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Entrevista
José Ramos Tinhorão

Postado em 01/11/2000

O historiador, pesquisador e especialista em música popular fala sobre seu novo trabalho e a transferência de seu acervo para o Instituto Moreira Salles

Qual é a de José Ramos Tinhorão? Formado em Direito, desde cedo enveredou para o jornalismo escrevendo sobre música popular brasileira urbana. Ao longo de sua carreira nas redações, se tornou um dos principais críticos musicais do país. Mas acima de tudo, Tinhorão é um pesquisador contumaz, um colecionador criterioso, e, principalmente, é um historiador preciso. Volta seus olhos para o fenômeno da musica popular brasileira com um rigor meticuloso. Agora, com o lançamento de A música popular nos romances brasileiros (Editora 34), que abrange obras dos séculos 19 e 20, ele inventa um novo Tinhorão: o crítico literário que, com a sociedade brasileira como pano de fundo, identifica as idiossincrasias dos nossos ficcionistas de ontem e de hoje quando se propõem a escrever sobre essa manifestação popular.

Quando surgiu a idéia de levantar a presença da música popular brasileira nos romances?
Um romance mostra coisas sobre pessoas que se locomovem, andam e, portanto, cantam. Às vezes, tocam ou vão a bailes de Carnaval. Para dar a cor local, o autor do romance diz que a banda está tocando e informa qual música. Só que ele não menciona a autoria das músicas porque não teve o interesse de fazer isso. Eu notei que era muito recorrente no romance urbano brasileiro a participação de alguém que canta. Por isso, procurei romances que tinham alguma citação de música brasileira. O primeiro trabalho foi pesquisar para encontrar os romances que tinham algo nesse sentido. Segundo, tive de assumir uma postura de historiador da literatura porque quando peguei aquela massa de romances na estante me perguntava: "Por onde começar?". Mais prático seria fazer por ordem cronológica. Mas ficava uma coisa meio besta ir e voltar. Foi quando eu comecei a perceber certos nexos e segui. Notei algo interessante: durante os primeiros decênios deste século, há os grandes romances - ocorre a Semana de 22, os últimos escritores com mentalidade do século 19 estão desaparecendo, os novos surgindo etc. Com tudo isso, aparece uma literatura do século 20 com características muito interessantes: um tipo de romance de escândalo, feito para vender. Romances que não tinham muito valor literário, às vezes nenhum, mas eram interessantes por serem verdadeiras reportagens.
Romances meio sensacionalistas...
Para a época, sim. Eles eram tidos como escandalosos, com uma conotação de sacanagem, mas que hoje uma menina de 12 anos pode ler sem problemas. Agrupei os autores desse tipo de romance, os quais você geralmente não encontra nas histórias da literatura. Você não encontra em Alceu Amoroso Lima, Afrânio Coutinho etc. E eu, que em teoria não faço parte da área especificamente literária, tive de me meter em história da literatura para realizar esse trabalho. Não tenho preguiça de ler e eu tenho grande parte dos livros que cito. Ou seja, não é conversa fiada. Não é citação de citação. Fiz o que, na verdade, era obrigação dos historiadores de literatura brasileira: uma releitura do romance no Brasil para saber se os autores brasileiros são apenas aqueles que José Veríssimo e Silvio Romero, no século 19, e os grandes críticos do século 20 consagraram. Será que não tem mais ninguém? Você não pode responder isso sem ter lido todos. Para isso, ou você vai aos sebos, como eu, ou vai às bibliotecas. Mas as bibliotecas brasileiras são muito pobres. O que depende do poder público é um desastre...

Dentro do panorama geral da música popular, como ela aparece no romance brasileiro? Há alguma linha entre os autores?
Há e é algo curioso. De forma geral, eles estão completamente por fora. O escritor, o romancista brasileiro, é um homem saído da classe média. Quando ele escreve sobre isso, quando o personagem dele é da classe média, ele acerta. Por exemplo, o paulista Marcos Rey, autor de Memórias de um gigolô. Todos os personagens andam por boates de São Paulo nas décadas de 40 e 50. Quando há um personagem cantando, são músicas típicas da época. Músicas "dor-de-cotovelo", músicas que tocavam no rádio etc. Ele acerta direitinho. Mas quando o escritor descreve gente do povo, fica complicado. Você descobre alguns anacronismos. O romancista brasileiro se comporta em relação ao personagem popular quase como um estrangeiro. Ele faz exotismo dentro do próprio país. É quase como se ele dissesse: "Olha que curioso o povo, olha como eles se vestem engraçado. Olha, ele anda de ônibus!". É uma coisa tão distante... Mostro isso claramente quando faço a análise de cada um em particular. O preconceito que se revela odioso em autores do século 19 e até do século 20, como Graça Aranha no Viagem maravilhosa, no qual negro nunca tem lábio, tem beiço, beiçola. O autor se trai até no uso de certas palavras: ele demonstra sua posição de superioridade. Afinal de contas, o narrador não pertence àquela classe, ele a olha de cima. Ele é o Deus das histórias, o dono dos destinos das pessoas, ele escreve o que ele quer.

