não só do país, mas de todo o planeta passou a ganhar adeptos importantes. Além do McDonalds, representando emblematicamente as corporações multinacionais, grandes grupos industriais nacionais, como a Latasa, fabricante de latas de alumínio, a Klabin, do setor de papel e celulose, a Panamco-Spal, maior engarrafadora brasileira de Coca-Cola, e a rede de supermercados Pão de Açúcar, conseguiram enxergar as vantagens dos projetos de reaproveitamento de materiais usados. Em muitos casos, as ações de órgãos públicos nas esferas municipal, estadual e federal, e as iniciativas voluntárias da comunidade vieram a reboque do pioneirismo empresarial. Ao moverem a roda da grande indústria do material reciclado, por idealismo ou ganhos financeiros, essas empresas e grupos de pessoas passaram a exercer importante pressão para esclarecer e mudar o comportamento de toda a sociedade, uma guinada tão radical que, para alguns especialistas, já chega a assumir ares revolucionários, alterando profundamente o padrão de comportamento dos brasileiros, ainda presos à imagem de irresponsabilidade e impunidade dos crimes contra a natureza.
Uma campanha de conscientização, depois conhecida por Programa Brasileiro de Reciclagem, passou a ser divulgada, embora de maneira tímida, pelos quatro cantos do país para esclarecer as pessoas, físicas ou jurídicas, de que o lixo abandonado, além de poluidor, acaba, de uma forma ou de outra, retornando à casa de quem o descartou. Dessa vez, no entanto, segundo alertam dois dos principais articuladores da política ambiental brasileira, o deputado Fernando Gabeira e o ex-deputado Fábio Feldmann, em vez de vir na forma original de embalagens e produtos de uso doméstico, como lâmpadas e pilhas, o lixo mal acondicionado retorna como resíduo tóxico impregnando a água corrente, os alimentos ou o próprio ar.
"No Brasil, a questão da reciclagem do lixo ainda é mal resolvida, mas já desponta como um caminho natural para sociedade e governo resolverem os agudos problemas do impacto ambiental representado pelos lixões e aterros sanitários que esgotam sua capacidade de armazenagem em ritmo cada vez mais rápido, devido à crescente complexidade e volume dos detritos sólidos produzidos pela cultura urbano-industrial", adverte Antônio César da Costa e Silva, presidente da Associação Brasileira de Engenharia Sanitária e Ambiental (Abes), que tem sede no Rio de Janeiro. "Podem-se contar nos dedos da mão direita as cidades brasileiras das quais Curitiba é o melhor exemplo que já têm um programa abrangente de coleta seletiva e usinas de reciclagem para tratamento e transformação de detritos para reaproveitamento industrial", acrescenta o especialista. "Nos demais centros, quando há coleta de lixo, ela ainda é feita sem nenhum preparo, desperdiçando o enorme potencial de reaproveitamento industrial e social representado pelos detritos."
Uma cidade como São Paulo ou Rio de Janeiro, as duas maiores metrópoles do país, produz em média 1 quilo de lixo diário por habitante. No caso da capital paulista esse volume de detritos representa a fantástica soma de 12 mil toneladas que têm de ser recolhidas e confinadas em lixões, incineradores e aterros sanitários todos os dias. Num ano, o lixo doméstico terá criado uma montanha de aproximadamente 4,5 milhões de toneladas. Desse total, mais da metade poderia ser reaproveitada, mas não é (ver texto abaixo). No emaranhado da burocracia e da falta de vontade política para lidar com um assunto considerado "pouco nobre" pelos políticos, boa parte da população brasileira é obrigada a conviver com os indesejáveis lixões, fonte inesgotável de doenças e degradação ambiental.
"A magnitude do problema do lixo no Brasil ganha dimensões ainda mais dramáticas quando se observa que o modelo de industrialização adotado pelo país segue padrões de consumo de países capitalistas avançados que privilegiam a embalagem descartável, uma comodidade para o usuário das grandes cidades, mas que acaba criando um enorme complicador para que as prefeituras e as empresas coletoras de lixo consigam executar com êxito suas tarefas", adverte Costa e Silva.
