Postado em 01/07/1998
Palestra do sociólogo Octávio Ianni, publicada em encarte da edição nº 318 de "Problemas Brasileiros", de novembro/dezembro de 1996.
OCTÁVIO IANNI - Devo, por antecipação, me desculpar se disser, como provavelmente direi, alguma impertinência. Faz parte do diálogo intelectual um exercício mais ou menos contínuo da impertinência, isto é, do espírito crítico que às vezes levanta questões que só podem ser incômodas ou que exigem reflexão.
Começo pela seguinte preliminar: ainda que não seja visível para muitos de nós, e para muitos em vários campos e setores, e em vários países, não há dúvida de que estamos vivendo um momento de ruptura histórica. Ruptura histórica é uma expressão que sintetiza transformações muito aceleradas e profundas que estão ocorrendo nas últimas décadas do século 20. É evidente que essa ruptura não começou nem vai terminar num dia marcado. Ela está em marcha, foi germinada no curso de décadas anteriores, e há ressonâncias até de séculos, mas não há dúvida de que houve uma virada no mundo neste último momento do século 20.
Na verdade, o século 20 já terminou porque a ruptura histórica que ocorre, e que já é evidente, está exigindo grandes rearranjos na organização da vida, da sociedade, das atividades, das instituições, dos aparelhos estatais, das organizações transnacionais. Portanto é uma ruptura notável. Claro que, se fizermos uma incursão breve no passado, vamos encontrar momentos de ruptura excepcionais semelhantes, às vezes até maiores, outras vezes menores, mas já notáveis. O que foram o Renascimento e o mercantilismo? Foram momentos de ruptura da maior importância na história mundial, envolvendo os descobrimentos, relações várias com diferentes continentes e culturas.
As rupturas históricas, portanto, são drásticas e já são evidentes. São momentos excepcionais de desafios que se criam, de inquietações, aflições, desespero, suicídios, etc., mas também de horizontes que se abrem. Acho que somos privilegiados por vivermos um momento de ruptura histórica. É glorioso o fato de vivermos numa época tão problemática, tão crítica, porque não há dúvida de que o período anterior estava muito aborrecido. A Guerra Fria era algo que tinha, vamos dizer, congelado o mundo e que dava a ilusão de que as coisas estavam definidas. Mas na verdade as coisas eram problemáticas e ilusórias. Muito do que germinou na Segunda Guerra Mundial explodiu com isso que parece ser mais do que evidente - uma ruptura de âmbito mundial. E essa ruptura tem a ver, é claro, com a débâcle do bloco soviético, com o término de um mundo bipolarizado, com o fim das tensões e conflitos entre capitalismo e comunismo. E tem a ver com o fato de que de repente se evidencia que a realidade conhecida, o universo sociocultural e econômico conhecido, não está funcionando de acordo com nossos conceitos, idéias e interpretações. Nesse sentido é que eu acho que vivemos um período excepcionalmente problemático, um terremoto que não terminou e que abalou quadros sociais e mentais de referência. Isto é, as categorias que usávamos para pensar o mundo no direito, nas ciências sociais, na economia, na sociologia e na política ficaram profundamente abaladas. Isso, num primeiro momento, é aflitivo mas simultaneamente glorioso, porque o mundo estava muito "parado". Havia quadros mentais e sociais de referência que pareciam estar definidos, equacionados, o que na verdade era mentira, não era assim. A Segunda Guerra Mundial, desdobrando-se na Guerra Fria, congelou muito do que havia de criativo e de fecundo no desenvolvimento da vida social.
O que realmente está acontecendo? É evidente que o mundo entrou num novo ciclo de desenvolvimento do capitalismo. É evidente que o capitalismo, mais do que antes, se globalizou. É evidente que o capitalismo se transformou, mais do que antes, num modo de produção global. Mais do que antes não só porque abriu novos espaços, mas porque o desenvolvimento das corporações transnacionais acabou com as fronteiras. E as fronteiras não são simplesmente geográficas, mas ideológicas, culturais, civilizatórias. As corporações transnacionais arrasaram com isso. O mapa do mundo de ontem não funciona mais e agora está sendo construído um outro mapa do mundo. Isso tem a ver com o desenvolvimento dos fatores de produção, dos mercados, das transnacionais, que de certo modo estão orquestrando esse processo, e a aliança ou a atuação simultânea de algumas nações mais poderosas. E, é claro, assessoradas ou combinadas com as organizações multilaterais, como FMI, Banco Mundial, Organização Mundial do Comércio, instituições que formalmente são o produto da aliança entre Estados, mas que de fato funcionam segundo a lógica do capitalismo mundial.
