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Marcas de insanidade

Postado em 01/07/1998

RODRIGO ARCO E FLEXA

Símbolo da morte, tal o seu gosto pela carniça, o urubu foi durante décadas um fantasma que assombrou a cidade mineira de Barbacena. Essa não é apenas uma imagem, mas fato real. Entre o início da década de 1930 e o começo dos anos 80, os arredores do pequeno município eram sobrevoados diariamente por grupos de urubus, atraídos pelas emanações pútridas exaladas de seu manicômio, oficialmente denominado Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena (CHPB). Criado em 1903 para ser um dos primeiros hospícios do Brasil, dentro do modelo vigente na época de hospital-colônia para doentes mentais, seus muros testemunharam um massacre, no sentido mais preciso do termo.

Afinal, como definir as 60 mil mortes que aconteceram ao longo da história do manicômio? Como no pesadelo dos campos de concentração nazistas da Segunda Guerra, ser enviado para lá - destino comum de doentes mentais de inúmeros cantos do país, um rótulo que abrangia toda sorte de excluídos, desde vítimas de sérios transtornos psicóticos até alcoólatras, mendigos, deserdados pela família e mães solteiras - era quase que estar condenado a sair do hospício apenas no dia da própria morte.

Essas cenas macabras, durante longos anos escondidas em meio às montanhas do interior de Minas Gerais, representam um dos mais trágicos capítulos da história dos hospitais-colônias para doentes mentais no Brasil. Uma situação que ainda se repete, em diferentes proporções, em vários locais do país. Mas não mais em Barbacena, onde o centro psiquiátrico vive agora uma nova etapa de sua existência quase centenária. Quem hoje visitar o local não poderá imaginar, num primeiro momento, o terror que fazia parte do seu cotidiano.

Depois de profundas reformas, levadas a frente a partir do início da década de 1980, o antigo hospício foi transformado, finalmente, num hospital que tem como propósito recuperar seus pacientes. Eletrochoques, lobotomias e prisões, antes utilizados largamente como punição, deram lugar a terapias, oficinas de arte e trabalhos manuais. "Nossa orientação, agora, é reintegrar o paciente no convívio social", afirma o médico psiquiatra Jairo Furtado Toledo, diretor do hospital desde 1986.

Com as dependências abertas ao público, o centro hospitalar recebeu a reportagem de Problemas Brasileiros, que percorreu todas as suas instalações. O acesso aos pacientes também não foi restrito (leia alguns de seus depoimentos na matéria a seguir), mesmo em se tratando dos casos mais antigos, que apresentam graves seqüelas das violências sofridas em outros tempos. Os próprios internos têm liberdade de ir e vir, pois não existem mais grades. "O fato é que hoje em dia temos muito menos fugas do que antes", conta Toledo, na entrevista que concedeu na sala da diretoria - mesmo local onde, décadas atrás, hordas de pacientes se amontoavam para comer em cochos, nada menos do que buracos abertos no chão de cimento onde a "comida" era despejada.

Museu da Loucura

Apesar de todas as transformações, que ainda estão em curso, marcas desse passado não tão distante permanecem no local. Nenhuma delas, entretanto, é ocultada por muros ou mentiras. Na realidade, a própria instituição é quem apresenta ao visitante a sua história. Em meio aos antigos pavilhões, foi construído um espaço absolutamente singular: o Museu da Loucura. Instalado em um pequeno edifício de dois andares, o museu resgata os sofrimentos que lá aconteceram, registrados em peças que agora são relíquias dos velhos tempos, como aparelhos de eletrochoque e lobotomia, grades, fotos de multidões de internos nus e imundos, além de alguns documentos.

Erguido como um memorial a todos os que viveram o inferno do hospital-colônia, o Museu da Loucura não permite que o passado seja esquecido. O que é fundamental, pois a história só existe com a permanência da memória. Uma tarefa, aliás, nada fácil. "Grande parte dos antigos documentos do hospital se perderam com o tempo. Muitos deles acreditamos que tenham sido queimados", diz Edson Brandão, que foi o responsável pela concepção e organização do museu. "O desaparecimento desse material lembra o sumiço proposital que foi dado a tantos documentos que registravam a escravidão no Brasil", compara Brandão.

