Postado em 01/02/2001
No alvorecer do século 21, a cidade de São Paulo vive um dilema: está no limite entre se tornar uma metrópole competitiva na disputa voraz por capitais e investimentos externos ou desabar de vez no limbo das megacidades do terceiro mundo, mero repositório para milhões de pessoas e de problemas.
Nessa expectativa angustiante, a arquiteta e urbanista Regina Meyer, professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e coordenadora do Laboratório de Urbanismo Metropolitano da mesma faculdade, vislumbra um porvir menos nefasto para a capital do Estado, desde que os esforços sejam envidados no sentido de conscientizar os paulistanos de que os problemas da cidade são comuns a todos.
Qual a sua expectativa com a mudança da gestão na prefeitura de São Paulo?
Tenho uma expectativa grande, não porque espere grandes obras, pois essas realizações demandariam grandes verbas, mas principalmente pela possibilidade de introduzir novas formas de lidar com "a coisa pública", que é o que a Marta está propondo. Já nesse primeiro mês de mandato eu sinto uma mudança no tom com que a administração se reporta à população. Mesmo a mídia, que às vezes é bem malevolente, começa a perceber a necessidade de transmitir os problemas urbanos. Enfim, a cidade passou a ser centro de discussão em meios não especializados. Acredito que a seriedade no estabelecimento de regras para o uso de dinheiro público já é um primeiro passo para melhorar as condições gerais de São Paulo. Depois, é preciso lançar campanhas de educação dos paulistanos no tocante ao cuidado com a própria cidade: atitudes simples como não jogar lixo na rua, por exemplo, ajudam muito. Por outro lado, a moralização significará a diminuição dos problemas da cidade. A corrupção é uma espécie de febre. Se conseguirmos abaixar um pouco essa febre, atingiremos níveis melhores de organização e eficiência para os serviços públicos.
Em que momento histórico a cidade de São Paulo entra na barafunda do descaso e da degradação?
Na virada do século passado, a cidade deu um salto populacional e passa a acumular certos problemas que se agravam com seu crescimento. Na década de 10, São Paulo cresceu muito e saiu da condição provinciana para tomar ares de grande cidade. Sua população que era de 64 mil habitantes em 1890 vai para 239 mil em 1900. É um aumento vertiginoso, o maior crescimento populacional do século 20. Na década seguinte, uma quantidade imensa de urbanistas se debruçaram sobre a "nova cidade". Durante a gestão do prefeito Pires do Rio, no final dos anos 20, houve projetos de construção de grandes obras. Na década de 30, o prefeito Prestes Maia lançou o plano de avenidas, que teve papel fundamental na cidade, pois forneceu à São Paulo uma estrutura que ainda permanece presente. Sem entrar na polêmica se ele estava correto ou não, esse plano deu o caráter radiconcêntrico e reforçou a idéia de avenidas perimetrais saindo do Centro. O projeto de Prestes Maia deu uma feição para São Paulo a partir do modelo consagrado por Haussmann em Paris. Na década de 50, o dado fundamental para São Paulo é a implantação dos Planos de Metas por Juscelino Kubitschek. A implementação do primeiro pólo industrial no país, na região do ABC paulista transformou profundamente a cidade. Com a produção de automóveis, a frota de veículos aumentou mil vezes em pouco mais de dez anos. São Paulo não estava preparada para receber esse contingente de automóveis. Essa trajetória transformou São Paulo em uma cidade rodoviarista. Ao mesmo tempo, estávamos atrasados no desenvolvimento do transporte coletivo, principalmente o metrô. O prefeito Prestes Maia, nos anos 30, pronunciou uma frase histórica: "O metrô está certo como transporte, mas errado enquanto urbanismo." Isso significa que primeiro ele queria construir a cidade para depois fazer o metrô. E na década de 30, a cidade, chegando a um milhão de habitantes, estava no patamar adequado para a construção do metrô. Com esse atraso, mais o estímulo trazido pelas novas avenidas ao sistema de transporte individual instalou-se um problema cuja solução aponta para a expansão do transporte público sobre trilhos, ou seja, o metrô.
Como o zoneamento influencia os problemas da cidade?
