Postado em 01/09/1999
JORGE LEÃO TEIXEIRA
Na cripta do monumento aos mortos da Segunda Guerra Mundial, erguido no Parque do Flamengo, no Rio de Janeiro, estão inscritos os nomes de 559 tripulantes de embarcações da marinha mercante brasileira, mortos no cumprimento do dever. Ali faltam, porém, os nomes dos 502 passageiros desaparecidos no mar, que viajavam em navios afundados por torpedeamento, colisão ou outros acidentes, em decorrência dos ataques e ameaças de submarinos alemães. No total, foram 1.061 vítimas, mais do dobro das perdas sofridas pela Força Expedicionária Brasileira na Itália.
É preciso, também, não esquecer a tragédia daqueles que sobreviveram e foram testemunhas de quadros que jamais se apagaram de suas mentes, mas que apesar dessa experiência terrível voltavam a embarcar em outro navio, amparados por um misto de força moral, orgulho ferido e autodisciplina. Houve gente que sobreviveu a mais de um torpedeamento e continuou navegando até o fim do conflito, vencendo os momentos de medo e dúvida, expectativa e angústia, inevitáveis na rotina dos comboios ou nas incertezas daqueles que eram obrigados a navegar desgarrados daquela proteção.
A marinha mercante brasileira no início do último conflito era integrada, em sua maioria, por velhas embarcações, muitas das quais lançadas ao mar antes da Primeira Guerra Mundial. O Lloyd Brasileiro tinha alguns navios mistos mais modernos, para cargas e passageiros. A Companhia de Navegação Costeira, do empresário Henrique Lage, possuía a frota dos "Itas" e "Aras", navios franceses para passageiros, com propulsão a diesel, de padrão de luxo. Além dessas empresas, a Companhia Comércio e Navegação e outros pequenos armadores exploravam o transporte de cargas entre os portos nacionais, passando a navegar para os Estados Unidos e a África com o advento da guerra.
Nesses navios obsoletos, as tripulações não desfrutavam do conforto oferecido pelos modernos barcos mercantes, sofrendo principalmente com o frio ou com o calor tórrido na casa de máquinas, onde penavam carvoeiros e foguistas. O pessoal das máquinas, além disso, em caso de emergência, precisava subir três escadas até o convés, devendo o oficial encarregado, antes de subir, parar a máquina sob a sua responsabilidade, para que a hélice não colhesse náufragos ou baleeiras em caso de torpedeamento.
Outros heróis eram os telegrafistas, que, ao enviar pedidos de socorro, arriscavam-se a não ter acesso às baleeiras e expunham-se ao canhoneio e metralha dos submarinos contra suas cabinas, a fim de impedir a transmissão de qualquer informação sobre a posição do submersível.
Tensão permanente
A organização de comboios, embora aliviasse os riscos das viagens sem escolta, contando com a própria sorte, como acontecia com os navios brasileiros que se dirigiam aos Estados Unidos até meados de 1942, não implicava segurança absoluta ou eliminação das tensões com as quais conviviam as tripulações.
Uma das ameaças era a navegação em noites escuras, que se por um lado diminuía a possibilidade de os submarinos avistarem o comboio, por outro favorecia os abalroamentos, pois os barcos navegavam com todas as luzes externas apagadas. (A frota mercante brasileira perdeu por abalroamento em comboios seis embarcações, além de uma outra que bateu numa pedra submersa ao fugir de um submarino.)
Um episódio curioso que ocorreu com o navio "França M", em fevereiro de 1944, ilustra esses perigos: viajando em sentido contrário a um comboio, a embarcação nele penetrou, provocando confusão e chegando a ser atacada pela corveta "Filipe Camarão", que a confundiu com um submarino.
Nas primeiras viagens dos comboios, quando os navios da escolta desconfiavam da presença de algum submarino, lançavam bombas de profundidade, que ao explodir dentro do mar levantavam grandes colunas d’água, fazendo com que as embarcações mais próximas estremecessem violentamente. A princípio assustadas, as tripulações corriam para as baleeiras, prontas para arriá-las caso os barcos fossem atingidos pelas bombas. Com o passar do tempo, porém, acostumaram-se a essas explosões, que se incorporaram à rotina de risco dos comboios.
As horas de maior suspense chegavam com o crepúsculo e o alvorecer, aliados dos submarinos, que conseguiam divisar os navios, enquanto seus afilados periscópios tornavam-se praticamente invisíveis aos olhos dos observadores.