O que é o FMI? A meu ver, o FMI é o guardião do capital em geral, junto com o Banco Mundial. Capital que parece ubíquo, indefinido, que não se caracteriza nitidamente em termos físicos porque não é propriamente o iene, o marco alemão ou simplesmente o dólar norte-americano. É uma outra moeda que resulta desse intercâmbio e, claro, do intercâmbio com a libra, com o franco francês, etc. O FMI e o Banco Mundial são uma expressão dessa transnacionalização acelerada dos mercados, das finanças, das relações econômicas, dos processos, produtos, enfim, do capitalismo como um modo de produção global. É claro que historicamente o mercantilismo já é o capitalismo mundial em emergência; é claro que o colonialismo é capitalismo mundial em desenvolvimento. De certo modo, o imperialismo inglês no século 19 e começo do século 20 orquestrou-se muito no mundo todo, mas hoje há algo de diferente. Quer dizer, não são algumas metrópoles, são corporações transnacionais que se desenvolvem de uma maneira muito ativa e em escala mundial. Toda transnacional formula uma geoeconomia e até uma geopolítica; toda transnacional tem escritórios e grupos de estudo que analisam não simplesmente as potencialidades de mercado, os fatores produtivos, as competições, mas a cultura nativa, a sociologia, como no caso da Índia, da China, da Indonésia, etc. As transnacionais ganharam uma proeminência muito grande, de certo modo expressando esse processo de globalização do capitalismo.É claro que falar de globalização do capitalismo é repetir algo muito evidente, agradável ou desagradável. Não é esse o problema. Simultaneamente o capitalismo é um processo civilizatório, isto é, ele revoluciona o modo de as pessoas organizarem sua relação consigo mesmas, com os outros, com a natureza, com Deus e com o diabo. E isso é muito sério. Recentemente, numa conferência no México, perguntei a um membro do Partido Comunista chinês: "É verdade que vocês estão relendo Confúcio, agora, sob a ótica da economia de mercado?" Ele respondeu: "É". Elementar, não? Li um artigo numa revista hindu intitulada "India Today" sobre como hoje na Índia está se reinterpretando o hinduísmo à luz da sociedade de mercado. Já não é mais naquele estilo antigo de uma identidade tribal ou comunitária, agora é a individuação. Portanto, o capitalismo está realizando um novo ciclo de revolução, de transformação, de ruptura em termos socioculturais e não simplesmente em termos de economia.
É evidente que isso cria desafios impressionantes no mundo. E não é necessário dizer que o capitalismo está glorioso, entre outros motivos, porque transformou o ex-mundo socialista numa fronteira muito lucrativa. Jamais o capitalismo teve uma fronteira desse porte. Quais foram as fronteiras do capitalismo? Foram o Novo Mundo. Mas o capitalismo ainda estava no começo, o mercantilismo ainda era incipiente em termos de desenvolvimento de capital. O escravismo, o extrativismo, a mineração e a agricultura extensiva estavam organizados nos moldes do mercantilismo e dos sistemas coloniais em geral fechados. Havia fronteiras mas no fim do século 20 o capitalismo transforma o Leste Europeu, toda a Rússia e a China, numa vasta fronteira de expansão. Só que essas não são populações indígenas nem sociedades tribais, são sociedades nacionais altamente organizadas e com mão-de-obra já sofisticada, já com um potencial de infra-estrutura razoável. Isso significa que o capitalismo entrou num ciclo excepcionalmente fecundo de reprodução, de ampliação e desenvolvimento. Então os hábitos, as instituições e certos valores estão sendo alterados, estão sendo revolucionados pela chegada, agora de maneira mais aberta e maciça, de instituições, valores e práticas correspondentes à sociedade de mercado.
Tudo isso significa que de fato estamos vivendo uma conjuntura histórica excepcional que denomino abreviadamente de ruptura histórica ou de um terremoto que está em marcha, e que tem um "caráter revolucionário" porque revoluciona as condições sob as quais estão se organizando e se desenvolvendo as atividades de indivíduos, coletividades e grupos e classes sociais.
