Fechar X

Ficção Inédita
Crianças brincando no jardim

Postado em 01/11/2000

João Gabriel de Lima

Foi numa dessas tardes esticadas - passamos a tê-las em quantidade depois da minha aposentadoria - que Odete foi até a janela e me chamou: "Olha, meu amor, há uma porção de crianças novas brincando no jardim". Eu, que lia uma revista na poltrona, que em nosso apartamento fica no lado oposto ao da janela, respondi: "Deixa disso, Odete, essa janela não dá para nenhum jardim, como você pode estar vendo um, ainda mais com crianças brincando nele". Disse isso e tinha razão, já que, desde que nossos filhos foram embora e a casa na qual morávamos ficou grande demais, passamos a viver num apartamento menor num bairro extremamente conveniente para pessoas da nossa idade, por ser tranqüilo e ter tudo perto. Bairro este que, apesar de conveniente, não é belo, constituído que é de vários edifícios enfileirados um ao lado do outro, de forma que, neles, a vista de uma janela é quase sempre outra janela, quando não uma parede. Se tivéssemos uma luneta poderíamos nos divertir bisbilhotando apartamentos e vidas alheias, tão próximas as janelas são umas das outras, mas chegamos àquela idade em que todas as vidas são demasiadamente parecidas com as nossas, com o que vivemos no passado e com o que vivemos hoje, de maneira que espionar outra janela equivaleria a espiar a nós próprios através de um espelho que refletisse, a um só tempo, presente e pretérito.

Odete insistia: "Vem, meu amor, vem ver, são crianças novas brincando no jardim, e crianças novas significam famílias novas morando no bairro, já que quando as famílias se mudam são as crianças que saem primeiro de casa para explorar o lugar, pois lugares novos são como brinquedos novos para quem é criança". Eu, a custo, levantei-me de minha cadeira, coloquei a revista na pilha que jazia ao lado dela e caminhei até a janela de onde Odete me chamava.

Sabia que perderia a viagem, e efetivamente a perdi, pois olhei pela janela e só vi outra janela em frente, ladeada por duas outras, encimada por uma terceira, com uma quarta embaixo, dezenas delas somadas formando um mosaico na parede do prédio, um desenho tão monótono quanto o do chão de ladrilhos da cozinha ou a parede de azulejos do banheiro. Já ia repreender Odete por me fazer largar a leitura inutilmente quando me ocorreu o óbvio: ela estava enlouquecendo. Muitas pessoas, ao se aproximarem da velhice, perdem a faculdade de distinguir o real da fantasia. Eu lia muito sobre essas coisas, ainda mais à medida que os anos passavam e ia chegando perto da idade em que se costuma ter esse tipo de doença. No exato momento em que Odete me chamou da janela eu lia um artigo científico sobre o assunto. A reportagem falava de velhos que passavam anos e anos mudos, com o olhar vidrado, em frente a uma parede branca. Filhos e netos faziam visitas, tentavam puxar assuntos sobre os quais o parente gostava de conversar quando ainda tinha o dom da fala, tentavam adivinhar por sua expressão se ele entendia o que diziam. Se ele de alguma forma participava da conversa, mesmo mudo, ou se permanecia alheio, mais interessado no que eventualmente assistia, como num cinema, projetado sobre a parede branca. O que via? Talvez crianças brincando no jardim, passou pela minha cabeça quando, no exato instante em que decidi calar minha reprimenda, Odete me dirigiu um olhar brilhante como a lente de um projetor de filmes, pegou a minha mão como quando, na nossa juventude, fazia questão que eu compartilhasse algo com ela, e, apontando com o nariz para o que pensava ser um jardim e eu sabia ser apenas parede e janelas, disse: "Vê aquele menino loiro? Sua família deve vir de outra cidade. Não há muitos assim por aqui. Certo, há meninos loiros, mas não com essa cor de pele, essa nuança de cabelos, essa tonalidade de olhos". Odete falava como se o visse de perto, a ponto de perceber cada detalhe, e eu deduzi que o jardim que havia diante dela não era um jardim distante, situado nove andares abaixo, na rua onde havia apenas asfalto, mas um jardim próximo, bem à frente de seus olhos. Ela não apenas tinha visões como também perdera a noção de que morávamos no nono andar de um prédio. Achava, provavelmente, que vivia numa casa como a que tínhamos, em que tudo, pela janela, acontecia à altura do olhar.

Voltei para a minha poltrona do outro lado da sala e mirei a pilha de revistas, pensando que muitas delas conteriam artigos médicos que provavelmente descreviam síndromes parecidas com a de Odete. Talvez algum deles trouxesse uma boa sugestão sobre o que fazer com ela. À medida que fui entrando nos anos, como já disse, adquiri o hábito de ler sobre doenças da velhice. Sabia os sintomas de várias delas. Amigos viam nisso uma espécie de masoquismo mórbido. Eu concordava com eles, até que passei a entender esse tipo de coisa de outra maneira. Ao longo da vida - percebi apenas recentemente - adotei, de forma inconsciente, o slogan "conhecer para evitar". Sempre gostei de ler sobre doenças porque achava, de certa forma, que a ciência de seus sintomas poderia afastá-las de mim. Materializadas no papel, aprisionadas nas palavras de um artigo de jornal, essas síndromes se tornavam repentinamente distantes. Ao longo dos anos efetivamente mantive minha saúde - ou seja, os fatos confirmaram essa superstição, consolidando-a. Quando cheguei àquela idade em que os amigos começam a adoecer e morrer, conhecia em pormenor os achaques de que padeciam, e isso reforçava em mim a crença de que conhecê-los era a principal razão de atingirem a eles e não a mim. Como se as doenças devessem parte de seu efeito devastador à surpresa que provocam no doente. Como não poderiam surpreender a mim, que delas sabia pelo menos de forma teórica, elas provavelmente me poupavam, não por bondade, mas porque, com o sadismo próprio das doenças, queriam multiplicar seu impacto com o inesperado.

