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Especial
Orlando Villas-Bôas

Postado em 01/11/2000

No coração do Brasil

Em relato exclusivo apresentado no Sesc Itaquera, o indianista Orlando Villas-Bôas conta suas aventuras entre os índios do Xingu

Eu nasci em Santa Cruz do Rio Pardo, em 1914, estou com 87 anos. Meu pai era advogado, trabalhava em Botucatu, foi para Santa Cruz do Rio Pardo, e, depois, nos mudamos para Campas Novas do Paranamenama, a última cidade do estado de São Paulo. Éramos em onze irmãos.
Em 1942, Getúlio Vargas fez uma viagem para o interior do Brasil, até o rio Araguaia. Ele criou, então, uma expedição para estimular a interiorização do país, pois o presidente dizia que éramos um país vazio, de faixa litorânea. E assim criou-se a expedição Roncador-Xingu, que teve por objetivo sair em linha reta de São Paulo, pelo Rio de Janeiro, até Manaus, cortando o Brasil pelo meio. Do rio Araguaia para lá, o Brasil era caboclo e índio. Para iniciar a expedição, recrutamos sertanejos e garimpeiros, até então inimigos figadais dos índios, e os transformamos em uma gente fantástica. Com o tempo, fomos isolando os índios dentro de suas áreas de reserva, de maneira que conseguimos fazer as tribos da área xinguana, que falavam diversas línguas e que estavam ainda em conflito entre si, conviver em paz. Hoje eles se dão. Na época, existiam duas concentrações de índios, do norte e do sul. A concentração do norte era a mais agressiva. Havia os índios jurunas, uma tribo proveniente dos Andes, que imigraram para território brasileiro há uns duzentos anos.

Os índios botocudos também nos deram muito trabalho. Claudio Villas-Bôas, Dionadio, eu e dois índios jurunas entramos em contato com eles e fomos presos. Eles fizeram uma roda de mais ou menos uns quatrocentos índios e gritavam, na língua deles: "Branco não presta!" e "Bakubim, bakubim!" (mata, mata!). De repente, por sorte nossa, apareceu uma mulher, uma índia. Um outro índio disse: "Uma velha, uma velha!". Chegaram mais 220 mulheres bravas, com os maridos. Entre os homens foi um silêncio total, e uma índia, que devia ser a líder delas, vinha na frente. Ela levantou o braço e todos os homens se sentaram; então ela chamou duas índias e mandou que nos levassem até o porto, de onde pudemos atravessar o rio.

O índio
Para a criação do parque tivemos muito trabalho porque eram áreas divididas em tribos, e cada uma tinha o domínio sobre a sua região. Um índio não entrava na área do outro. Depois de ter contato com eles, começamos a derrubar esses limites e os índios passaram a se visitar. Hoje aquilo é uma coisa linda. O índio é muito cordato e inteligente. Nós os tínhamos como bichos. Mas eles são criaturas alegres, que vivem numa sociedade na qual ninguém manda em ninguém, não existem rixas ou controvérsias, nem marido que briga com a mulher.
Vivemos com eles quase cinquenta anos e nunca vi um índio discutir, mãe puxar a orelha da filhinha nem pai dar um coque na cabeça do filho. A criança é plena, é a coisa mais alta da comunidade indígena. Até hoje, as mesmas normas de respeito da criatura pela criatura permanecem entre eles.
Os índios acreditam que surgiram da madeira: o "kuarup". "Kua", de sol, "rup", de madeira. O sol na madeira transforma madeira em gente.

Os bichos
Eu tinha um macaco e sempre deixava melancia para ele. Quando aparecia um avião, ele ia para o campo recebê-lo. Se ele fosse com a cara do piloto, subia em seu ombro; senão, virava as costas e ia embora. Era um macaquinho muito inteligente. Só que ele entrava na farmácia, abria um vidro de remédio, tomava e tínhamos de fazer ele vomitar.

A mata
A mata é a coisa mais linda que você pode imaginar. Ela não é hostil. Você se habitua e tira dali tudo o que necessita. Ela nos supre em todos os sentidos. Nós é que criamos a hostilidade dentro da mata. Cortamos, arrancamos, fazemos o caminho dentro dela, mas ela sente e se recompõe rapidamente. Devíamos ter um amor especial pela mata.
Uma coisa formidável foi quando Marechal Rondon nos chamou e disse: "Eu quero que vocês achem o centro geográfico do Brasil. Medi o centro geográfico da América do Sul e tive sorte porque caiu exatamente em uma praça em Cuiabá". Chamou então um auxiliar dele e disse: "Traga-me o levantamento aéreo fotogramétrico do centro geográfico do Brasil". Eles trouxeram, e eu e Cláudio andamos pela mata com uma bússola, medindo o caminho de dez em dez metros. Chegamos no pé de uma árvore monstruosamente grande, bonita, mas plantada sobre um formigueiro. É ali o centro geográfico do nosso país.

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