É claro que esse ciclo de mundialização, de planetarização, de transnacionalização ou globalização é simultaneamente um ciclo de integração e de fragmentação. O que fazer? É assim mesmo, é contraditório, uma coisa não nega a outra. Tudo o que é humano é contraditório todo o tempo, não nos iludamos. Vivemos sempre empenhados em fazer de conta que as coisas estão integradas, harmonizadas, equilibradas, mas isso é ilusório. Em tudo o que é humano só se produzem e reproduzem integrações e contradições o tempo todo. Portanto, a globalização é um processo de integração que se realiza em vários níveis - na nova divisão transnacional do trabalho, na abertura e integração de mercados, associação de empresas, formação de conglomerados, alianças, etc. -, mas ao mesmo tempo um processo de fragmentação - isto é, desenvolvem-se tensões, antagonismos em vários níveis, tanto no econômico, social e político como nos nacionalismos, que ainda recrudescem no mundo, como tribalismos, como fundamentalismos, juntamente com racismos, com etnicismos. E o florescimento desses problemas que afligem a todos nós é um "produto natural da globalização". Isto é, coisas que estavam apaziguadas, aparentemente resolvidas, ressurgem como um sarampo que não foi bem curado. Vide a Iugoslávia. O que é a Iugoslávia? Um território do século 17, 18 ou 19, não é do século 20. O que é a história da Tchecoslováquia se dividindo? É algo que era tribal, regional, muito idiossincrático, que ressurge. Idem na Rússia: essas efervescências que lá ocorrem e que são reminiscências de problemas pretéritos que não foram suficientemente resolvidos pela revolução burguesa. Por revolução burguesa digo aquela que forma a nação. Só que em muitos casos a revolução burguesa não integrou a nação, não equacionou problemas étnicos, religiosos, lingüísticos. E quando há uma crise cria-se um impasse, há um tremor de terra, digamos, um terremoto, e essas tradições, esses elementos arqueológicos que estão, por assim dizer, difusos na sociedade ressurgem como se fossem grandes novidades.
Algumas pessoas que ouvem a discussão sobre a globalização dizem: "Mas é estranho, você fala em globalização quando estão ressurgindo o nacionalismo, o fundamentalismo e o tribalismo? E isso é muito forte, isso mostra que o povo está defendendo seus valores, suas tradições, suas entidades". Quimera, isso já "dançou", isso é anacrônico, é uma batalha perdida. Aliás, o que houve quando passamos do feudalismo para o nacionalismo, com a formação das nações, com o desenvolvimento do mercantilismo, do capitalismo? Foi exatamente o que aconteceu no fim da Idade Média, quando os setores feudais resistiram desesperadamente. Eles estavam aflitos porque o feudo estava se dissolvendo. E isso levou séculos, o feudalismo não terminou do dia para a noite, demorou muito para terminar. Em certas nações, como no Mediterrâneo, está terminando no século 20. Aliás, prestem atenção, o nacionalismo nunca foi grande coisa, a nação nunca foi grande coisa e agora está condenada. E eu não choro por isso, até acho um privilégio ser contemporâneo desse momento. Por que ver a nação como se ela fosse algo definitivo, natural, indiscutível? Bobagem, isso é cientificamente ridículo. A nação é um processo histórico. Ela se formou numa certa conjuntura e está vivendo desafios há décadas, às vezes há séculos, e nessa conjuntura ela está condenada a ser uma província da sociedade mundial. E daí? Tudo bem, nada de mais, vamos continuar falando português, guarani, asteca, castelhano, etc., mas os quadros de referência se alteraram.
Por que a nação é um dos problemas da globalização? Porque até ontem o desenvolvimento da história, das economias, da política e inclusive da cultura estava polarizado por esse emblema: nação, sociedade nacional, Estado-nação. Isso era tão forte, isso estava tão impregnado na história, nas tradições, nas ideologias, nas ciências sociais e no direito que nós todos acreditávamos que a nação era um fato natural, era algo indiscutível. O pensamento de Rousseau, de Locke, de Hobbes e de muitos outros autores, inclusive no século 20, estava polarizado pelo "paradigma da sociedade nacional" ou Estado-nação. Com a globalização, com a aceleração dos processos que atravessam as fronteiras de maneira inexorável e freqüentemente invisível para o comum dos mortais, esse paradigma deixou de ter vigência ou está tendo uma vigência menor.
