Postado em 01/11/2000
Criado há um ano, o Mesa Santos - Colheita Urbana é uma excelente alternativa no combate ao desperdício de alimentos. O projeto Mesa São Paulo, criado na capital pelo Sesc/SP, chega a outras cidades como uma ponte entre quem quer doar e quem precisa receber
Mal passava das cinco horas da manhã em Santos, litoral paulista, e o movimento no mercado municipal da cidade ainda era intenso. Era interessante notar o vai-e-vem contínuo de vendedores, compradores e carregadores transportando hortifrutigranjeiros nas adjacências do bonito edifício. Forçando um pouco a imaginação, numa regressão temporal, as transações praticadas ali nos remontam ao comércio em seus primórdios - exalava-se uma tradição milenar, uma conjunção antiquíssima que sobrevive ao tempo das altas tecnologias. No mercado municipal, o dinheiro ainda circula em espécie e o computador dá lugar às fichas preenchidas com a caligrafia particular de cada comerciante.
Em meio à paisagem quase medieval, enriquecida pela garoa fina e pelo sol fraco de começo de dia, circulava entre as barracas e armazéns o caminhão do Mesa Santos - Colheita Urbana. Sem estranhar aquela confusa harmonia, o veículo recolhia alimentos doados por comerciantes para distribuí-los em entidades e associações de benemerência. Naquele dia, o mercado municipal de Santos seria a primeira etapa no longo itinerário da solidariedade, que tem início antes das quatro da madrugada para terminar apenas perto das sete horas da noite.
Mas o que é exatamente o projeto de Colheita Urbana? Sua proposta é das mais simples. Trata-se de um programa contra a fome e o desperdício, em outras palavras, é um programa permanente de aproveitamento de alimentos. De acordo com Cícero Bueno Brandão Júnior, conselheiro do Sesc, "seu objetivo é facilitar a ação social das empresas, das áreas de produção e distribuição de alimentos, e colaborar com o trabalho que instituições sociais já realizam na cidade, muitas delas a partir da iniciativa do voluntariado da cidade. A Colheita Urbana estabelece uma ligação entre aqueles que dispõem de alimentos excedentes, mas próprios para o consumo, e as instituições sociais que trabalham com segmentos carentes da população, oferecem alimentação, mas não possuem alimentos em quantidade suficiente. Busca onde sobra, entrega onde falta".
O que poucos têm conhecimento é como os conceitos previstos no papel se materializam no dia-a-dia. Portanto, desvendar os bastidores da colheita e da entrega foi a intenção da reportagem da Revista E ao acompanhar, por toda uma manhã, o percurso efetuado pelo caminhão do Sesc Santos na trilha do alimento.
Naquele dia, o mercado municipal foi a primeira etapa de uma jornada que prometia ser recheada. Nessa parada, José Aparecido de Oliveira Fernandes, técnico do Sesc e coordenador do Mesa Santos - Colheita Urbana, apresentou as primeiras noções da dinâmica de trabalho do projeto, obrigado a se coadunar com o tempo restrito dos locais de recepção. "O mercado, por exemplo, funciona a partir das dez da noite, quando os alimentos começam a ser vendidos. Em torno das quatro da manhã, os comerciantes aprontam as sobras que vão ser doadas ao Mesa. Às seis horas, já não tem mais nada. Por isso, temos que ser rápidos, para não haver desperdício", explica.
Normalmente, os comerciantes cedem as mercadorias que se deteriorariam, caso não fossem vendidas. Segundo Evandro Veloso, comerciante há mais de vinte anos, o nível de perda diário gira em torno de 10% do total, mas existem variáveis que determinam um prejuízo maior ou menor. "Se está muito quente, os alimentos tendem a se estragar mais rápido e, portanto, a estocagem deve ser bem mais curta." Nessas ocasiões, a deterioração é muito rápida e deve-se promover a doação o quanto antes.
Para explicar quais os tipos de alimentos doados pelos comerciantes, Aparecido usa o exemplo do brócolis: "Se as folhas superiores não estão absolutamente verdejantes, ninguém mais compra a verdura, porém, nesse estágio, ele ainda é plenamente aproveitável: tanto o talo como as folhas inferiores. Com o auxílio das nutricionistas, as entidades que recebem o alimento aprendem a prepará-lo da melhor maneira possível, sem que haja desperdício de nutrientes".