Pragas industriais
Com o advento da cultura do descartável, um ovo de Colombo para as grandes corporações industriais, a sociedade de consumo multiplicou por centenas de vezes o que passou a considerar lixo. Um funcionário num escritório utiliza em média, atualmente, oito copos plásticos descartáveis de café e água diariamente. Bom para os fabricantes de copos plásticos, interessante para o usuário, que tem a sensação de estar usando um produto exclusivo e limpo, mas terrível para a coleta de lixo, que passou a se defrontar com o crescimento vertiginoso de detritos. Quase que do dia para a noite, os aterros sanitários passaram a receber toneladas de barbeadores de plástico, embalagens de iogurte, de leite e comida congelada plastificadas, isqueiros, latas e garrafas de refrigerantes, água ou cerveja, potes de sorvete, inseticidas em aerossol, lâmpadas, pilhas, baterias de telefones celulares, os próprios aparelhos telefônicos, relógios de pulso, para citar alguns dos itens que compõem o saco (também plástico) de lixo das camadas médias urbanas. Isso tudo sem que houvesse uma contrapartida correspondente de aprimoramento dos serviços de coleta, até mesmo regular (a que não faz distinção de materiais), dos detritos sólidos. O resultado desse modelo tem se demonstrado catastrófico para a saúde pública e a conservação dos recursos do planeta.
No ano 2000, segundo dados da própria indústria, o Brasil produziu 15 bilhões de latas de alumínio e, embora cerca de 60% delas tenham retornado ao mercado depois de recicladas, um desempenho que coloca o país entre as nações que mais reaproveitam esse tipo de embalagem, as latinhas de cerveja e de refrigerante ainda lideram o ranking das pragas industriais ao meio ambiente. Com vida útil de cerca de 200 anos, essas práticas embalagens supercoloridas poluem rios, mares e vias pluviais das concentrações urbanas. Recentemente, expedições científicas ao pólo Sul detectaram resíduos dessas latas em santuários ecológicos, provavelmente lançadas em grande escala, impunemente, por navios de carga e de turismo. Cada brasileiro, atualmente, compra em média 53 dessas latinhas por ano, o quíntuplo do que consumia há apenas cinco anos, resultado do aprimoramento da produção em massa que tornou esse tipo de produto mais barato e acessível à população, mesmo a de baixa renda.
O problema do lixo urbano, contudo, não se restringe apenas aos metais descartados. Cada habitante passou a consumir 20 quilos de plástico por ano, dobrando o volume em relação ao início da década. Aqui, os grandes vilões têm sido as embalagens de poliéster tereftálico (PET). Com tempo de vida útil estimado em cem anos, esse requintado material transparente que substituiu o vidro das garrafas de refrigerante está no mercado brasileiro desde 1988 e conquistou a todos. Para os consumidores, a embalagem PET tem todas as vantagens: é leve, segura, resistente a choques e raramente rompe deixando vazar o conteúdo. Para o fabricante é um investimento barato, o que acaba reduzindo o preço do produto final, tornando-o mais acessível. Para as prefeituras, no entanto, as garrafas plásticas são um transtorno, uma vez que causam boa parte dos entupimentos dos bueiros durante as inundações das grandes cidades. Espalhadas pelos cantos de ruas e praças, mal acondicionadas em lixões clandestinos, as embalagens PET, em dias de temporal, são a imagem da dimensão de tragédia do lixo abandonado devido ao descaso oficial e à deseducação popular.
Incluindo o papel e o papelão, dados oficiais do próprio governo mostram ainda que um cidadão brasileiro, em média, gasta por ano o equivalente a duas árvores com a utilização diária de produtos derivados da madeira. Se fosse implantado um processo de reciclagem mais eficiente, em pouco tempo, na avaliação de especialistas, o consumo poderia até se expandir, sem comprometer a vida vegetal.
Retratando a voracidade consumista que tomou conta dos brasileiros, uma pesquisa da Secretaria de Meio Ambiente do estado de São Paulo mostrou que uma pessoa, hoje, no Brasil, descarta 107 garrafas de vidro ou plástico, 70 latas de alimentos, 45 quilos de plástico e aproximadamente dez vezes o seu peso em refugo doméstico (papel higiênico e produtos orgânicos) todos os anos. Mais preocupante é que todo esse volume de lixo será considerado pequeno em breve, à medida que o país se tornar mais rico e as pessoas passarem a ter acesso maior aos bens de consumo não-duráveis. Nos Estados Unidos, por exemplo, o lixo individual produzido já ultrapassa os 2 quilos ao dia por habitante.