Vejam bem, um parêntese: a nação é uma ficção política criada pelas classes dominantes na história das diferentes sociedades. Quem cria a Inglaterra não é o povo inglês. Fala-se, por economia de linguagem, que o povo inglês criou a Inglaterra, que o povo português criou Portugal, já no fim da Idade Média, mas isso são eufemismos ou modos sintéticos de dizer porque, na verdade, quem cria a nação são os setores dominantes que constituem o poder nacional, que organizam o poder econômico, político e cultural e, portanto, definem a nação. Isso é evidente. Quem criou a Itália em 1860, 1870? Não foi o povo. Ao contrário, o povo foi excluído. Garibaldi e Mazzini foram escorraçados, foram colocados de fora. Quem comandou a integração da Itália foi o rei e Cavour. Não há por que ter dúvidas de que a nação é uma criação dos setores dominantes da sociedade. Portanto, a nação sempre tem sido um problema. Acho curioso que no momento da globalização nos preocupemos, afinal, com onde fica a nação. Ficamos com a sensação de que a nação está sofrendo certos embates, que ela está sendo desafiada. É verdade e não só é verdade como esse desafio, essa ruptura, esse momento crítico nos mostra que de fato a nação está vivendo um problema grave, difícil. E pensando como é que se forma a nação, descobrimos que ela foi sempre problemática. O que são as lutas dos bascos e dos catalães hoje, na Espanha? Uma prova de que a nação espanhola não é uma nação plenamente realizada. O que são as lutas étnicas, lingüísticas e religiosas na Índia? Prova de que a Índia é uma ficção construída por um Estado que se define em face do conjunto. O que é a África do Sul? O que é Mandela (uma figura lindíssima, impressionante, na minha definição a combinação genial de um príncipe africano com um gentleman britânico)? A África do Sul é atravessada por divisões tribais, culturais e lingüísticas. E várias outras nações. A Alemanha é problemática. Na Inglaterra vive-se o problema da Irlanda do Norte, que não se equaciona. O Canadá também é um país com problemas. Até no Brasil, que tem um quê de engraçado, há um movimento gaúcho que quer proclamar a República de Piratini ou a República dos Pampas, uma caricatura desse tipo. E a Itália tem a Padania. Portanto, vejam bem, a nação é um processo histórico, é uma construção histórica, o que significa que é transitória. E é uma construção que, em geral, se apóia na organização, na mobilização e na atuação de setores dominantes em certas conjunturas. Foi o Reino de Castela e Aragão que inventou a Espanha. Até hoje quem viaja pela Espanha ouve este diálogo: "Estou aprendendo a falar espanhol". E alguém diz: "Desculpe, mas não é espanhol, é castelhano". Quer dizer, essa é uma língua que não é do país, mas de Castela e Aragão.
O que aconteceu nos últimos tempos e por que a nação está se transformando aceleradamente numa província da economia mundial? Bem, província da economia mundial já é faz tempo, mas agora o processo está se acelerando. Vejam bem, o Estado está sendo reformado, todos estamos lendo e estudando matérias sobre a reforma do Estado, que está sendo apresentada para a opinião pública. Muitos de nós acreditamos nisso, mas sabemos que não é verdade. É como se fosse um aprimoramento do aparelho do Estado para que ele se torne mais moderno, mais racional, mais eficaz. E é verdade. Só que é verdade e é mentira, porque essa reforma do Estado é uma exigência da transnacionalização. Isso é evidente. Podemos dizer: mas sem entrar no mercado mundial, sem entrar na competição mundial e sem ter uma capacidade de atuação em escala mundial a nação está vivendo um impasse, portanto a solução é modernizar não simplesmente o Estado mas as empresas, as organizações, para que fiquemos em condições de entrar na competição, para chegarmos a esse ideal maluco da qualidade total, da ISO 9000 e não sei mais o quê. O que significa isso? Que a nação "dançou", é claro, porque as exigências estão estabelecidas pelos parâmetros transnacionais e não mais pelos parâmetros que correspondem às possibilidades e exigências dessa ou daquela nação. E essa reforma está continuando em vários níveis. Vou dar um exemplo com a maior tranqüilidade: o Ministério da Educação está conduzindo uma reforma do sistema de ensino nos três graus, e isso que se está fazendo aqui está ocorrendo no México, na Índia e nos quatro cantos do mundo. Que coincidência interessante, todo mundo de repente acordou para melhorar o sistema de ensino, preparar melhor os quadros profissionais e intelectuais e ajustar a nação à modernidade, ao parâmetro que parece mais do que excelente. Muito bem, só que tudo isso está sendo orquestrado pelo Banco Mundial. Há documentos, há estudos do Banco Mundial sobre o sistema de ensino no mundo que são rigorosos, competentes e, claro, organizados com diretrizes e alternativas que correspondem à visão que o Banco Mundial tem do sistema de ensino no mundo e que implica modernizar os sistemas de ensino para preparar esses sistemas para profissionalizar, para adequar os indivíduos às exigências das atividades produtivas e da circulação no mercado. Onde é que está a nação? Na educação, que historicamente sempre foi o lugar crucial da formação do cidadão, da formação da nacionalidade, do desenvolvimento de um compromisso com as tradições e com a história do país. Aquilo que foi a independência, a soberania, a hipótese de um projeto nacional acabou. Eu sou radical nisso, a hipótese de projetos nacionais de desenvolvimento terminou. Se admitirmos que o projeto nacional é um projeto que tem a ver com soberania, com aquilo que Celso Furtado dizia no passado, de "interiorização dos centros decisórios", tchau, não é mais. Agora as decisões são adotadas em conformidade e em intimidade com os grupos técnicos de corporações transnacionais do FMI, e do Banco Mundial. Portanto, onde está a soberania? Se o país não pode definir suas diretrizes no plano da economia, um elemento básico fundamental da soberania, que é o exercício e a definição de diretrizes econômicas, não está funcionando. Se não está funcionando, o resto é um discurso inócuo, patrioteiro, mistificador, que é o que está acontecendo no mundo.