Alguns textos de meados do século 19 denunciam os primórdios da incorporação de novas camadas sociais, que causam certo temor na classe dominante. Como isso aparece na música popular brasileira por meio dos romances?
Não aparece de forma clara. Esse medo não aparece exatamente no verso das músicas. Mas há sempre a figura do malandro, descrito como alguém que a qualquer momento pode fazer uma falseta. Isso acontece agora. Você cria uma sociedade injusta e surgem os condomínios fechados. Aumenta a pobreza, aumenta também o número de assaltos e você manda blindar o seu carro. Ou seja, você mora em uma prisão e anda de carro blindado com vidro fechado. O problema não é esse, mas aparece sob essa forma. A forma do temor.

Como aparece a influência da cultura estrangeira nas manifestações populares de música inseridas no romance?
Mostro no volume que logo será lançado que até o início do século a influência era européia; a partir do disco, do rádio e do cinema falado começa a surgir a influência americana a ponto de, em romances mais recentes (a partir da década de 80), o cara já escrever em inglês. A literatura reflete a realidade.

Havia, na virada dos séculos 19 e 20, escritores que anteviam a extrema dependência dos americanos? Fazia-se apologia?
Às vezes, nem exatamente apologia. É o próprio espírito da coisa que revela como os caras são integrados. A visão teórico-ideológica organizada é um pouco recente. Os caras eram integrados na ideologia sem saber que, na verdade, eles eram representantes de uma.

Eles eram ingênuos?
De certa forma, sim. O ficcionista não é um historiador que virou escritor. Porém, sem querer, ele coloca o seu ponto de vista nas histórias que escreve. Coloca suas crenças, a ideologia que tem sem saber, os preconceitos, as simpatias. Tudo isso transparece. Cabe a você ir lá, cutucar e descobrir as coisas. Daí chegar à conclusão.

O romance pode ser uma fonte segura do contexto de uma determinada época?
Pois é. Essa é uma das coisas interessantes no meu trabalho. Quando analisei os livros que havia acumulado, verifiquei uma coisa espetacular: o romance é uma fonte de informação subsidiária para o historiador de primeira categoria. E isso por uma simples razão: se você escreve um livro que não seja um conto de fadas, por exemplo um livro ambientado numa época e numa determinada sociedade, é claro que os personagens têm de agir com uma certa lógica do tempo, senão o leitor vai estranhar. Ou seja, o romance movimenta pessoas. Ele fornece um retrato da vida na época, inclusive da vida cultural. Todas as informações que dão colorido à história servem ao historiador. Mas aí cabe o meu tipo de análise: será que o autor descreveu corretamente?

Há alguns aspectos que o senhor conseguiu resgatar, por exemplo, a literatura urbana de cordel...
O cordel urbano eram os almanaques distribuídos para os bons fregueses das farmácias, no início deste século. Você vê alguns deles pelo tipo de folheto. Era meio que uma sacanagem, assinada por pseudônimos, como Rabelais. Havia um chamado Contos galantes, vendido por engraxates, esticado em um cordel. Todo mundo fala só do cordel nordestino, aquelas coisas dos cantadores, mas não percebe que existia um rico cordel urbano. Publicava-se de tudo. Por exemplo, manuais de dança de salão, palpite para jogo do bicho, interpretação de sonhos. Eram feitos em pequenas gráficas e, como havia poucas bancas de jornal, eram vendidos por engraxates e pequenos jornaleiros que perambulavam pelas ruas.

Qual foi o saldo da pesquisa para o Música Popular no Romance Brasileiro?
Descobri coisas curiosas, como o motivo pelo qual uma determinada modinha é citada em vários autores: isso é sinal que a música era muito recorrente. A amostragem me permite fazer algumas afirmações. Por exemplo: o "Gondoleiro do amor", baseado nos versos de Castro Alves.

E o senhor pôde resgatar músicas, artistas e compositores menos conhecidos?
Pois é. Aparece muito o Nelson Ferreira, que é maestro...