"O mais grave em toda essa história é a transformação da composição do lixo doméstico", declara Cristina Bonfiglioli, assessora da divisão paulista da organização mundial de defesa do meio ambiente, Greenpeace. "Mais preocupante que a montanha cada vez mais alta de entulho produzido diariamente nas grandes metrópoles, como São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, é a invasão de produtos altamente tóxicos acondicionados nos sacos de lixo das casas e prédios de apartamentos." Cristina, que se especializou em formas de tratamento de lixo urbano em Amsterdã, na Holanda, destaca o fato de, atualmente, por conta da inovação tecnológica, ter aumentado dramaticamente a incidência, no material recolhido, de pilhas, baterias e outros produtos de alta toxicidade usados em aparelhos domésticos e de comunicação, como os telefones celulares. "A coleta de lixo regular realizada em São Paulo, por exemplo, por falta de infra-estrutura, ainda trata os detritos domésticos como se eles tivessem a mesma composição de 50 anos atrás e nem de longe está aparelhada para evitar a flagrante contaminação representada pelos novos materiais tóxicos que acabam sendo misturados nos aterros e lixões aos tomates e sacos de leite", destaca a ecologista.
Ainda com relação à composição do lixo urbano, um interessante trabalho foi desenvolvido pela Companhia de Limpeza Urbana do Rio de Janeiro (Comlurb). Depois de pesquisar amostras das 5 mil toneladas de lixo que o carioca despeja na rua diariamente, a empresa constatou que a matéria orgânica restos de comida e cascas de alimentos é mais abundante nos bairros das camadas mais pobres. O lixo dos cariocas mais ricos contém mais vidro, plásticos, papel e papelão. Outra curiosidade: no da classe média praticamente inexistem panos e couros, e a explicação está no hábito do brasileiro de doar roupa e calçados usados para os mais pobres. Assim, a roupa de segunda ou terceira mão só aparecerá no lixo dos bairros mais humildes, muitas vezes boiando em córregos.
Educação para o lixo
Embora ainda tímida, ganha cada vez mais importância a reeducação de pessoas de todas as classes sociais sobre a forma como se "joga fora o lixo". A imagem dos coletores coloridos em vermelho, azul, amarelo e verde em avenidas e parques das grandes cidades caçambas do lixo considerado reciclável já se tornou familiar para boa parte da população. Fábricas, shoppings, supermercados e escritórios adotam, paralelamente, programas internos de coleta seletiva entre seus próprios funcionários. Jogar fora um papel, um copo de plástico, uma lata de refrigerante ou uma garrafa é algo encarado atualmente como um gesto de responsabilidade social: "Seguir as normas de reciclagem tornou-se um ato politicamente correto, e especialmente as novas gerações, que já nascem dentro desse novo espírito, vêem o problema com muita seriedade", afirma Ricardo Pereira, do Projeto Recicla da USP, um dos programas pioneiros no tratamento do lixo. Idealizado inicialmente para atender um problema específico da Universidade de São Paulo, esse projeto é, atualmente, ponto de referência para iniciativas congêneres da comunidade e passou, inclusive, a oferecer serviços de consultoria e know-how para disseminar idéias conservacionistas relacionadas à chamada "nova limpeza urbana".
Conceitos até então pouco conhecidos para a maioria das pessoas, como materiais biodegradáveis e coleta seletiva dos detritos orgânicos ou industriais para citar dois dos mais importantes , passaram a se tornar recorrentes na mídia. Empresários grandes e pequenos, prefeituras, clubes, condomínios e donas-de-casa, por pressão da própria sociedade, viram-se impelidos a adotar os novos padrões de manuseio do lixo. "A noção de que reciclagem é sinônimo de modernidade aos poucos foi sendo incorporada pelos agentes sociais avessos à idéia de virem a se tornar obsoletos", diz Pereira. Em jogo, e isso passou a ficar cada vez mais claro para os centros do poder econômico, está a única opção viável para tornar possível a vida no planeta para as futuras gerações. Ainda assim, de acordo com uma pesquisa da Fundação de Proteção e Defesa do Consumidor (Procon), apenas um em cada sete cidadãos paulistanos diz separar material para a reciclagem e, entre os que reciclam, apenas 10% consideram a separação dos resíduos uma contribuição pessoal para a solução do problema do lixo.
