Postado em 08/10/2014
por Denis Russo Burgierman *
Uma coisa ninguém há de negar: este que passou foi um século movimentado. Haverá quem diga que foram os 100 anos mais produtivos da História do Homem sobre a Terra. Outros afirmarão o contrário: que foi o período mais destrutivo de todos os tempos. E há verdade nas duas afirmações.
Se voltássemos 100 anos rumo ao passado, até 1914, encontraríamos num subúrbio ao norte de Detroit uma fábrica chamada Ford, pondo para funcionar pela primeira vez uma invenção do final do ano anterior: a linha de montagem. Do outro lado do Atlântico, numa cidadezinha alemã à beira do Rio Reno chamada Ludwigshafen, outra fábrica, essa chamada Basf, começava a produzir amônia industrialmente.
Essas duas invenções de 1913, reproduzidas em massa a partir de 1914, colocariam o mundo na era da escala. O processo desenvolvido pela Ford aumentaria descomunalmente a capacidade produtiva da humanidade. O fertilizante desenvolvido por Carl Bosch na Basf serviria de base para o fenômeno que décadas depois ficaria conhecido como Revolução Verde – a industrialização da produção agrícola.
Ninguém nega a importância dessas duas descobertas. Graças a elas, a população humana saltou de pouco menos de 2 bilhões de pessoas em 1914 para mais de 7 bilhões hoje – um aumento tão mastodôntico que é até difícil de conceber. Nunca antes a humanidade viveu tanto, soube tanto, produziu tanto, consumiu tanto, acumulou tanto.
Mas esse ganho impressionante de escala teve consequências, e a seleção de filmes da 3ª Mostra Ecofalante de Cinema Ambiental traz um monte de exemplos disso – uns mais poéticos, uns mais políticos, uns fictícios, outros dolorosamente reais. Basicamente todos os grande ciclos complexos sobre os quais nossa existência se apoia foram rompidos: o da água, o dos nutrientes, o do clima. A perplexidade pela quebra desses ciclos é o tema da surreal ficção belga A Quinta Estação (The Fifth Season), na qual a primavera simplesmente deixa de chegar quando o inverno termina. As sementes não germinam, as abelhas desaparecem, as vacas não dão leite – tornando a humanidade inviável.
Cena de "A Quinta Estação"
Segundo a ciência da complexidade, tudo aquilo que é complexo tem necessariamente duas características: escala e complexidade. Só que tem uma pegadinha aí. Quando se investe em escala, a complexidade é afetada, e vice-versa. Há um trade-off entre as duas coisas. No movimentado século que passou, a humanidade investiu todas as suas fichas em escala. O resultado foi um desequilíbrio que levou a um colapso da complexidade.
Passamos décadas comemorando aumentos de produtividade de 200%, 500%, 1.000%. Diante desses ganhos enormes, as perdas microscópicas de complexidade pareciam irrelevantes. Mas elas foram se acumulando por 100 anos e hoje basta olhar ao redor para perceber o tamanho do problema. Enchentes, câncer, poluição, guerras, furacões, loucura, desmoronamentos, enfartes, obesidade, desnutrição, doenças degenerativas, engarrafamentos, perda de sentido de tudo.
Dos filmes da mostra, o belo Sinfonia do Solo (Simphony of the Soil) fala explicitamente disso. O documentário pacientemente revela a incrível complexidade do solo terrestre, segundo o filme “a interface entre a geologia e a biologia”, já que é a forma como os minérios da Terra transformam-se nos nutrientes que tornam possível que haja vida no planeta. E contrapõe essa riqueza incrivelmente multifacetada à monotonia da produção agrícola industrial, que há meio séculoconverte complexidade em escala. Outro olhar sobre a mesma questão é o do filme Lamento dos Camponeses (Farmer’s Blues), um retrato de uma espécie em extinção na Europa: o pequeno fazendeiro, substituído no mundo da escala por uma economia industrial, financeira.
Cena de "Lamento dos Camponeses"
Se o século que está se fechando em 2014 foi o da escala, aquele que vem em seguida precisa ser o da complexidade, para que nossos sistemas voltem ao equilíbrio. Por sorte, a tecnologia fundamental para que isso seja possível já existe: a conexão em rede entre todos os habitantes da Terra. Escala se produz em hierarquias, como aquelas que vigoravam na Ford e na Basf. Mas complexidade só surge quando há uma grande quantidade de indivíduos ligados em rede, algo que só agora é possível. Se os protagonistas do século que passou foram grandes chefes da indústria como Henry Ford e Carl Bosch, comandantes de hierarquias, os protagonistas do século que se apresenta serão milhares de indivíduos autônomos, nós de rede, encontrando soluções locais para problemas locais.
Se queremos voltar a viver num mundo em equilíbrio, o próximo século terá que ser pelo menos tão movimentado quanto o que passou – talvez mais. Não é uma grande invenção de escala que vai nos salvar – serão milhões de pequenas invenções complexas que resgatarão a diversidade perdida no mundo. A Mostra Ecofalante deste ano não tem a solução para todos os nossos problemas, mas traz algumas dezenas de pequenas histórias redentoras, espalhadas por seus filmes. Nossa esperança está no acúmulo de mais e mais dessas histórias.
* Denis Russo Burgierman tem 40 anos e é diretor de redação da revista Superinteressante. Autor de livros como Piratas no Fim do Mundo, sobre a caça a baleias na Antárica, e O Fim da Guerra, sobre o futuro das políticas de drogas, foi curador do TEDxAmazônia e do TEDxSão Paulo. Escreve sobre sistemas complexos e mantém o blog Mundo Novo. Movimenta-se entre uma tarefa e outra de bicicleta.
** Texto originalmente publicado no blog da Mostra Ecofalante de Cinema Ambiental
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"Campo", o tema desse texto, é um dos eixos norteadores da programação da Mostra Ecofalante de Cinema Ambiental. A partir de 18 de outubro, 28 desses filmes vão compor a Itinerância da 3ª edição da mostra, que em uma parceria com o Sesc vai percorrer 16 cidades do interior de São Paulo, além da capital, com sessões gratuitas e debates com especialistas em meio ambiente. Saiba mais.