Conhecer o Museu da Loucura não é propriamente um passeio. É tomar contato com uma dura realidade que muitos prefeririam jogar para debaixo do tapete. "Eu mesmo, quando criança, tinha muito medo de me aproximar do hospital", lembra Brandão. A visita ao museu, entretanto, pode ser uma experiência com toques surrealistas. Como os internos têm liberdade para circular, o visitante pode ser surpreendido pela companhia de um deles. "Eles sempre andam por aqui. Mas nem ligam para as exposições", diverte-se Leodemir Soares, que é funcionário do hospital há 19 anos. "Perto do que já vi, isto agora é um paraíso", diz.

Existem no centro psiquiátrico cerca de 460 pacientes, que estão internados há várias décadas. "São pessoas que sofrem de deficiência mental profunda, muito agravada pelas péssimas condições de internação de que foram vítimas", conta Lênio de Castro Lara, coordenador de saúde mental do hospital. "Todos são sobreviventes das agruras do inferno - o resíduo que sobrou daquele tempo", diz o médico. "Sem mais nenhum elo social, eles continuarão conosco até o fim de seus dias", afirma. "O que temos que fazer, entretanto, é dar uma razão à sua existência, fazendo com que se dediquem a atividades como desenho, cerâmica ou tricô."

Já os novos casos que chegam ao hospital passam por um rígido filtro, estabelecido com a criação da Porta de Entrada, dois anos atrás. Conforme o quadro apresentado, a pessoa é dirigida para atividades terapêuticas de hospital-dia, em que permanece apenas por um período do dia, retornando depois para sua casa. A freqüência nos finais de semana, por sua vez, é opcional. Muitos pacientes, entretanto, não perdem a oportunidade.

"Gosto de vir aos sábados, quando a gente pode colocar em prática tudo o que aprende durante a semana", diz Franz dos Santos, um mineiro de 36 anos que está se recuperando do alcoolismo, enquanto prepara mais uma fornada de doces. Essas atividades, inclusive, permitem aos pacientes arrecadar recursos, obtidos com a venda de bolos e cestas. "Eles até criaram uma grife, Pirou, Criou, para vender seus produtos numa feira de artesanato", conta Lara.

Já os casos mais graves podem levar a internação, mas sempre com um prazo para a alta do paciente. "Não existem mais situações de internação definitiva", afirma Toledo.

Depósito de doentes

Barbacena começa a aprender a conviver com seu hospital psiquiátrico, numa mudança sensível de comportamento. Mas durante muito tempo todos queriam distância do local, que estigmatizara o município como a "Cidade dos Loucos". O manicômio, entretanto, foi criado em Barbacena justamente como uma espécie de prêmio político de consolação. Cotada para ser a nova capital de Minas Gerais na virada do século, no lugar da histórica Ouro Preto, a cidade foi preterida em favor de Belo Horizonte, que possuía melhores recursos hídricos. Barbacena ganhou assim o seu hospital-colônia, no local onde funcionava antes um sanatório para tratamento de tuberculosos.

"Inicialmente o hospital contava com 200 leitos. E, para os padrões terapêuticos da época, funcionava bem", conta Luiz Eduardo Grisolia de Oliveira, atual coordenador da clínica médica do centro. "Ele era uma colônia agrícola, cujas lavouras o tornavam auto-suficiente", afirma. "Mas isso acabou atraindo a clientela, o que, junto com a política da comunidade de segregar as pessoas indesejáveis, acabou inchando o hospital", diz Grisolia.

A superlotação começou a ocorrer na década de 1930. Nessa época, centenas de pessoas consideradas de alguma forma como doentes mentais eram despejadas semanalmente na cidade. Muitos chegavam de trem, o que levou a linha que atendia o município a ser conhecida como o Trem dos Doidos. Assim, aqueles mesmos 200 leitos passaram a "acomodar" até 4 mil pacientes. "A qualidade do atendimento ficou totalmente comprometida", afirma Toledo. "Perderam-se os critérios de internação, e o manicômio se transformou numa prisão perpétua", conta o médico.