Sabetai Calderoni, do Núcleo de Políticas Ambientais e Estratégias da USP, um dos maiores especialistas em reciclagem no Brasil, em seu livro Os Bilhões Perdidos no Lixo, defende a tese, cada vez mais disseminada, de que a verdadeira conscientização em massa da sociedade virá por meio da linguagem mais comum a todos: dinheiro. A idéia é cobrar multas de quem desrespeitar leis vigentes, e oferecer incentivos fiscais para empresas ou ganhos extras para os consumidores que se comprometerem a cuidar melhor do lixo urbano e industrial.
Calderoni sustenta que todo o processo de reciclagem é auto-sustentável e ainda poderia trazer novos recursos aos cofres públicos. Segundo sua pesquisa, a cada tonelada de lixo domiciliar que se deixa de reciclar, o município de São Paulo perde R$ 712. No total, estima-se que a perda anual municipal seja de aproximadamente R$ 800 milhões em sucata que poderia ser revendida à iniciativa privada para criar novas embalagens e produtos. Se em vez do município paulista a medida for o país, Calderoni chega a impressionantes R$ 4,6 bilhões de prejuízos anuais exatamente pela falta de uma política oficial de incentivos para a reciclagem do lixo domiciliar e industrial. Nesse cálculo não entra apenas a matéria-prima obtida pela reciclagem de materiais, mas também custos de fontes energéticas utilizadas para a fabricação das embalagens que poderiam ser poupados.
Na opinião do especialista, que passou vários anos estudando e pesquisando o problema do lixo na sociedade industrial, no país e no exterior, o despreparo da administração pública leva o Brasil a perder recursos naturais e energéticos não-renováveis, sem contar os custos ambientais e de saúde decorrentes do depósito inadequado dos resíduos. Ao longo dos últimos anos, o Brasil foi se tornando um grande reciclador de alumínio e papelão, muito por conta da própria iniciativa privada, que, antes do governo, enxergou as vantagens econômicas de reaproveitamento do material descartado, mas ainda continua engatinhando no que se refere a itens igualmente importantes do ponto de vista ambiental, como o plástico e o aço. Para Calderoni, a administração pública não investe na reciclagem por falta de percepção global para o planejamento.
"Incentivando a reciclagem, o governo teria ganhos com a economia de energia elétrica, por exemplo, ou os cortes na importação de petróleo usado para a fabricação de plástico ou borracha", explica o especialista da USP. "Os estados ganhariam com a economia de água e despesas com o controle ambiental, enquanto os municípios reduziriam gastos com a manutenção de aterros e incineradores, ambos igualmente poluidores", acrescenta. Ele lembra que, embora a prefeitura paulistana tenha feito muito pouco para a coleta seletiva e reciclagem, as empresas do setor privado paulista já aproveitam cerca de 30% do total de lixo produzido na capital, "por já terem percebido as enormes vantagens econômicas da reciclagem". Agora, com a nova administração do PT, Calderoni acredita que a prefeitura paulistana deva intervir mais diretamente no processo.
Para se ter uma idéia da vantagem econômica da reciclagem, seu estudo mostra que uma única lata de alumínio recuperada pode ser revertida em outra idêntica e nova. A energia elétrica economizada no processo seria suficiente, por exemplo, para manter uma lâmpada de 100 watts ligada por 20 horas. No caso do papel, a reciclagem por tonelada resulta numa economia de 50% de energia elétrica e de 10 mil litros de água. Isso sem contar as 17 árvores que seriam poupadas para extração de matéria-prima.
