Postado em 08/10/2014
"Queria tanto que alguém me amasse por alguma coisa que escrevi." A frase está em uma carta de Caio Fernando Abreu a Hilda Hilst, escrita em junho de 1970. Quando morreu em decorrência da Aids, em 1996, o autor nascido em Santiago do Boqueirão, no Rio Grande do Sul, quase na fronteira com a Argentina, era um nome reconhecido. Ganhara prêmios, era cronista de um jornal de veiculação nacional, fora patrono da Feira do Livro em Porto Alegre. Seu livro Morangos Mofados, publicado em 1982 pela Brasiliense, na famosa coleção Cantadas Literárias, foi uma das obras icônicas da década de 1980 no país. O que talvez Caio não imaginasse é como o apreço – e o amor, como ele queria – viriam a crescer ainda mais com o passar dos anos, atingindo um público mais jovem com verdadeira fascinação por sua obra.
Em 2004, quando comecei a pesquisa para escrever a biografia Caio Fernando Abreu: Inventário de um Escritor Irremediável (Seoman, 2008), não era fácil encontrar seus livros. Com algumas exceções, como o belíssimo Os Dragões não Conhecem o Paraíso e o próprio Morangos Mofados, a maioria estava esgotada. Na época, não havia sites que reúnem sebos na internet, e o garimpo atrás das edições antigas era feito a pé, um a um, exemplar a exemplar. Mesmo com essa dificuldade, porém, já dava para notar um movimento ali. Por toda parte encontrava jovens como eu – à época do início da pesquisa, eu tinha 22 anos – que se interessavam pela obra do Caio. Eram trabalhos acadêmicos sobre sua obra, peças de teatro baseadas em seus contos. Muita coisa feita por gente que mal entrara na adolescência quando ele morreu.
Dez anos depois, esse movimento se ampliou. A obra de Caio foi reeditada, e já não é preciso percorrer dezenas de sebos para ler livros do início de sua carreira, como O Inventário do irremediável e Pedras de Calcutá. Seus textos continuam inspirando dezenas de peças de teatro, além de adaptações para o cinema, como foi o filme Onde Andará Dulce Veiga, de 2008, dirigido por Guilherme de Almeida Prado, com Maitê Proença no papel de Dulce e Carolina Dieckmann como Márcia Felácio. Os trabalhos acadêmicos pipocam, assim como livros sobre o autor. Dois documentários foram filmados sobre ele. Além disso tudo, Caio virou fenômeno nas redes sociais. No Facebook há várias páginas dedicadas a ele; a maior tem cerca de 630 mil seguidores. O Twitter também tem perfis do autor. Muitas dessas páginas colocam regularmente frases tiradas de suas obras, fenômeno parecido ao que ocorreu com outros escritores, como Clarice Lispector e Luis Fernando Veríssimo. Caio F. virou meme. Muitos de seus fãs são jovens de 17, 18 anos, que acabaram de descobrir seu trabalho e se encantaram. Se eu era adolescente quando Caio morreu, muito dos novos leitores mal tinham nascido em 1995, quando ele, já doente, voltou para Porto Alegre para viver uma vida tranquila, cuidando das rosas do jardim da casa dos pais.
Mas de onde vem esse interesse das novas gerações pelo Caio? Seus textos eram cheios de referências a personagens e acontecimentos de sua época; daria pra pensar que a obra ficaria datada, deixaria de fazer sentido para os que vieram depois. Ele bebia na música, no cinema, no teatro e até no besteirol para fazer o que chamava de “literatura pop”. Mas não foi isso que aconteceu. É que a literatura do Caio tem algo que fica, algo de passional, rebelde e lírico que ainda ressoa nos leitores de hoje. Caio foi um homem de seu tempo e o viveu intensamente: fugiu da ditadura militar, se exilou na Europa, experimentou o desbunde da década de 1970, viveu a redemocratização no país na década de 1980 e presenciou a morte de dezenas de amigos em decorrência da Aids, doença que acabou por levá-lo também, aos 47 anos de idade. Tudo isso está em seus textos, mas embebido em uma paixão, uma intensidade e um afeto que fazem com que o seu trabalho perdure. Seus textos não são otimistas água-com-açúcar, como alguns dos perfis e páginas na internet podem levar a crer. Havia momentos de redenção, mas também uma profunda melancolia, uma compreensão da solidão e dos aspectos soturnos da vida. Falava de sexo, da homossexualidade, mas também da morte, da angústia de estar vivo. Tratava da loucura das metrópoles, das fachadas em neón e da condição de sentir-se permanentemente estrangeiro. Com um texto sempre impecável, incorporava o culto e o vulgar, era profundo e superficial ao mesmo tempo. "Nada do que é humano me apavora", disse certa vez. Ele não tinha medo de mexer em lodaçais para escrever. Foi, como o descreveu certa vez a escritora Lygia Fagundes Telles, um “biógrafo das emoções”. É por tudo isso, talvez, que ele permanece.