Postado em 01/02/2001
Iam os dois ladeira acima. O táxi que os levara até o limite do asfalto acabara de manobrar de volta, desaparecendo na curva. O silêncio se adensou e se estendeu na noite. O rapaz ia devagar e a moça, pouco adiante, seguia confiante e lampeira, como se a presença dele a tornasse imune ao perigo. Aí é que estava - a hora e o lugar não eram para inocentes nem otários, muito menos para casais furtivos. Noite avançada, ainda se viam em algumas janelas e frinchas um clarão azulado - a luz intermitente de aparelhos de tevê ligados, sem emitir som.
Agora escadarias enviesadas, subindo, subindo. Depois ruelas, labirintos. Abrissem os braços - ele e a desmiolada que o tomara como escolta - e seria possível tocarem de um lado e outro as paredes dos barracos. Impossível saber de onde emanava fetidez persistente - corria por ali algum esgoto. Subiam e subiam. De repente começaram a descer. E o rapaz teve por instantes uma sensação de alívio, de quase devaneio, ao ver descortinar-se a seus pés um mundo de estrelas. Adiante, o vulto da moça como que flutuava num tapete de luzes, fazendo lembrar a poesia de Orestes Barbosa: Tu pisavas nos astros distraída... Chegaram a um largo onde o vento corria livre. Parecendo se dar conta de ter errado o caminho, a moça parou, tentou saber onde estavam. Nisso sobreveio o susto - o assalto instantâneo, inopinado. O rapaz mal pôde ouvir metais engatilhados e já o haviam atirado contra uma parede. Afobação, violência, gritaria. Os dois enquadrados debaixo de pesado armamento.
- Qual é a parada?
Frente a frente com a rapaziada do tráfico. Uma voz de comando repetia a pergunta. Qual era a parada? Sumiram com a moça, e arrastaram para um canto, debaixo de pancada, o inocente da vez. Foram separados para interrogatório em regra, com direito a sopapos e coronhadas. Zonzo, bebido até a tampa, e com a ponta de um cano frio no peito, ele nem se lembrou de gritar sua solidão. A hora havia chegado, hora de todas as verdades.
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Ficara desempregado pela terceira vez em oito meses. Fazer o quê? Viera do interior de Minas atrás de uma ilusão, lá deixando outra. A ilusão deixada para trás tinha olhos que o enfeitiçavam. A que perseguia tinha só por enquanto só o nome: dinheiro. Descartado no dia anterior pelo último patrão, e com um pouco da segunda ilusão amarfanhada no bolso, ele quis desandar. À noite, rumou para os botequins da praça Tiradentes e arredores. Mal acompanhado, por sinal, que o parceiro ocasional era professor de charla e malandragem. Toca a procurar diversão. Afinal se juntaram - no bar Paulistinha, esquina de Gomes Freire com rua da Constituição - a uma roda de cantoria.
Dominado pelo desânimo, ia derivando para essa vidinha meio bandida. Garrafas vazias, restos de comida na toalha sebenta, fumaça de cigarros. E diante disso a lembrança persistente de uma advertência da avó. Toma tento, menino, veja bem o que vai fazer de sua vida. Um mulato grandalhão, riso largo e sacudido, atacou o repertório de Ataulfo Alves tamborilando na mesa. O inocente o acompanhou. Que saudade daaa professoriiinhaaa... As lembranças desapareciam. Longe de casa, sim. Sem rumo, e sem coragem de fazer o caminho de volta. Aos 22 anos não podia se sentir um refugo. Sonhar não era pecado nem crime.
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O caso é que chegara até ali de desastre em desastre - imaginava até botar isso em música, se um dia viesse a compor um bolero. Quem, como ele, ainda gostava de boleros? Viera acreditando na promessa de um produtor mambembe que levara à cidadezinha de Minas um cantor de baladas. Extinto o brilho fugaz de dois ou três discos, o cantor recolhia em cidadezinhas como aquela as sobras de sua glória. O produtor o acompanhava, roendo o que podia. "Los olvidados", escreveu alguém no semanário local, referindo-se à estrela e ao coadjuvante, numa tentativa de jogar água fria na tietagem das empregadinhas. Inútil.
Casa cheia, gritinhos, assovios. As cortinas se abrem, - e a platéia é um delírio de vaias. Delírio que não cessa até o cantor deixar o palco. Vem o produtor e tenta abafar a gritaria lançando um desafio. Por que as vaias? Há na terra algum cantor capaz de imitar, imitar pelo menos, senhores, a grande estrela que ali estava em turnê? Se houver, que suba ao palco. Gritam um nome, um apelido: Bolero! Logo o repetem, silabado, ao ritmo de palmas, numa aclamação crescente: Bo-le-ro! Bo-le-ro, Bo-le-ro! Assim atiçado por todos, e empurrado por amigos, um rapaz sobe ao palco e canta com alguma bossa. A estrela maior terá novo show no dia seguinte, precisa da simpatia de todos. Reaparecendo de repente, puxa aplausos para Bolero, abraça o cantor da terra, cantam juntos, a platéia faz coro. Para o rapaz, uma noite de glória. Passado o delírio, o produtor lhe entrega um cartão e promete o mundo. - Me procure no Rio quando quiser. Você tem futuro, garoto.
Lábia, lero-lero. Bolero, o inocente da vez.
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Oito, nove meses depois, cantava Ataulfo Alves no Paulistinha. Viera levando fé, acreditando no tipo. Toma tento, menino. Olha que você dá com os burros n'água.