Com a lei de zoneamento implantada nos anos 70, criou-se um modelo de cidade de baixa densidade. São Paulo é uma cidade muito horizontal. Um outro erro foi não planejar os bairros operários associados aos bairros industriais, principalmente a partir dos anos 50. O trabalhador foi obrigado a morar muito longe do seu local de trabalho. Hoje, uma massa de cerca de três milhões de pessoas sai da zona Leste, atravessa o Centro, para trabalhar na região Sul. Isso equivale, em números, à população de um país como Honduras. Esse movimento criou disfunções que se agravaram com o passar do tempo. Hoje, São Paulo, que deixou de ser uma cidade industrial, carrega, como um fardo extraordinário, problemas criados nesse período.
Muito se discute sobre a participação direta da população na discussão dos problemas e nas suas respectivas soluções. Isso é possível se considerarmos uma cidade de dez milhões de habitantes?
Hoje em dia não se vive mais em uma cidade, vive-se em uma metrópole, ou seja, circula-se cada vez mais dentro de um espaço regionalizado.
Como acontece a participação?
É preciso pensar quais são, hoje, as novas formas de participação tendo em vista esse espaço metropolitano. É fato que a participação deveria ser mais intensa. Mas ela deveria começar a partir de sua localização menor, ou seja, no lugar onde a pessoa vive, onde está a escola, a creche, o posto de saúde, a feira o comércio, atingindo a escala do cidadão. Só assim ele poderá opinar sobre a construção de um túnel, de uma praça, de um parque, de uma nova avenida que "corta" o bairro. Para se instalar um sistema participativo, é necessário informar muito. A população precisa saber muito mais. Por exemplo, ser transparente sobre a disponibilidade de verbas para que a população possa estabelecer prioridades, optar entre diversas possibilidades. A participação popular não pode ser considerada uma panacéia, mas se a gerirmos mal poderemos descartar um importante instrumento de trabalho e aperfeiçoamento da cidade. A população organizada tem níveis de participação surpreendentes, mas infelizmente não existe na esfera administrativa municipal mecanismo de absorção suficiente para que essa vocação ganhe espaço.
No início desse novo século surgem muitas discussões acerca do futuro das megacidades. Havia uma previsão que a urbanidade atingiria esse grau de evolução?
Londres é um exemplo clássico do desastre do crescimento das cidades. A industrialização da forma como ocorreu naquela cidade provocou a destruição absoluta dos elementos da vida urbana. A partir do momento em que os níveis de degradação tornaram-se insuportáveis houve um movimento de recuperação de Londres. Alguns teóricos já alertavam desde o século passado que o tamanho era pernicioso para a vida na cidade. Anhaia Melo, um grande urbanista paulistano, com quem se confrontou Prestes Maia (para quem uma cidade devia crescer sempre) dizia que o que acaba com a cidade não é o tamanho, mas a desproporção. O que ele queria dizer é que a uma cidade não poderia ser maior do que sua infra-estrutura permitia. Afinal, uma metrópole significa agregação permanente de novos espaços dentro de uma região que se urbaniza continuamente. O exemplo novamente é Londres que cresceu desmesuradamente e há quatro décadas parou de crescer. São Paulo está longe disso. A Grande São Paulo possui cerca de 8 milhões de quilômetros de área e se hoje o crescimento da região central, isto é, o município de São Paulo, está equilibrado, nas bordas a perspectiva ainda é de crescimento.
Mas as pesquisas populacionais mostram que, em alguns casos, a região metropolitana de São Paulo vem perdendo moradores nas trocas populacionais com outras regiões do Brasil, como o interior do Estado, por exemplo.
São Paulo conheceu um decréscimo migratório a partir do momento em que parou de oferecer empregos. Mas eu estou muito curiosa para ver o que vai apontar o recente censo do IBGE agora que a cidade voltou a ser fonte de novos postos de trabalho. De qualquer maneira, São Paulo mudou de perfil. Ela não é mais a grande cidade industrial da América Latina, ela se tornou a metrópole de serviços do continente. Ser uma metrópole de serviços é um elemento fundamental na produção de empregos. São Paulo, hoje, é o grande pólo terciário do Brasil. Por isso. eu creio que a taxa de imigração vai aumentar novamente.
Qual a diferença entre uma megacidade e uma metrópole?