Tecnologia
O desenrolar da guerra assistiu a uma corrida tecnológica no mar entre Estados Unidos, Inglaterra e Alemanha; os Aliados desenvolvendo equipamentos cada vez mais eficientes para proteção aos comboios e os alemães aperfeiçoando submersíveis e torpedos para superar os mecanismos de proteção dos inimigos.
Os números traduzem o que foi essa epopéia nos mares: os alemães afundaram 2.603 navios mercantes e 175 navios de guerra, usando 1.162 submarinos, dos quais 784 ficaram fora de combate por motivos vários, tendo perdido 28 mil homens que tripulavam os seus submersíveis.
Os comboios também não conseguiam evitar um inimigo insidioso: os informantes da chamada "quinta-coluna", que, até terem suas atividades desmanteladas, forneciam detalhes sobre o movimento de navios nos portos brasileiros, principalmente no nordeste. (O então secretário de Segurança de Pernambuco, Etelvino Lins, chegou a prender no Recife um espião alemão que transmitia informações sobre a saída de navios.) Navegar era preciso, mas sempre desconfiando, com navios pintados de cinza, camuflados, suspeitando-se inclusive de navios supostamente neutros (espanhóis, por exemplo), que enviavam mensagens pelo rádio para orientar os submarinos alemães.
Ambigüidade
A posição do governo brasileiro durante a evolução da Segunda Guerra Mundial foi ambígua, retratando o choque de opiniões no círculo mais próximo ao presidente Vargas: enquanto os generais Gaspar Dutra e Góes Monteiro demonstravam velada simpatia para com a Alemanha, o chanceler Osvaldo Aranha comandava a corrente simpática aos Aliados.
Em meio ao choque dessas duas correntes, Getúlio Vargas agia como um poder moderador, ora dando linha a um grupo, ora ao outro, a fim de salvaguardar uma difícil neutralidade brasileira, e tentando tirar vantagens políticas e econômicas dos dois lados em conflito. Principalmente, procurando não abrir a guarda do Estado Novo para os grupos de postura ideológica democrática, que através do combate ao nazi-fascismo poderiam tentar minar o governo ditatorial brasileiro.
O rumo dos acontecimentos internacionais, entretanto, com o ataque a Pearl Harbour, começou a fazer a balança pender para o alinhamento com os Estados Unidos, embora continuasse a resistência de Góes e Dutra, mesmo após a recomendação da III Reunião de Consulta dos Ministros das Relações Exteriores, realizada no Rio de Janeiro, em janeiro de 1942, para que os países do continente americano rompessem relações com a Alemanha, Itália e Japão.
Góes, em carta reservada a Vargas, alegaria que o país não estava aparelhado em suas forças armadas para a defesa do território nacional, advertência ratificada por Dutra, que lembrou a Vargas existir "largo espaço entre o querer e o poder", recomendando que, sem repudiar compromissos, o país "não se aventurasse quixotescamente a uma luta provocada".
Os adeptos do Eixo espalhavam notícias alarmantes, anunciando o bombardeamento de cidades da costa brasileira por submarinos e navios de guerra alemães, caso o Brasil rompesse relações diplomáticas com a Alemanha e a Itália. Mas a 28 de janeiro de 1942, Vargas decreta o rompimento.
A resposta
Até então, a navegação mercante brasileira sofrera apenas um ataque aéreo alemão – quando o "Taubaté" foi metralhado entre Chipre e Alexandria, em março de 1941, tendo um tripulante morto – além dos misteriosos desaparecimentos dos navios "Santa Clara", no mesmo mês, em viagem inaugural de Norfolk para o Rio, e do "Cabedelo", ambos atribuídos a torpedeamentos.
A partir de fevereiro de 1942, porém, começaram as ações intimidativas no mar, com o torpedeamento do "Buarque" na costa americana, seguido do canhoneamento também na costa americana do "Olinda", afundado pelo U-432. Em março, foi a vez do "Arabutan", torpedeado pelo U-155, e do "Cairu", afundado pelo U-94. Em maio, próximo a Trinidad, soçobrava o "Parnaíba", torpedeado e canhoneado, seguido pelo "Comandante Lira", na costa do Ceará, afundado pelo submarino italiano "Barbarico".
Os ataques se sucedem: o U-502 afunda o "Gonçalves Dias", o U-156 torpedeia o "Alegrete" no Caribe, o U-203 bota a pique o "Pedrinhas" nas Antilhas, o "Tamandaré" é afundado pelo submarino comandado pelo capitão Markworth (freqüentador do Café Belas-Artes, no Rio, que falava português fluentemente e interrogou o comando da embarcação brasileira). Em julho é a vez do "Barbacena", atingido por dois torpedos do U-155, que no mesmo dia afunda o "Piave", tendo o submarino alemão canhoneado uma baleeira com sobreviventes do "Barbacena", num requinte de crueldade.