A viabilidade econômica dos projetos municipais de reciclagem ganhou, no entanto, segundo Calderoni, novo e fortíssimo impulso desde a desregulamentação do setor energético brasileiro, em julho do ano passado, pois, rompendo a estrutura monopolista, ela tornou possível aos municípios produzirem energia elétrica a partir do lixo e revendê-la a consumidores de até 3 MW. Para Calderoni a abertura desse mercado deixou aos municípios de todo o Brasil a possibilidade de, em parceria com a iniciativa privada, utilizar todo o detrito orgânico para produção de gás metano em usinas geradoras de energia elétrica equipadas com biodigestores anaeróbicos, "absolutamente sem custos para os cofres municipais". Esse impulso, de acordo com o professor, poderá dar às prefeituras "a vontade política que faltava" para os projetos de reciclagem do lixo ganharem dimensão nacional.
Fonte de emprego
Num país onde o desemprego atinge níveis alarmantes, principalmente nas grandes metrópoles, a coleta seletiva ou a seleção pós-coleta também trazem o benefício de criar ocupações, embora ainda informais, mas que podem tirar da miséria muitas famílias brasileiras. O mercado de recicláveis, se coordenado de forma justa, pode remunerar adequadamente os sucateiros e catadores, que desempenham tarefas necessárias à redistribuição do lixo destinado à armazenagem, enfardamento e reciclagem. Calderoni alertou para as vantagens dos dois tipos de sistemas de coleta. A seletiva, para ele, tem um conteúdo mais didático e educacional para a população, especialmente as novas gerações, mas deixa a mão-de-obra envolvida no processo de triagem catadores e sucateiros à mercê de condições subumanas de trabalho. Na seleção pós-coleta, a triagem é feita pelos catadores já reunidos em cooperativas com melhores condições de trabalho, como contrato em carteira, luvas e máscaras protetoras.
Além dessas funções que estão na base da pirâmide social, a indústria da reciclagem tem surpreendido com a engenhosidade e a criatividade de micro e pequenos empresários. O PET, por exemplo, por um lado vilão das enchentes, por outro, quando reaproveitado, pode ter um destino muito mais nobre. Atualmente, o processo de transformação da resina de PET lança no mercado cerca de 33 mil toneladas de fibras têxteis, cordas, cerdas, fitas, resinas, peças e embalagens termoformadas (para produtos prontos para o uso, como saladas cruas vendidas em supermercados). Camisetas, mantas, vassouras, bichos de pelúcia, enchimento de edredons, jogos americanos, filtros e couro artificial estão entre os produtos colocados no mercado produzidos a partir de garrafas velhas de PET.
Em Belo Horizonte, o Serviço de Limpeza Urbana comprovou a maior resistência das vassouras com tiras de resina de PET. Segundo dados da assessoria de imprensa da prefeitura da capital mineira, a vassoura de PET chega a varrer 120 quilômetros, enquanto a rival, de piaçava, tem vida útil de apenas 8 quilômetros.
A imagem do produto reciclado, como algo de segunda e "contaminado pela sujeira", que por muitos anos prejudicou o comércio de mercadorias reaproveitadas a partir do lixo, começa a ceder e, em seu lugar, surgem noções mais importantes como a do crescimento sustentável e do consumo que respeita a limpeza ambiental.
A onda do reciclável atingiu também as usinas siderúrgicas. A Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) arrecadou em 2000 cerca de R$ 70 milhões em sucatas e resíduos que são subprodutos da fabricação do aço, mas utilizados como matéria-prima para outros artigos. Iniciativas semelhantes foram observadas na Companhia Siderúrgica de Tubarão e na Usiminas, cujos negócios com resíduos cresceram cerca de 180% na última década.
Nas empresas cervejeiras, o sentimento é de pesar pelo fato de se ter descoberto tardiamente que os resíduos industriais também tinham valor econômico se reaproveitados em outros setores produtivos. A Companhia Cervejaria Brahma, por exemplo, está faturando cerca de US$ 15 milhões por ano com a venda de seu próprio refugo industrial para fábricas de ração animal, adubos orgânicos, tijolos e até sopas e caldos prontos. De aproximadamente 2,5 milhões de toneladas de subprodutos descartados de suas 28 unidades, a empresa informa que 94% são revendidos a pecuaristas, pesqueiros, olarias e fábricas de alimentos.