Aliás, a experiência de passar uns dias no México é penosa mas extremamente elucidativa. Faz tempo que o México está vivendo uma integração crescente com a economia americana, e o Nafta veio apenas acelerar esse processo. É uma nação forte em termos de tradições culturais, de compromisso com aquilo que é o povo, a nação, etc. O discurso nacional no México é particularmente forte, só que a capacidade de seus governantes em estabelecer diretrizes tem decaído a olhos vistos, nas últimas décadas, em decorrência da reforma do Estado, da reintegração da economia nacional na internacional e, no caso específico do México, mais fortemente com os Estados Unidos. Portanto, se é assim, a nação realmente se transforma numa província da economia e da sociedade mundial.
Aqui gostaria de fazer um parêntese: no caso do México, do Brasil, da Argentina e em
muitos outros casos, como o da Índia e o da Indonésia, houve a possibilidade de
construções de capitalismo nacional, houve projetos nacionais fortes. Vou dizer umas
barbaridades e vocês me desculpem: houve projetos nacionais muito fortes, mas o projeto
nacional de Sukarno, na Indonésia, foi derrotado por causa da Guerra Fria. Os americanos
orquestraram um golpe de Estado sangrento na Indonésia e puseram Suharto, de quem agora
não sabem como se livrar, porque ele ficou velho, está doente, com problemas, e os
americanos e japoneses estão preocupados em mudar essa situação. Na Índia também
houve um projeto nacional forte com Nehru e no Brasil houve um projeto muito forte com
Getúlio Vargas. Com Vargas, não, com Vargas, Euvaldo Lodi, Roberto Simonsen e outros. No
México idem, na Argentina idem. Houve vários projetos nacionais, só que eles foram
derrotados. A chance que houve no Brasil, na Argentina, no México, na Índia e na
Indonésia de construção de um capitalismo nacional soberano, soberano em termos, claro,
mas com uma certa capacidade de definir autonomamente diretrizes, essa oportunidade
histórica foi perdida, desbaratada. Isso porque, primeiro, as classes dominantes não
confiam no povo, porque confiar no povo significa dividir um pouco, e dividir um pouco é
incômodo. Segundo, porque isso ocorreu nos quadros da Guerra Fria, que foi uma vasta
mistificação histórica que serviu para que o capitalismo americano se organizasse,
segundo seus interesses e espaços de atuação, bloqueando com isso vários projetos
nacionais. Eu me dediquei a estudar o golpe de 1964, que foi orquestrado, é claro, por
interesses dominantes no Brasil e pelo embaixador americano Lincoln Gordon, não digo
pelos americanos mas por Lincoln Gordon, que assumiu isso publicamente. Por quê? O
pretexto era o risco de uma república sindicalista, o que evidentemente era uma
mistificação, já que havia possibilidades de conduzir o processo político em outros
termos. Mas o contexto da Guerra Fria facilitou, digamos, a mistificação
norte-americana, açulando setores empresariais, militares e intelectuais, inclusive no
ambiente universitário, em favor de uma solução ditatorial. O golpe de 1964 foi também
contra o projeto de capitalismo nacional no Brasil. Vejam que paradoxo.
JOSUÉ MUSSALÉM - Apesar de Ernesto Geisel.
IANNI - Geisel é uma espécie de sobrevivência arqueológica de um tempo pretérito. Lembro que uma vez Severo Gomes me contou que quando houve a votação daquela história dos contratos de risco para prospecção de petróleo - porque aquilo afetava o nacionalismo de Geisel, que, por sua vez, representava um setor comprometido com o projeto de capitalismo nacional -, Geisel disse para Severo Gomes: "Que pena, fomos derrotados". Isso porque teve que concordar com o projeto de contratos de risco. Mas já era uma reminiscência porque o processo de transnacionalização estava caminhando forte. Em casos como o do Brasil, Argentina, México, Índia e Indonésia, em diferentes gradações, onde houve conjunturas históricas propícias à constituição de um capitalismo nacional e onde houve mobilizações substantivas de setores sociais em favor de uma redefinição das relações externas e da recriação das instituições nacionais, segundo um projeto de desenvolvimento e democratização em moldes nacionais, esses projetos foram mutilados, realizaram-se precariamente. No limite pode-se dizer que estão todos derrotados. Não é que não se realizaram coisas notáveis. Realizaram-se, mas as coisas notáveis que se realizaram não chegaram a fundar uma nação nova, diferente e capaz de soberania. Esse é o quadro.