O dia 15 de agosto é negro. Entre Salvador e Maceió, o "Baependi" é afundado pelo U-507, ocasionando a morte de 55 tripulantes e 235 passageiros. O mesmo U-507 afunda também o "Araraquara" e, no dia seguinte, torpedeia o navio de passageiros "Anibal Benevolo", entre Salvador e Aracaju. A faina sinistra prossegue no dia 17, quando outro navio de passageiros, o "Itagiba", é torpedeado ao sul da capital baiana. E 48 horas depois, antes de regressar à Alemanha, o U-507 despediu-se do litoral brasileiro afundando a barcaça "Jacira", de 80 toneladas, tripulada por apenas seis homens.
Em nenhum dos cinco ataques do U-507 foi dada oportunidade e tempo para os passageiros e tripulantes se salvarem nas baleeiras, o que provocou um grande número de mortes. Registre-se que os navios viajavam iluminados, como em tempos de paz, ao longo da costa brasileira.
Revolta
A seqüência de torpedeamentos de embarcações de passageiros incendiou uma revolta que já atiçava a opinião pública, que no mês de julho, por ocasião de uma passeata da União Nacional de Estudantes, proibida por Filinto Müller, conseguira criar uma grave crise ministerial, pois o ministro interino da Justiça, Vasco Leitão da Cunha, entrara em choque com o poderoso chefe de polícia, Filinto Müller, autorizando a passeata e chegando a prendê-lo por desacato a autoridade. Vasco demitiu-se, mas a crise custou alguns cargos da ala governamental simpática à Alemanha: Filinto, Lourival Fontes (chefe da Casa Civil) e Francisco Campos deixaram o governo, o que fortaleceu Osvaldo Aranha e seus aliados.
A situação política tornou-se tensa, com manifestações antinazi-fascistas em todo o país. Um grande comício no centro do Rio leva Aranha, tribuno popular excepcional, a levantar o povo, que marcha em massa até o Palácio Guanabara, munido de archotes, exigindo a declaração de guerra aos países do Eixo. Vargas, sentindo que não podia postergar a decisão sob pena de minar as bases do Estado Novo, decidiu assumir a liderança da reação nacional e declarou guerra a Alemanha, Itália e Japão no dia 31 de agosto de 1942.
Última etapa
Com a entrada do Brasil na guerra e o incremento da ajuda americana, melhoraram as condições de apoio e segurança para a navegação mercante, tornando-se nossos navios mais bem artilhados, os comboios mais eficientes e a marinha de guerra brasileira mais bem equipada. Por outro lado, acirrava-se a guerra submarina do inimigo, que prosseguiria, implacável, até o último dia do conflito, sem o desânimo que tomou conta do seu exército no final da guerra.
Muitos náufragos de navios mercantes nacionais eram interrogados por comandantes e tripulantes dos submarinos alemães, interessados nas viagens de outras embarcações e nas cargas levadas para os Estados Unidos.
Os torpedeamentos prosseguiram: em setembro de 1942, um comboio foi atacado próximo ao rio Pará, sendo afundados o "Osório" e o "Lages", enquanto o "Antomico" era torpedeado, dias depois, na costa da Guiana Francesa. O pequeno navio, desarmado e sem estação telegráfica, teve os náufragos metralhados covardemente pelo U-516. Em novembro, a caminho da África do Sul, o "Porto Alegre" foi afundado, o mesmo acontecendo com o "Apalóide", que seguia para Nova York.
Em fevereiro de 1943, o "Brasilóide" foi torpedeado na costa baiana. No mês seguinte, a Quarta Esquadra Americana informava que a costa brasileira já era toda navegável, em segurança, o que não impediu o torpedeamento do "Afonso Pena", ao largo de Maceió, em março, pelo submarino italiano "Barbarico", que canhoneou a cabine radiotelegráfica e matou o seu indefeso ocupante. Em junho seria a vez do "Tutóia", no litoral paulista. E no mês seguinte a do "Pelotaslóide", a caminho de Belém, e do "Bagé", na costa nordestina.