Caía aguaceiro medonho quando chegou ao escritório do produtor, nos fundos de uma galeria em São Cristóvão. Aí ficou sabendo: o tipo não trabalhava mais com música. Promovia lutas de boxe em Madureira, Cascadura, praça Seca, Morro Agudo, por aí.
- Trabalho com a rapaziada de uma academia da Lapa, a Santa Rosa. Estou fazendo campeões, garoto. Se quiser ser um deles é só me procurar.
Impossível substituir a voz pelos punhos. Não saberia por onde começar, nem queria ser sparing, tomar soco, inchar a cara. Saiu dali debaixo de mais aguaceiro, sem encontrar condução no Campo de S. Cristóvão em obras. Dera com os burros na lama.
Bateu cabeça aqui e ali, de biscate em biscate, tentando a vida como cantor da noite em bares de Vila Isabel. Conseguia botar a mão nos caraminguás da comida. Era melhor do que recuar, apresentando-se de mãos vazias àquela primeira ilusão deixada para trás. Não podia voltar. Pelo menos, não voltaria com sua bandeira de guerreiro puída e enrolada. Era agüentar. Ao fim de um mês, viu que não teria como pagar a diária da pensão na rua do Resende. O jeito foi cair no serviço pesado de uma borracharia, ali mesmo na Lapa. O patrão, um português manso, o encorajava.- Isto cá não pára nunca. Se queres travalhaire não falta serviço nas vinte e quatro horas do dia.
Ia muito mal, de desastre em desastre.
Fazer o quê? Não ia matar nem roubar. Pegava com disposição e defendia gorjetas. Magras, porém. Ia agüentando. Mas tanto o azucrinaram com perguntas, que acabou um dia expondo sua idiotice. Contou que viera de Minas para ser cantor. Falou daquela noite memorável, e do reencontro com o produtor, que agora mexia com boxe. A rapaziada da borracharia, curtida na vida bruta, não perdoou. Caiu de riso e chacota pesada.
Afinal, não agüentou: deu com a marreta de borracha na fuça de um colega. O bruto caiu para trás, sangrando. Levantou-se, ciscou uma barra de ferro e partiu para o revide. Acabaram os dois na rua.
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O momento era de aliviar, espairecer. Nessa manhã de sábado fora receber o último ordenado. O português aumentou-lhe a culpa e a responsabilidade na briga com a intenção sacana de lhe pagar menos do que devia. Saiu irritado, dizendo não ter ido lá para ouvir ladainhas - e o dinheiro, mesmo se tivesse recebido cada tostão, não ia dar para quase nada. Parte dele estava sendo queimada no Paulistinha.
O mulato grande, camisa aberta e medalhão no peito cabeludo, ria grosso e exibia ouro na bocarra. Pulseiras, badulaques, anéis com imitações de rubis e esmeraldas. O amigo ocasional lhe dera a ficha, falando baixo e rindo.
- Tome distância, que o tipo aí é desses que põem a mão quebrada onde não deve.
Ficou longe, pois. Sentara do lado oposto da mesa, separado do grandalhão, que se mantinha entre as mulheres. As duas - uma delas a desmiolada - o paparicavam e riam. O mulato espalhava-se no palavrório. E mandava um bordão irritante.
- Qual é o pó, meu camarada?
Correm os minutos, a roda se alarga em alegria etílica, canta-se. Nisso, cruzam-se olhares: parece que bate e rebate uma liga de desejo a arrastar o rapaz para a desmiolada. A moça percebe - e então é que mais o enfeitiça e atiça, dando-se a uma charla comprida, entremeada de risos e cochichos com o mulato grande. Nisso o herói flagra um gesto rápido do rival a enfiar duas ou três notas graúdas no decote da moça.
Julgava-se já derrotado quando a desmiolada se levanta. Saiu com um sorriso e um olhar comprido de promessa para ele. Aí é que estava: se não se mostrasse capaz e decidido agora, não teria nova chance amanhã, nem nunca. Ô, jogo dissimulado! Foi atrás daquele riso e daquele olhar sem entender bem o que acontecia. Os dois lado a lado. Uma sombra e outra sombra indo pela rua meio escura, um silêncio longo. Por fim, a desajuizada entregou a verdade: ia fazer um ganho, ia buscar cocaína para o mulato boiola.
- Vem comigo. A gente pega um táxi.
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Nem malandro, nem herói. Cometera a idiotice de vir atrás de um rabo de saia, - e entrara nesse rabo de foguete. O enxame armado - rapaziada capaz de tudo na afoiteza dos quinze, dezesseis anos - zumbia de impaciência. Em guerra com bandos rivais, viam o inimigo na menor sombra. É cana, é cana! - e decretavam a morte numa palavra: vala, vala! Cada um levado para um canto. O chefe queria decerto descobrir contradições no que um e outro diriam. Quando novamente juntos, o rapaz viu que a insensata sangrava na boca. Largara alguma palavra errada, e agora chorava. Quanto a ele, não importava que tivesse ou não a catadura - e tudo indicava que não - de policial. Intimado a se identificar, sabia que documentos ali não valiam nada. Quem acreditaria em sua boa-fé se dissesse que viera até ali arrastando a asa? Quem acreditaria na intenção mercantil da desmiolada?
Para ele, nenhuma possibilidade de erro. Sabia ser este o momento de todas as verdades. Fosse chegada a hora da grande verdade, a verdade definitiva, nada havia a fazer. Teria de aceitar seu destino. Com dois ferros no peito, sem tempo, sem tino para gritar sua solidão, o inocente viu diante de si os olhos faiscantes da ilusão deixada para trás.
Eliezer Moreira é escritor, autor de A pasmaceira (Editora Record),
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