Com o novo ciclo de transnacionalização, com esse processo acelerado de globalização, é claro que não há mais condições para projetos nacionais. Sou radical e enfático nesse argumento: não há mais condições. Não sei qual é a intimidade e o convívio dos técnicos do FMI e das transnacionais com os membros do governo, mas tenho a intuição de que é um convívio cotidiano, de que assuntos cruciais são resolvidos de comum acordo. Quer dizer, a alienação da soberania é um fato indiscutível no que se refere à gestão da economia nacional. É claro que isso significa uma coisa maluca, chega a ser esquizofrênico. É por isso que parece que o governo receita algo em que não crê. É por isso que algumas falas de ministros parecem de boneco de ventríloquo, algo que não tem autenticidade. Porque, de fato, se abalou profundamente a realidade. Veja, esse é um tema jurídico e político relevante, teórica e praticamente: o Estado e a nação, ou seja, o Estado e a sociedade civil, ontem estavam razoavelmente integrados. Bem ou mal, o projeto populista, que era a versão política do projeto de capitalismo nacional, implicou o desenvolvimento de uma profunda integração entre o povo, a sociedade e o Estado. Os esquemas sindicalistas e partidários, aquilo que muitos chamam de demagogia populista, de carisma, etc., tudo aquilo tinha uma certa articulação e visava conduzir o país a um outro estágio que, a meu ver, era o estágio do capitalismo nacional. É claro que havia tensões e grupos no projeto populista que queriam radicalizar para a esquerda, assim como havia grupos que queriam radicalizar para a direita, mas no conjunto o projeto conduzia para a realização de um capitalismo de tipo nacional. Essa integração era mais ou menos eficiente. Ela está rompida. Hoje há um fenômeno fantástico, que é aflitivo do ponto de vista teórico e fascinante do ponto de vista prático: a sociedade civil está divorciada do Estado, há uma anomalia profunda, o Estado e a sociedade civil não se entendem. Essa sensação, que todos temos no cotidiano, de que o governo e os setores sociais não se entendem, é algo que a meu ver foi resultado do fato de que o Estado está sendo reformado segundo uma lógica que não é a da sociedade civil. E a sociedade continua uma sociedade civil com o povo, com os trabalhadores, assalariados, setores operários, setores rurais, classe média, setores estes mais ou menos organizados em movimentos sociais, sindicatos e partidos. Só que o Estado não tem nada a ver com essa sociedade, ou melhor, tem muito pouco a ver. Porque a política econômica está sendo definida segundo diretrizes da transnacionalização e até a política educacional está sendo definida de acordo com esses critérios transnacionais. A sociedade civil está órfã.
É isso o que sinto, que há um hiato muito forte entre aquilo que é o Estado, a gestão do aparelho estatal, que de certo modo tem uma lógica, uma dinâmica que, a meu ver, corresponde à dinâmica da transnacionalização, e a sociedade civil, que tem outra dinâmica, dinâmica esta que não ressoa no âmbito do Estado nacional. Se ressoa, o faz muito mal. Por que um governo como esse, que se apresentou como democrático, que até se diz social-democrata, mas que na verdade é neoliberal, tolera o massacre dos sem-terra? A não ser que cheguemos à ingenuidade de dizer que o governo não sabia o que estava acontecendo, que foi alguém intempestivo que resolveu agir discricionariamente. Não nos iludamos, há uma relação evidente entre a gestão do Estado e a prática da violência estatal. Por quê? Porque há um divórcio inegável entre aquilo que é o movimento da sociedade civil e aquilo que é a gestão do Estado. Isto é, o Estado está interessado na dinâmica da economia mundial, os governantes estão contracenando com figuras do cenário mundial. Aliás, deleitam-se nisso. Só que a sociedade civil, os diferentes setores sociais estão vivendo penúrias, insatisfações, carências, ou então estão reivindicando objetivos que seriam cabíveis, mas diante dos quais o Estado não está em condições de reagir.