A megacidade tem a ver meramente com seu tamanho desmesurado e a metrópole depende da funcionalidade, dos serviços que ela oferece. Uma metrópole é muito mais qualificada que uma megacidade. Por exemplo, enquanto Jacarta é uma megacidade, Paris e Londres são metrópoles. São Paulo caminha para ser uma metrópole. Todas as metrópoles tenderiam a ter alguns elementos que se repetem. Na organização econômica contemporânea, a idéia de funcionamento em rede é crucial e tende a impor situações idênticas em todas elas: no âmbito global, as metrópoles são muito semelhantes, mas no nível local as distinções estão muito presentes. Uma metrópole pressupõe quesitos imprescindíveis, como aeroportos bem equipados, rede de telefonia compatível, hotéis de nível internacional. No caso de São Paulo, existe uma imensa quantidade de problemas, oriundos do período industrial, que ainda não foram resolvidos. É uma cidade que ainda tem carências muito importantes. Nós não resolvemos, por exemplo, o problema da macrodrenagem: como é que uma metrópole poderá competir com outras se enchentes anuais que destróem casas, desabrigando os moradores das redondezas dos córregos, também impedem que os viajantes saiam do aeroporto e alcancem os hotéis? É preciso diminuir a precariedade para que a cidade moderna efetivamente funcione. Não existe modernização abandonando os elementos que de certa forma envolvem as populações desfavorecidas. Quanto mais uma cidade caminha para o modelo planetário, mais algumas questões locais se aprofundam. A identidade local, que não fazia parte das discussões no fim do século passado, tornou-se um valor a ser perseguido. São formas de resistências locais contra as pressões globalizadas. Por outro lado, a metrópole é indissociável do capitalismo financeiro. Não adianta nos iludirmos: o grande capital elegerá a metrópole da América Latina, ou seja, a que será o nó dessa grande rede continental, aquela que melhor desenvolver esse papel. De certa forma, a cidade tem que oferecer algumas condições. O Rio de Janeiro, por exemplo, sempre rivalizou com São Paulo como a cidade mais importante do país. Recentemente, surgiu um dado novo que sacramenta essa questão. E não é um atributo populacional nem cultural: a Bolsa de Valores carioca praticamente encerrou suas atividades no final dos anos 90. Então, esse é um dado que ajuda a eleger São Paulo a metrópole que representa esse pedaço de mundo dentro da cadeia global. São Paulo será o ponto para o qual o Brasil vai convergir. Um exemplo é o Anhembi, que tem sua agenda lotada por três anos, ou o hospital Albert Einstein, cujos leitos estão em 40% ocupados por internos de fora de São Paulo, sendo que 20% são estrangeiros.
Os requisitos que fazem de uma megacidade uma metrópole são indicativos de melhor qualidade de vida? Em São Paulo, como ocorre essa relação?
Uma metrópole, na acepção da palavra, significa uma imensa área urbanizada, uma continuidade espacial, uma grande oferta de serviços especializados, e tudo mais que acompanha esses atributos. Além disso, significa, também, acesso à educação e aos aparatos de cultura e comunicação. Mas, por outro lado, em São Paulo estamos resolvendo dificuldades mais uma vez de maneira inadequada. Nunca antes na história atingimos níveis tão profundos de segregação da população. Estamos divididos entre a pequena parcela da população que vive nos setores modernizados da cidade e o resto que vive nos setores precários. Às vezes, essas duas metades se encontram no meio de caminho.
Quais são os instrumentos para combater a má distribuição dos benefícios urbanísticos se, por um lado, a iniciativa privada está interessada nos lucros e, por outro, o poder público está falido?
Não tem saída: o poder público precisa investir para diminuir o fosso que separa grupos sociais. A idéia da retração do Estado é uma fantasia se considerarmos as populações mais pobres. Para combater a defasagem social, é preciso aumentar algumas taxas e impostos, além de redimensionar os recursos. O governo precisa cuidar da cidade pobre muito mais do que da cidade rica. Mas, por outro lado, se ele abandona a modernização perdem-se os investimentos externos, iniciando um processo de fuga do capital, o que gera, por sua vez, a queda do nível de emprego. Portanto, é preciso equilibrar os investimentos urbanos. Deve-se aplicar bastante na parte pobre, sem esquecer das questões que afetam a todos e que muitas vezes "localizam-se" em setores considerados ricos. Esse é o caso da limpeza pública, da segurança pública, do meio-ambiente urbano, etc. A realização de qualquer obra é hoje problemática e exige critério. É preciso fazer parcerias, não só com a iniciativa privada, mas também com os outros entes de governo. Afinal, os problemas de São Paulo não são restritos à metrópole. O que aflige São Paulo aflige o Brasil como um todo. Além disso, é preciso estabelecer um diálogo em âmbito regional, pois alguns problemas, como o transporte, o lixo ou as drenagens extravasam o município de São Paulo.