Postado em 01/01/2001
Ele fundou o Teatro Oficina junto com Zé Celso. Ela surgiu nos palcos do Teatro Brasileiro de Comédia, o TBC. Ambos são hoje ícones da dramaturgia. Em entrevista exclusiva, Renato Borghi e Tônia Carrero falam de sua paixão pelo tablado e do prazer de trabalharem juntos em Jardim das Cerejeiras, peça do dramaturgo russo Anton Tchekhov que está em cartaz no Teatro do Sesc Vila Mariana.
O Renato já tinha feito Tio Vania, também de Tchekhov. E você, Tônia?
Tônia - É a primeira vez. O Renato me perguntou o que eu ainda gostaria de fazer no teatro e eu disse: Tchekhov. Pensamos no que poderia ser. A Gaivota não dava, a Fernanda Montenegro estava fazendo na época. Pensamos, então, no Jardim das Cerejeiras.
Renato - Eu já fiz As Três Irmãs, foi minha última peça antes de sair do Teatro Oficina; em 1998 montei Tio Vânia, com direção do Elcio Nogueira Seixas, e agora Jardim das Cerejeiras, novamente com direção do Elcio.
O que mais atrai vocês no trabalho de Tchekhov?
Tônia - Para mim, ele é um novo Shakespeare. Eu digo isso tranqüilamente, sabendo o que estou falando. Eu só fiz duas vezes Shakespeare, e mal. Mas já vi muito. Quanto a Tchekhov, espero fazê-lo bem, porque ele está mais perto de nós. Os russos têm muito da nossa sensibilidade. O seu modo de ser, de se apiedar, querer bem ao outro e, também, aquela mania de ter escravos a sua volta. Essa escravidão que tivemos (e que tanto nos entristeceu) fez a mesma coisa com a vida dos russos. Eu sou uma apaixonada por Tchekhov e espero fazer outras peças dele.
Renato - Peter Brook disse uma coisa muito bonita que eu sempre repito quando me perguntam isso. Ele dizia: "Quando você encontra uma peça com trinta personagens e todos eles têm um universo, suas razões e seu mundo, nenhum deles é passível de julgamento porque são todos contraditórios, como na vida somos todos, esse autor é Shakespeare. Quando você encontra uma peça onde se tem doze personagens, quinze, oito ou nove, mas que todos eles são gente até o fim, absolutamente complexos, com universos individuais muito bem defendidos, uma peça na qual você percebe que o autor está presente na cabeça de cada personagem, isso é Tchekhov". Realmente, ele cria um mundo de pessoas concretas, existentes, vivas, contraditórias, e se preocupa muito pouco com a grandiloqüência de ganchos de novela. No trabalho dele, a vida transcorre no palco.
O texto conta a história de uma família que era dona de um imenso cerejal e depois perde tudo e se vê obrigada a vender a propriedade para encarar uma nova realidade bem no momento da queda do último czar russo. Um momento de transição política no país. O que um enredo desse pode dizer ao público brasileiro?
Tônia - A peça mostra pessoas de uma classe social e que nunca lutaram pela vida e nem sabem fazê-lo. Isso está acontecendo no Brasil hoje. Gente despreparada para lutar pelo pão de cada dia. Só no "venha a nós". É muito engraçado você ver grandes famílias que deixavam heranças, latifundiários mesmo, e que de repente perderam tudo. O que é isso? Falta de previsão? Não. Isso é falta de capacidade de lutar pela vida. Eu mesmo tenho amigas que são frágeis, que não fazem idéia do que é a necessidade. Elas acham que dinheiro é indispensável. Eu estava na casa de férias de uma pessoa aqui de São Paulo e todos os anos ele convidava também uma outra pessoa, um rapaz, que era uma figura divertidíssima. Nós sempre o aguardávamos. Certa vez, numa das férias, eu não o encontrei lá. Perguntei por ele e causei uma certa comoção. Não se podia falar, mas ele tinha perdido a fortuna e isso era feio de se dizer. Em vez da gente lamentar um fato desses mas ficar feliz por ele ainda estar entre nós, os amigos, e falar para ele "puxa, rapaz, que baque da vida você levou!", as pessoas já não o convidavam para mais nada e não se toca mais no nome dele. Os paulistas sempre agiram muito assim. Essa gente milionária, essa casta. Ou seja, pessoas que constituem uma certa nobreza russa. Uma nobreza requintada, sofisticada, extravagante, gente que se punha em Paris para gastar tudo. É muito bonito poder denunciar isso. Não se pode mais agir assim na vida.