Creio que o regionalismo, isto é, a integração regional, que está se desenvolvendo no caso do Mercosul e que se desenvolve em escala diferente em outros termos na Europa, com a União Européia, ou então ao norte com o Nafta, sem esquecer que também há no Pacífico, o regionalismo é evidentemente um artifício econômico, financeiro e também jurídico-político, é claro, para acomodar as aflições nacionalistas com as imposições do globalismo. Não nos esqueçamos, e isso para mim é evidente, que quem está orquestrando a integração regional não são os governos, mas as corporações. Aliás, na Europa começou com a Comunidade Européia do Carvão e do Aço. O acordo era explícito, havia um diagnóstico que caminhava. E esse processo caminhou em escala acentuada na Europa. Quer dizer, a orquestração da integração é uma exigência da lógica do mercado, da lógica da reprodução, dos empreendimentos, da comercialização, etc. Os governos nacionais fazem um certo esforço para se acomodarem a essas exigências, mas se defrontam com problemas. É preciso abdicar de certos requisitos de soberania, é preciso redefinir certos dispositivos jurídico-políticos. Só que a integração não é uma solução, é apenas uma intermediação entre o nacional e o global. É provável que alguns blocos regionais venham a se consolidar mais, venham até a ser notáveis no cenário mundial. Mas em que termos? Em termos das exigências desse processo mais geral de desenvolvimento da economia em escala mundial.
Sem me estender, gostaria de lembrar que todos nós estamos interessados, e alguns até preocupados, com o desemprego estrutural, que é produto da dinâmica da tecnificação do processo produtivo em escala mundial. A adoção de tecnologias eletrônicas está expulsando trabalhadores dos locais de trabalho e a sociedade não está ligando para isso, os setores dominantes não estão interessados nisso. Claro que há discursos humanitários, claro que há até providências, mas substantivamente os desempregados estão desempregados e vivendo uma situação de subclasse, como se diz nos Estados Unidos, ou seja, expulsos da estrutura de classes e vivendo à margem. Essa é uma das expressões do agravamento da questão social no mundo, ou seja, estamos assistindo a um fenômeno que também é muito forte, que é a emergência da questão social não mais em termos nacionais e, sim, em termos mundiais. Quer dizer, a Europa vive a questão social como um problema mundial, como um problema transnacional. São imigrantes da África, da Ásia e do Caribe que afligem os europeus, que inclusive açulam o racismo europeu.
Idem nos Estados Unidos. Esse fenômeno está se mundializando de uma maneira evidente. E junto com ele desenvolvem-se etnicismos, xenofobias, racismos, fundamentalismos, intolerâncias de vários tipos.
Daí novamente cabe lembrar que a globalização é o início de um ciclo da história no qual se desenvolvem fragmentações, se agravam tensões, se recriam tensões pretéritas e se desenvolvem novas. Esse é um cenário que está afligindo todo mundo, há diferentes setores sociais em todo o mundo preocupados com o racismo, com o desemprego, com as carências que se estão multiplicando. A revista "Time" publicou que a distância entre aqueles que detêm poder econômico e os pobres, os setores desempregados, e mesmo os empregados, mas empobrecidos, está crescendo, isto é, está havendo um agravamento das tensões sociais. E é claro que isso fermenta propostas políticas como o neoliberalismo, ou seja, que a liberação geral das atividades, dos intercâmbios é condição sine qua non para se chegar às possibilidades do bem-estar. Ou então, como dizia e repetia um ex-ministro, "é preciso fazer o bolo crescer para depois dividi-lo". Se alguém morrer na estrada, tudo bem, morreu, mas primeiro é preciso fazer crescer o bolo. Mas como é que se faz para dividir o bolo?
A humanidade está vivendo esse problema que hoje não é só nacional mas mundial. Daí a emergência de movimentos políticos. E o neoliberalismo é evidentemente uma ideologia política. É claro que há reflexões neoliberais que têm a ver com a economia política e até mesmo com o trabalho científico, mas há uma ideologia neoliberal que tenta dar conta desse quadro. Simultaneamente estão explodindo movimentos neo-nazistas ou nazi-fascistas em vários setores que são um pouco, ou muito, a expressão desse quadro problemático. Há manifestações evidentes não só na Europa, mas em vários quadrantes do mundo. Nos Estados Unidos, o nazi-fascismo é um fato. Pequenos grupos armados que querem atuar autonomamente em defesa do que seria a integridade da sociedade americana são muito numerosos, a ponto de preocupar o governo americano. Há um ingrediente nazi-fascista nos Estados Unidos, assim como em várias partes da Europa, e há, claro, manifestações várias no sentido de resolução em termos de social-democracia ou socialismo. Inclusive, creio que essa ressurgência de grupos armados em várias partes da América Latina é um sintoma dessas inquietações. É um sintoma, não se trata de imaginar que são propostas já articuladas, já maduras. Mas é uma reação que, eu diria, até que tem um quê de espontâneo em um quadro extremamente problemático, e resulta não simplesmente da gravidade da situação na Colômbia ou no México, mas da gravidade da situação também na Argentina, no Brasil, no Paraguai, etc.