O Eduardo das Neves...
É. Ele era um palhaço de circo que gravou muito disco e tinha modinhas próprias. Ele aparece no romance de Lima Barreto. O personagem Ricardo Coração dos Outros, no Triste Fim de Policarpo Quaresma, que na verdade é uma caricatura de Catulo da Paraíba, refere-se ao Eduardo das Neves.

Outra coisa muito interessante é encontrar autores proscritos pela crítica...
Exatamente. Por exemplo, Lauro Palhano...

Há também o Afonso Schmidt e o Galeão Coutinho...
Ah, sim. O Galeão Coutinho escreveu O último dos morungabas. Esse é um livro muito curioso, lembra o Memórias de um gigolô, de Marcos Rey. O personagem típico do Galeão Coutinho é o sujeito que mora em um lugar pobre, com uma mulher molambenta e sem dinheiro e que some, deixa um monte de dívida e vai morar em outro lugar, vive de pequenas trapaças, querendo inventar grandes empresas. O tipo de cara que não dá sorte na vida. Ele captava essas coisas de forma muito saborosa e ninguém mais fala dele.

Mas por quê?
Cheguei à conclusão de que as pessoas convencionam que alguém não presta. Também existe o contrário. Por que houve um momento em que Zé Mauro de Vasconcelos era o autor que mais vendia? O coitado escrevia pobremente coisas como Rosinha e minha canoa, Meu pé de laranja lima. Ele era ruim. Houve um autor que vendeu tremendamente em sua época, no Brasil, chamado Humberto de Campos. Quem o lê hoje? No entanto, existem autores que não tiveram nome, mas são bons. Agora, para você descobrir que o cara foi bom, embora injustiçado no seu tempo, você tem de ler. Só que as pessoas que fazem história da literatura no Brasil têm preguiça. Elas lêem sempre os mesmos.

Como começou sua caça aos tesouros que formaram seu arquivo com centenas de livros e mais de 6 mil discos de música popular brasileira?
Há quarenta anos freqüento lugares possíveis de encontrar isso, além de colocar anúncios nos jornais me mostrando interessado em comprar esse tipo de coisa. De vez em quando alguém me escrevia dizendo que tinha algo que me interessava, às vezes era da avó do sujeito. Cheguei a sair do Rio de Janeiro em direção a Quatis, município a 125 quilômetros da cidade, por causa de uma pilha de discos de uma senhora muito simpática que ainda me deu um lanche. Mas os discos não tinham importância nenhuma... Nesse caso, não serviram de nada, mas já aconteceu o inverso. Houve lugares onde eu fui acreditando que estava atrás de uma porcaria e encontrei uma raridade. Foi na Freguesia do Ó, onde encontrei a gravação de Pé de anjo, cantada por Francisco Alves em 1919. Foi a primeira vez que ele colocou a voz em cera. Estava em um engradado de cervejas, cheio de discos e asas de barata, de um sujeito que havia sido dono de bar.

Por que o senhor decidiu transferir seu arquivo para o Instituto Moreira Salles?
Porque esse acervo todo não estava recebendo o rendimento merecido. Por exemplo, muito material que eu reuni só existe aqui ou você vai encontrar, raramente, em sebos. No Brasil não existe nada organizado. Vamos supor que uma feminista queira pesquisar sobre como se cantava a mulher no século 19 na música brasileira. Para ela fazer esse estudo, precisa ter as letras do que se cantava desde o século 19. Onde ela encontra os livrinhos que publicavam letras de música? Na Biblioteca Mário de Andrade? Na Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro? Talvez. Quem tem uma coleção desde 1874 até hoje? Eu.

Agora esse material ficará disponível a todos...
É. Antes, eu não podia abrir tudo indiscriminadamente. Olha, já me importunaram muito, sabia? Muitas pessoas, até de forma ingrata. Houve um universitário, quando eu morava na Maria Antônia, que levou dois folhetos meus alegando que iria tirar xerox e nunca mais me devolveu; perdi dois folhetinhos de cordel urbano. No Instituto Moreira Salles, meu acervo estará à disposição do público, a pessoa se identificará e não terei o constrangimento de pegar o telefone para o caso de ela não devolver. Há um autor que queria escrever sobre música caipira, até tenho um livro dele, e emprestei um monte de coisa. O sujeito não me devolvia mais. Finalmente, ele apareceu e me devolveu uma parte do que eu havia emprestado. Ele disse que era só aquilo e eu aceitei. O que se perdeu, se perdeu.

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