As últimas baixas foram registradas nos meses de setembro e outubro de 1943, quando o "Itapagé", entre Recife e Salvador, e o "Campos", entre Santos e Rio de Janeiro, foram afundados. O esforço para manter o abastecimento no país, que dependia então vitalmente da navegação de cabotagem, continuou enorme, embora a perda de 31 navios criasse grandes dificuldades, repercutindo com a escassez de muitos produtos. Além disso, a programação dos comboios, visando o máximo de segurança na partida dos navios, contribuía para prolongar viagens e escalas.
Heroísmo
Foram muitos os atos de bravura e estoicismo das tripulações dos nossos navios mercantes. Infelizmente é pequena a literatura a esse respeito, pois um detalhado livro do almirante Saldanha da Gama, fruto inclusive de pesquisas feitas na Europa no pós-guerra, A Marinha do Brasil na Segunda Guerra Mundial (Capemi Editora, 1982), tornou-se uma obra rara. Em 1993, porém, a editora publicou um importante livro, escrito por Herbert Campbell, ex-piloto da marinha mercante que jovem ainda passou a guerra no mar, intitulado A marinha mercante na Segunda Guerra, relato que conjuga a informação precisa com o dom da narrativa, e que nos orientou ao escrever esta reportagem.
Entre os fatos relevantes contidos nesse livro, selecionamos um que retrata o desprendimento heróico dessa brava gente: o "Cairu" era comandado pelo capitão-de-longo-curso José Moreira Pequeno, o qual, doente, pedira em Belém para ser substituído, mas ao saber do torpedeamento do "Buarque" achou injusto passar o comando a um colega em circunstâncias tão perigosas, seguindo viagem, bastante enfermo. Após o torpedeamento do "Cairu", na baleeira apinhada, sob frio intenso, seu estado de saúde piorou. Ao amanhecer, descobriu-se que ele desaparecera silenciosamente, preferindo escolher o oceano como túmulo para não causar embaraços aos demais sobreviventes. Muitos deles morreriam congelados nas baleeiras, que foram dar à costa americana, exceto uma delas, recolhida pelo navio "Titânia", que salvou todos os seus ocupantes.
Patrulhas
Não foi fácil a tarefa da marinha de guerra, repentinamente obrigada a patrulhar a grande costa brasileira, em regime de guerra, procurando garantir as rotas dos navios mercantes para que o país não parasse. Os encouraçados "São Paulo" e "Minas Gerais" foram deslocados respectivamente para Recife e Salvador, servindo como fortalezas para revidar qualquer ataque inimigo. E comboios foram sendo organizados, primeiro em nosso litoral, depois até Trinidad.
Enquanto treinava recursos humanos e modernizava-se, ocupando inclusive a ilha de Trindade, a marinha improvisava para dar cabo de suas missões, com os "caça-paus" (navios de madeira, com 33 metros de comprimento, cuja guarnição só comia enlatados e tinha água racionada), substituídos mais tarde pelos "caça-ferros", tipo G ("Guaporé", "Gurupi", etc.), que possuíam melhores condições para a caça aos submersíveis. E suas antigas corvetas, a partir de 1943, receberam o reforço de oito destróieres americanos, o que permitiu maior eficiência no patrulhamento.
A marinha de guerra também sofreu grandes baixas. Em julho de 1944 uma violenta volta do mar emborcou a corveta "Camaquã", no litoral pernambucano, provocando a morte de 33 homens, inclusive o seu comandante, o capitão-de-corveta Gastão Monteiro Moutinho. Dois anos depois, o "Vital de Oliveira" foi torpedeado entre Vitória e o Rio de Janeiro, tendo morrido 99 homens de sua guarnição.
A tragédia maior, sobretudo, ocorreria com a guerra já encerrada, a 4 de julho de 1945, com o cruzador "Bahia", o qual recebera equipamentos eletrônicos para missão de apoio aos aviões americanos que cruzavam o Atlântico, vindos da África. A 500 quilômetros de Fernando de Noronha, um disparo casual de metralhadora atingiu uma bomba de profundidade, colocada na ré, para uso contra submarinos, provocando uma terrível explosão e destruindo toda a popa do vaso de guerra, com perda total das baleeiras e causando o rápido afundamento da belonave. Quase 300 homens que escaparam da explosão comprimiram-se em dezessete balsas, com água até a cintura, enquanto outros agarravam-se a destroços. (Cada balsa tinha apenas um reservatório de água, e esta acabara contaminada pela água do mar.) Salvaram-se apenas 36 homens da guarnição, encontrados inconscientes. Pereceram 337, inclusive o capitão-de-fragata Garcia D’Ávila Pires e Albuquerque, que comandava o "Bahia".
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