Na indústria automobilística, montadoras como a Fiat e a General Motors já trabalham em parceria com siderúrgicas, como a Gerdau, no projeto da primeira usina piloto de sucateamento e reciclagem para veículos. Com essa usina, as montadoras iniciaram um processo, já desenvolvido por suas matrizes na Itália e Estados Unidos, que prevê a reciclagem das partes metálicas e não-metálicas do veículo, normalmente não aproveitadas.
Os pneus usados de veículos, uma das fontes mais graves de poluição ambiental, também vêm ganhando novos destinos dentro da indústria da reciclagem. De Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, vem uma das experiências mais interessantes. A empresa Stil Flex está produzindo, para o mercado interno e também para exportação, rampas para deficientes físicos a partir de pneus reciclados. A borracha até então desprezada nos lixões e cemitérios de automóveis está podendo retornar à economia também sob outras variadas formas, como cones para sinalização de autopistas, revestimento anti-ruído para túneis de metrô, piso para quadras esportivas e até calço para caminhões. Segundo dados do Sindicato dos Fabricantes de Pneus, matéria-prima para reutilização de borracha não falta no Brasil: há nos depósitos de lixo do país aproximadamente 800 milhões de pneus usados.
Questão de responsabilidade
Embora boa parte dos pneus possa reencontrar agora um caminho de utilidade pública, o governo, a partir de novas leis que começam a ser aprovadas no Congresso Nacional, quer que os fabricantes de produtos de conteúdo tóxico se tornem responsáveis também pelo recolhimento desses materiais após sua utilização pelos consumidores. Além de pneus, a lei, cujos projetos foram apresentados por Gabeira e Feldmann, abrange também pilhas e baterias de automóveis e de telefones celulares, produtos que, abandonados, lançam no meio ambiente, solo e lençóis freáticos, substâncias altamente tóxicas e nocivas como o chumbo, mercúrio e cádmio.
Com a força da lei, o Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) agora pode exigir que os fabricantes de pneumáticos recolham os produtos na proporção de um para cada grupo de quatro a partir de 2002. O mesmo está sendo aplicado aos fabricantes que colocam cerca de 800 milhões de pilhas e baterias de uso doméstico em circulação e agora terão de cuidar também de seu destino final. A coordenadoria do Programa Brasileiro de Reciclagem justifica que o conceito embutido nos projetos de lei ambiental confere ao produtor a responsabilidade pelo ciclo total de produção da mercadoria, do nascimento à sua morte.
Também partidário da responsabilidade do fabricante pelo destino final do produto, Calderoni está assessorando comissões da Câmara, em Brasília, em projetos de lei complementares que determinarão as normas sobre a vida útil de todos os produtos, especialmente os tóxicos. "Caso um artigo não tenha possibilidade de reciclagem, a cessão de licença para fabricação poderá ser cassada ou nem vir a ser emitida", antecipou o especialista. Em abril deste ano, o projeto deverá ser detalhado. Está ainda nos planos determinar o alongamento da vida útil de bens de consumo atualmente fabricados para se tornar obsoletos em períodos cada vez mais curtos como forma de também reduzir o volume de lixo. Será, segundo Calderoni, uma nova era para os padrões de consumo no Brasil.
O bem que vem do mal
A transformação da consciência individual e coletiva em relação à forma como se lida com o lixo não está ocorrendo do dia para a noite. Veio na esteira de um movimento anterior mais amplo, com raízes mais profundas nos anos 60 e 70, desencadeado a partir da preocupação com as diversas formas de poluição ambiental. Desastres ecológicos de grandes proporções, como os vazamentos em terminais petrolíferos, o envenenamento de rios com o derramamento de material tóxico por fábricas e usinas, a tragédia de Bhopal, na Índia, quando substâncias químicas liberadas na atmosfera pela multinacional Union Carbide provocaram a morte de milhares de pessoas, o pesadelo nuclear vivido em Three Mile Island, nos Estados Unidos, e depois em Chernobyl, na Ucrânia, a devastação das florestas tropicais na África, Ásia e América do Sul, embora acontecimentos isolados, foram moldando, em seu conjunto, uma nova consciência ecológica na população mundial.