Termino colocando um problema que atravessa um pouco esse quadro. Por que os partidos não estão demonstrando eficácia? Por que os partidos estão em crise? E não é só neste ou naquele país. Segundo alguns estudos, os partidos estão vivendo uma situação crítica no mundo todo. Algo semelhante se pode dizer, em outros termos, com relação aos sindicatos. A meu ver, é porque o hiato, o divórcio entre Estado e sociedade civil cresceu demais e embaralhou muita coisa. Isso é um aspecto muito evidente. Mas eu diria algo que é uma hipótese que resta demonstrar. O grande partido no mundo de hoje, o grande partido de verdade é a mídia. Quem faz as mentes e os corações dos povos é a mídia. E a mídia é independente dos partidos, a mídia está ligada aos grupos que não são os partidos, são corporações. Como vamos sair dessa?Se Bill Gates é um poderoso magnata da mídia e tem capacidade, ele e Berlusconi, de definir a maneira pela qual os indivíduos são informados, são postos em contato com interpretações e são, portanto, mistificados, porque a mídia pode tanto informar bem como informar mal, então estamos vivendo um quadro extremamente complicado. Quem faz os candidatos hoje é o marketing político, não são os partidos. Aliás, mais do que isso, a propaganda política, até numa eleição municipal, é uma caricatura de programas de auditório. É o cúmulo, é a barbárie. A mídia tomou conta. O político, para ter vigência como político, precisa transformar-se em imagem. Ele não precisa representar as suas bases, a sua corrente de pensamento. Ele precisa atender à lógica, à dinâmica e ao jogo dos elementos que atuam na mídia.
Nesse sentido, o quadro é extremamente problemático. A globalização veio acompanhada de um intenso desenvolvimento das tecnologias de informação. As tecnologias eletrônicas ajudaram a transformar a mídia em poderosas corporações que atuam em escala mundial.
Como sou de outra geração, quando abria o jornal estava acostumado, em tempos arqueológicos, eu imagino, a ver que a notícia que veio do Oriente Médio ou da África do Sul foi produzida pela agência x ou y. Os jornais hoje não nos dão satisfação sobre a origem da notícia. Será que é algo muito avançado, muito moderno, ou será que é um exercício totalmente discricionário do monopólio da informação? É um sintoma muito evidente de como a mídia tomou conta do processo de informação e do processo de interpretação dos fatos que se desenvolvem no mundo.
Nesse sentido, nós estamos vivendo, nessa conjuntura dita da globalização, várias transformações notáveis. Uma é que a tecnologia adotada nos processos produtivos está provocando um desemprego estrutural muito sério em escala mundial. E as mesmas tecnologias eletrônicas levadas para a indústria cultural, levadas para o âmbito do que seria a cultura lato sensu, em particular a mídia, estão fazendo com que os partidos, os sindicatos e certos grupos que atuam na sociedade, em termos de propostas alternativas, percam capacidade de representar e de atuar de uma maneira mais plena. Porque a mídia se transformou numa espécie de mediação poderosa, fortíssima, que de certo modo controla ou expressa a maneira pela qual as pessoas no mundo todo são informadas e são levadas a interpretar os fatos.
Eu uso, num outro contexto, uma expressão que é gramsciana e que acho que faz
sentido, que é a seguinte: a mídia se transformou num intelectual orgânico das classes
dominantes no mundo. Notem que a mídia é uma coleção de intelectuais. O ator que
trabalha na novela é um intelectual, o diretor que define os programas do canal de
televisão é um intelectual. São muitos os profissionais intelectualizados que atuam na
mídia em geral, sem falar nos jornais, revistas, etc. Então temos vários grupos de
intelectuais coletivos que, independentemente da sua posição pessoal, que às vezes é
muito distante, são levados a atuar na mídia numa certa direção. E isso faz com que
aquilo que aparece nos jornais, nos programas de rádio e televisão e em vários outros
meios de comunicação corresponda a uma visão do mundo, a uma visão dos problemas, a um
modo de relacionamento entre as pessoas que prescinde do partido, do sindicato, que
prescinde de certas correntes de opinião pública. Então estamos vivendo uma situação
realmente problemática, isto é, a política mudou de lugar, mudou drasticamente. Os
partidos apenas cumprem um papel secundário nesse processo.
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