Uma visita ao inferno

Até o início da década de 1980, a situação só se deteriorou. Quando muito, havia um enfermeiro para cada cem pacientes, um médico para centenas de internos. Isso gerou toda forma de horrores. Vítimas dos mais diferentes tipos de transtornos mentais conviviam no mesmo espaço exíguo. Como muitos deles não tinham consciência de sua própria corporalidade, cenas grotescas como centenas de pacientes zanzando nus pelos pavilhões se transformaram no cotidiano da instituição.

Higiene simplesmente não existia. A maioria defecava em público, no mesmo chão que era dividido por todos. Inocentemente, os doentes chegavam a comer as fezes que se acumulavam pelo pátio. Um esgoto a céu aberto atravessava o hospício. A água podre que corria, entretanto, era a maneira mais fácil que vários dos internos encontravam para aplacar a sede. Para dormir, eles tinham um "colchão" coletivo: capim sobre o chão de cimento. O resultado dessa equação trágica não é difícil de imaginar. Diarréia, frio e fome matavam a todo instante.

"Semanalmente morriam cerca de 60 pacientes", conta Grisolia. Durante o inverno, que é extremamente rigoroso em Barbacena, a liquidação de vidas era multiplicada. "Proporcionalmente, os óbitos poderiam ser comparados, ou mesmo superar, às mortes que aconteciam na Guerra do Vietnã", afirma Lara. Sem nenhum atendimento ou orientação, a vida dessa gente se resumia a passar o dia em imensos pátios, esfregando-se pelo chão e definhando na miséria até o fim.

O índice de mortes era tão alto que acabou por gerar situações bizarras. O manicômio se transformou em um negócio lucrativo, para interesses escusos, tornando-se o maior fornecedor de cadáveres para escolas de medicina de todo o país. Eram tantos lotes de "peças anatômicas" que, em determinado momento, as escolas ficaram abarrotadas de cadáveres. O excesso da oferta, entretanto, não foi problema. Os corpos passaram a ser decompostos em ácido para a venda apenas das ossadas.

Reformas e carnaval

A situação do manicômio só começou a mudar na virada da década de 1970 para a de 80. Não por acaso, no mesmo momento em que o Brasil iniciava a sua saída do longo governo militar. "Muitas coisas aconteceram em Minas Gerais nessa época que permitiram a alteração desse quadro", lembra Toledo. Depois de um longo tempo de silêncio da imprensa - em 1961 a revista "O Cruzeiro" publicou uma explosiva reportagem-denúncia sobre o manicômio, mas nos anos seguintes o assunto desapareceu do noticiário -, o jornal "O Estado de Minas", em 1979, lançou uma série de matérias sobre os "Porões da Loucura". Assinadas pelo jornalista Hiram Firmino, as reportagens tiveram grande repercussão.

Nesse mesmo ano, foi realizado um congresso de psiquiatria em Minas Gerais, que teve, entre outras presenças, a participação do médico italiano Franco Basaglia, um dos maiores expoentes da luta antimanicomial. Impressionado com o que viu em Barbacena, Basaglia comparou o hospício da cidade aos campos de concentração da Segunda Guerra Mundial.

"Todas essas denúncias levaram o governo a abrir as portas dos hospícios", conta Toledo. Esse ambiente que gritava por mudanças acabou por levar grupos de jovens médicos até Barbacena, decididos a alterar aquilo que vinham criticando tão duramente. A partir daí, as mudanças começaram, mesmo que lentamente, mas com resultados sensíveis. "Hoje em dia, a cidade já tem uma estrutura para a saúde mental. Mas ainda precisamos desenvolver projetos para deficientes físicos e idosos da região", afirma Grisolia.

O fato é que, atualmente, Barbacena não mais olha com desprezo os seus "loucos". A melhor demonstração disso foi dada no carnaval deste ano, quando 300 internos do hospital psiquiátrico saíram em bloco pela cidade. Com o apoio dos enfermeiros e de uma bateria de samba, desfilaram pela avenida entoando uma marchinha de sua própria autoria, sugestivamente batizada como "Nem todos que são estão, nem todos que estão são". A empatia com o bloco foi tão grande que os internos prometem repetir a dose em 1999, agora como escola de samba.

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