Renato - De fato, é um texto atualíssimo. Nós estamos falando de valores universais.
A idéia de montar Jardim das Cerejeiras foi do Renato?
Renato - É uma idéia do meu núcleo que se chama Teatro Promíscuo. Na verdade, ela se chama Cia. Renato Borghi e Produções Artísticas, mas tem esse apelido artístico de Promíscuo. Isso porque se trata de um núcleo que pretende "transar" com todas as tendências do teatro.
E quais foram as dificuldades para viabilizar uma produção assim tão suntuosa?
Renato - É uma produção cara. Eu ficaria grato se fosse possível citar o patrocínio da Petrobrás e o apoio da Vasp, Eletrobrás, L'Hotel, Cadis Tecnologia, Leitor Recortes e do Sesc/SP. Sem essa gente toda isso não seria possível. Trata-se de uma produção que se você somar o dinheiro colocado pelas empresas patrocinadoras com uma parte do capital que foi minha e com os apoios e permutas, chega-se a uma cifra de quase um milhão de reais.
Há uma diversidade muito grande de gerações no palco. Desde atores mais jovens até o Roger Avanzi, o Palhaço Picolino, que faz o mordomo Firs na peça. Como é para vocês, atores, lidar com isso?
Tônia - É uma coisa tão boa estar cercada de gente jovem! Para os próprios jovens é normal, é a sua gente, a sua geração. Mas você não sabe o que é para uma bisavó ter jovens colegas que me tratam como se eu fosse exatamente igual a eles. Isso é uma prova de vitalidade, de honestidade profissional e de respeito. E quanto mais respeito a gente tem pela profissão, mais respeito a gente tem por qualquer idade. Aliás, eu nem quero mais trabalhar com a minha geração. Não digo meus colegas. Eles são ótimos. O Abraão Farc, por exemplo, que faz um amigo da família na peça, é talvez o melhor ator com quem eu tenha convivido. E ele é da minha geração. Com o Abraão dá gosto de trabalhar. Às vezes dá uns desgostos porque ele quer saber de tudo. Você não faz idéia de quantas vezes ele pergunta a mesma coisa. A profissão de ator para ele é quase uma doença. É algo sério. Eu posso viver fora dela, ele não. Ele respira a personagem que faz. É muito comovente e bom trabalhar com ele.
Renato - Foi como eu disse antes, a proposta da minha companhia de teatro é misturar. A gente juntou a experiência, a beleza e o amor ao teatro de Tônia Carrero com um diretor jovem como é o Elcio Nogueira Seixas, juntamente com atores da nova geração como o Milhem Cortaz e a Ana Kutner, filha do Paulo José e da Dina Sfat, a Beth Goulart, que é um pouco mais experimentada e já tem uma carreira dentro dessa profissão, e outros atores que são de outras tendências etc. Nós estamos misturando cabeças e sensibilidades dentro de uma coisa que é o que o Tchekhov queria. Ou seja, que as coisas fossem vivas, personalidades atuantes e não bonecos recitando um texto.
Aliás, um diretor bem jovem, ele tem apenas 28 anos. Como é ser dirigida por um rapaz tão jovem, Tônia?
Tônia - É essa que é a graça. A gente troca figurinhas com o maior prazer. E troca mesmo! Eu desacato, discuto, tudo sem cerimônia. Gente jovem permite isso. Eles lhe dão essa chance.
E sobre o personagens de vocês, o Gaief e a Lhuba?
Tônia - A Lhuba não é uma pessoa apenas frágil, ela é uma vivaldina também. Ela procura se safar do jeito que pode. É uma pobre coitada. Uma linda pobre coitada. Desfrutável. O irmão dela diz: "A família não pode ficar contente com o comportamento dela, ela se comporta muito mal socialmente, ela é imoral!". A filha repreende. E ele se confunde todo e pede desculpas.
Renato - O Gaief é uma personagem que está completamente perdido com a venda do cerejal. Ele não consegue tomar nenhuma atitude que salve a propriedade deles. Vive fazendo discursos inúteis e comendo balinhas.
É a primeira vez que vocês trabalham juntos. Como está sendo?