Surgiram os grupos políticos, como os partidos verdes, cuja plataforma ficou centrada na preservação ambiental. Meio ambiente, diga-se de passagem, passou a integrar as diretrizes de todos os demais partidos e os governos da situação não tardaram em criar secretarias e ministérios de proteção ambiental. As organizações não-governamentais (ONGs) proliferaram em várias partes do mundo, inclusive no Brasil, na defesa de causas sociais e ecológicas. Grupos mais radicais de ação direta, como o europeu Greenpeace, entraram para a história ao desafiar, pela primeira vez, grandes empresas multinacionais responsáveis por crimes contra a natureza e até governos nacionais. A realização dos testes nucleares no atol de Mururoa, no Pacífico, pelo governo francês, mostrou de forma inédita o poder desses grupos ecológicos. O governo do presidente Jacques Chirac teve de enfrentar um movimento maciço de recriminação mundial, liderado pelos ativistas do Greenpeace, experimentando perda de popularidade interna e externa.
A multinacional do petróleo Shell também se rendeu às exigências do Greenpeace. Ameaçada por um boicote contra seus produtos e serviços em toda a Europa, a Shell optou por desistir de uma plataforma submarina de exploração de petróleo tida como nociva ao ecossistema do mar do Norte. Mais recentemente, o Greenpeace adotou a estratégia de tornar-se acionista de grandes corporações para, segundo alegam seus porta-vozes, participar ativamente das decisões tomadas nas assembléias das empresas.
A opinião pública mundial também foi sacudida pelos alertas das agências oficiais de proteção ao meio ambiente, como a Environmental Protection Agency (EPA), dos Estados Unidos. O chamado "efeito estufa" foi uma das denúncias mais importantes feitas pelos cientistas.
Espécie de bomba-relógio ambiental, o efeito estufa, ou aquecimento acelerado da atmosfera terrestre resultante da emissão maciça de gases poluentes liberados pela frota mundial de veículos e chaminés de fábricas e refinarias, tem potencial para provocar o degelo das calotas polares. Se não controlado a tempo, o fenômeno pode levar a desastres em escala global com a elevação do nível dos oceanos.
No auge de uma quase histeria da mídia, convencida de que riscos planetários de aniquilação em massa mais palpáveis que uma terceira guerra estavam bem à frente do nariz da humanidade, outra denúncia acabou pegando em cheio a indústria multinacional de bens de consumo: a "camada de ozônio", espécie de escudo natural da Terra contra radiações solares prejudiciais aos seres humanos, também estava ameaçada. O vilão, nesse caso, são as emissões de gases químicos, como o CFC, encontrados nos sistemas de refrigeração de freezers e geladeiras espalhados pelo mundo e nas embalagens em aerossol, dos desodorantes aos inseticidas domésticos.
Os hábitos de consumo de bilhões de pessoas começaram a ser pautados por indicações, nas embalagens dos produtos, de estarem livres ou não dos tais gases nocivos à camada de ozônio. Neste momento, a indústria e as campanhas de marketing percebem o apelo de consumo representado pela ecologia e começa a surgir uma nova linha de produtos e serviços "amigos da natureza". Detergentes e sabões em pó biodegradáveis, "inofensivos ao meio ambiente", passaram a ocupar espaço cada vez maior nas campanhas publicitárias. A mensagem ecológica aumenta as vendas e, com ela, ganham os movimentos de preservação ambiental.
Os recursos perdidos nos aterros, lixões e terrenos baldios do Brasil são impressionantes. Veja alguns dados:
A cada cem toneladas de plástico reciclado economiza-se uma tonelada de petróleo.
A incineração de 10 mil toneladas de lixo cria um emprego. O aterramento dessa mesma quantidade de entulho gera seis novas ocupações. A reciclagem pode proporcionar ocupação para cerca de 40 pessoas.
Uma tonelada de papel reciclado economiza 10 mil litros de água e evita o corte de 17 árvores.
A produção de vidro pela reciclagem reduz em 20% a poluição do ar e em 50% a da água usada nessa atividade.
Fonte: "Os Bilhões Perdidos no Lixo", de Sabetai Calderoni
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