No caso da morte, essa superstição não tem efeito. Por mais que leiamos sobre ela em romances e em poemas, ou a vivenciemos de perto quando um amigo ou parente próximo se vai, podemos apenas tangenciá-la, nunca conhecê-la, nem ao menos teoricamente. Seremos sempre surpreendidos por ela - e por isso a morte, em seu sadismo, chega em algum momento para efetivamente surpreender-nos.

Odete, que agora vê crianças no jardim, sempre teve uma postura oposta à minha. Enquanto eu passei a vida procurando me inteirar das coisas nos livros, ela preferia experimentá-las sem conhecimento prévio. Foi Odete, por exemplo, quem sugeriu que nos casássemos, há cinqüenta anos atrás, época em que o costume era que os homens tomassem esse tipo de iniciativa.

Passeávamos num jardim, esse sim verdadeiro e não delírio, embora neste momento em que o relembro pareça enfumaçado como uma alucinação, como costuma acontecer com as imagens de nossa memória à medida em que elas se afastam no tempo. Estávamos num jardim, dizia eu, e Odete subitamente sugeriu que nos casássemos, e eu objetei dizendo que éramos jovens e despreparados demais, que precisávamos crescer e amadurecer antes de dar um passo tão sério. Para colocar uma pedra sobre o assunto tentei magoá-la, ponderando que nos conhecíamos há muito pouco tempo para ter certeza sobre se nos queríamos de verdade, mas ela não se feriu e disse para mim, com a mesma convicção com que hoje afirma ver crianças brincando no jardim, que, para ter certeza disso, precisaríamos ao menos tentar.

E ela foi tão convincente que me casei com ela, e nos anos seguintes passei a ler livros sobre o amor, para descobrir, afinal, se o sentimento que eu nutria por Odete era o mesmo que os escritores descrevem nos romances, que são nossa referência nesse assunto. Tentava alcançar, com minha teoria, a prática que Odete acabara de materializar em realidade. Quando estava prestes a acreditar que sim, que a amava, ela veio com outra novidade: queria ter filhos, e eu novamente me senti despreparado para tal responsabilidade, mas desta vez me calei, outra vez a convicção de Odete me intimidava, e eu pensei que se ela havia tido razão uma vez poderia ter de novo, e vieram os filhos, um, dois, três e quatro.

Hoje, que tenho idade para ser sincero, digo que nunca tive muita certeza sobre se gostava realmente deles. Existem períodos na vida em que crianças são insuportáveis, é difícil amá-las de verdade quando nos chantageiam na infância, nos desafiam por birra na adolescência ou nos humilham por sermos velhos e desatualizados quando chegam à idade adulta. Mas Odete aparentava amá-los com a mesma firmeza com que hoje me chamou para ver crianças brincando no jardim, e eu senti que precisava demonstrar algum amor também para que ela não se sentisse sozinha, e me achei generoso por essa atitude.

Hoje, que tenho idade para conhecer bem as mentiras mais difíceis de desvendar - aquelas que aplicamos em nós mesmos -, sei que tudo não passava de egoísmo de minha parte. Era eu quem tinha pavor da solidão. E para ter sempre companhia me engajei, ao longo da vida, nos sonhos de Odete, como quando casada e cheia de filhos ela quis uma casa nova, que tivesse um jardim onde as crianças pudessem brincar, e nós compramos essa casa, onde passamos a maior parte de nossa vida e de onde nos mudamos recentemente, porque eles, os filhos, haviam ido embora, e se tornara inútil um jardim sem crianças.

Foi em respeito ao nosso passado que agora, quando Odete me chamou pela segunda vez, eu resolvi ir à janela novamente para me certificar do que ela dizia. Mesmo convicto de que só veria a parede do prédio vizinho, mesmo incrédulo sobre sua sanidade, depois de ter lido tantas revistas médicas que explicavam cada minúcia de sua doença. Odete dizia: "Venha ver aquele menino de cabelos vermelhos, também não deve ser daqui porque neste bairro são raras as crianças assim". Eu estiquei o pescoço por trás do seu ombro e, estupefato, vi mesmo um jardim onde deveria haver só janelas e paredes, e um menino tão ruivo que o reflexo do sol em seus cabelos chegava a incandescer, como aqueles espelhos de antigamente que incendiavam navios transformando a luz em fogo. O menino corria em nossa direção e Odete abriu a janela para recebê-lo. Ele parou de repente, a alguns metros de nós, e nos chamou. Odete fez aquele sinal com o nariz, indicando que atravessássemos a janela, e pegou minha mão como fazia quando éramos jovens e queria compartilhar algo comigo. Eu mais uma vez tive medo, mas não podia deixar Odete sozinha, sobretudo tinha pavor de ficar sozinho, e novamente sua convicção me hipnotizou e me deu tranquilidade. Pulamos, assim, para o outro lado.

João Gabriel de Lima é escritor,
autor de O Burlador de Sevilha, entre outros

Escolha uma rede social

  • E-mail
  • Facebook
  • Twitter

adicionar Separe os e-mails com vírgula (,).

    Você tem 400 caracteres. (Limite: 400)