Mas, além da razão de ordem prática, a cessão de alimentos segue uma moção solidária. No mercado, a doação é uma prática antiga. Para Humberto M. Hayama, participar do programa Colheita Urbana é "motivo de imensa satisfação, pois é uma oportunidade para melhorar o mundo onde vivemos. Sei que minha contribuição é pequena, e que os problemas são enormes, mas com certeza significa melhoria da qualidade de vida de nossos semelhantes num gesto simples que, caso fosse seguido por mais pessoas, numa união de forças, certamente tornaríamos este mundo mais justo, digno e feliz".
Já Mário Hayama, outro comerciante do mercado municipal, explica que muitas entidades recolhem as sobras, mas ele ressalta um diferencial no trabalho do Mesa Santos: a confiança que o alimento chegará aos necessitados. "Eu já vi muita gente pegar comida e jogar logo adiante porque não tinha condição de ser entregue." Nesse ponto, a metodologia utilizada pelo Sesc impede que uma falha assim ocorra. "Primeiro fazemos um levantamento da demanda das entidades e só recolhemos aquilo que efetivamente distribuiremos naquele dia", assegura Aparecido.
A outra ponta
Na segunda parada surgiu um grande pequeno problema. Grande porque a quantidade de laranjas cedidas pelo supermercado Makro da Praia Grande excedia a capacidade do caminhão do Sesc. Eram mais de 6 mil quilos de laranja a serem recolhidos e logo depois distribuídos, sem que houvesse muito tempo para isso. Pequeno porque, para o Mesa Santos, o excesso é melhor do que a falta, não é?
A resposta vem de Carlos Roberto Ribeiro, gerente-geral da loja 22 do Makro, "o programa Mesa Santos é um alerta sobre o quanto podemos e devemos ajudar no reaproveitamento de mercadorias, inclusive em nossas atividades particulares. O programa serve também como um alerta, pois em nosso país, infelizmente, tudo é descartável e, com seriedade, podemos reaproveitar grande parte de nosso desperdício".
Resolvida a questão das laranjas (elas seriam recolhidas no turno vespertino), o caminhão seguiu para realizar as primeiras doações do dia em duas creches do bairro do Dique, em Santos. Em meio à comunidade carente, as duas entidades funcionavam no esquema de cooperativas, ou seja, eram financiadas e geridas pelos próprios moradores. Na Creche Comunitária Cantinho da Criança, cada mãe com criança matriculada contribui com uma mensalidade. Mesmo assim, a verba se mostra insuficiente e a doação intermediada pelo Sesc é muito bem-vinda. "Temos quarenta crianças e era uma dificuldade muito grande conseguir alimentos. Aderindo ao programa, a situação melhorou muito", explica Valdete de Moura Santos, administradora da creche. Durante as atividades do dia, enquanto as crianças já estão entretidas com as professoras, a chegada do caminhão é recebida com alegria.
Na próxima parada, a história se repete. O Centro Comunitário do Dique Universidade Aberta Creche também atende em sistema de cooperativa. Construída sobre palafitas, a casa onde funciona a entidade segue os padrões arquitetônicos do bairro, erguido sobre uma região de mangue. Observando a construção ao redor e os equipamentos disponíveis para as crianças, a situação de carência torna-se mais explícita. "Nosso maior problema está na falta de dinheiro, mas com o atendimento do Mesa Santos, não precisamos comprar frutas e nem legumes", explica Elenilde Davino de Jesus, fundadora e presidente da creche.
Os números - Quanto arrecada o itinerário do alimento O projeto Colheita Urbana funciona na cidade de São Paulo há cinco anos. O Sesc expandiu o programa para outras cidades. O Mesa Santos - Colheita Urbana é uma continuação do projeto original. Funcionando desde março deste ano, o programa já coleciona muitos recordes. Até mês passado, já haviam sido recolhidos 147.732 quilos de alimentos, o que perfaz uma média de 1.199 quilos diários. Foram 590.928 refeições complementadas, além de 1.552 visitas a instituições cadastradas, entre os 67 parceiros doadores. No período anterior, o recorde de doação ficou por conta do supermercado Makro, que cedeu, no dia 25 de agosto, 3.800 quilos de alimentos. Já a Kibon forneceu 1.108 quilos de sorvetes, no dia 12 de setembro, e a Polícia Florestal doou 424 palmitos, no dia 26 de agosto. A entidade que quiser participar pode entrar em contato com o Mesa Santos pelo telefone 0800 109171. |