Renato - Adorável. A Tônia é muito séria, domina a ciência da palavra como ninguém. Ela não só faz a parte. De vez em quando, dá uns arrepios nela e ela começa a falar para os jovens no palco o que eles deveriam fazer. E eles adoram. Agradecem. É uma loucura. Quando ela passou por aqui, em 1965, viu Pequenos Burgueses, que estava sendo encenada no Teatro Oficina, e disse para a gente levar a peça ao Rio de Janeiro. Eu não podia. Não era conhecido no Rio, não tinha dinheiro para alugar teatro lá e não tinha como bancar. Ela disse que bancaria no teatro Maison de France, nos contrataria, pagaria nossos salários e depois a gente dividiria o lucro. Foi um sucesso estrondoso, isso lançou o Oficina para sempre para o Brasil inteiro. Engraçado foi que o Zé Celso estava fora do país, numa bolsa de estudos na Europa, e quando ele voltou era uma celebridade.
Tônia - É engraçado que eu faça a irmã de Renato na peça porque eu nos acho muito parecidos. Talvez não fisicamente, mas temos a mesma vontade de fazer coisas lindas, de tornar o teatro um divertimento profundamente educativo. E é assim que deve ser. Quem entra deve sair enriquecido de idéias, além de ter passado boas horas junto conosco.
E como você encara o ofício de atriz?
Tônia - Eu tenho a dizer que é muito raro você ter exata certeza daquilo que se quer. E eu, cinqüenta anos depois, ainda quero ser atriz. Sinto que acertei em cheio na minha escolha. Penso que seria uma maravilha se ninguém trabalhasse a contragosto. Não seria nem trabalho, seria prazer com dinheiro. Lembro-me que uma vez me apaixonei por um galã de novela e fui convidada para trabalhar com ele. Para a cena, eu tinha de beijá-lo. Disse "nossa, e ainda me pagam para isso!".
E para você, Renato?
Renato - A realidade do teatro mudou completamente. Na época do Oficina, eu estava na porta do teatro e me lembrava que tinha de colocar o anúncio da peça no jornal. Ia até o Estadão, que ficava onde hoje é o Diário Popular, e pronto. Com o equivalente a vinte reais estava feita a divulgação. Hoje em dia a mídia custa mais caro que montar o próprio espetáculo. Antigamente, a gente produziria um espetáculo como o Jardim das Cerejeiras com uma quinta parte do dinheiro que você é obrigado a aplicar hoje.
Mas parece estar voltando ao teatro a tradição de grandes e belas montagens, cheias de atores...
Renato - ... e outras montagens com qualidade de interpretação, como a peça de Paulo Autran. Ou o Boca de Ouro montado pelo Zé Celso. Eu acho que o teatro está sim recuperando a qualidade e a diversidade, a coragem de fazer coisas fora do padrãozinho do qual a gente viveu escravo, de 1985 a 1995, que é uma hora e meia de uma coisinha bem leve, bem cortadinha e pequenininha... Aliás, nem uma hora e meia, bem uma hora e vinte porque a platéia se cansa e ela ainda tinha de ir para casa antes de comer uma pizza. Espero que esse período tenha desaparecido para sempre, porque foi horrível.
Tônia - Afinal, é no teatro que se tem a oportunidade, por exemplo, de usar palavras que normalmente nunca falamos. E com isso podemos passar para a mocidade um novo vocabulário. Por exemplo, minha personagem usa muito o termo "inconcebível". Não se usa mais isso. E é uma palavra fantástica. Eu gosto também de trabalhar na tradução. Nós tivemos um tradutor maravilhoso, o Vadim Nikitin, um amigo do diretor. Ele fez questão da minha colaboração e eu adorei.
E teatro como Rei Lear e Jardim das Cerejeiras deve atrair bastante o público pela diversidade de personagens, com atores contracenando e tudo mais...
Renato - Exatamente. De repente, você vê o Rei Lear cheio de atores. O Jardim tem doze atores em cena. No Jardim das Cerejeiras, a platéia encontra um grupo de pessoas vivendo problemas que todos enfrentam em suas vidas. Uma metáfora que se aplica a muitas outras perspectivas de vida. Vão ver a própria vida transcorrendo no palco. Vão ver pessoas extremamente sensíveis e belas numa discussão profunda sobre os valores da vida. É uma peça sobre a humanidade, por isso continua universal.
Tônia - A minha esperança é que o nosso espetáculo seja tão bom que obrigue até Sábato Magaldi a escrever sobre ele. E eu espero que isso aconteça agora. Não só por mim, mas pelo grupo, pela trupe toda a favor do espetáculo. Pessoas que lutaram muito por ele. Fazer essa peça está sendo maravilhoso para mim também porque tenho o prazer de trabalhar com filhas de duas grandes amigas minhas: Ana Kutner, filha de Dina Sfat, e Beth Goulart, filha de Nicete Bruno.