Postado em 01/01/2001
Foi no interior do Brasil que a serpente ofereceu a Eva um suculento maracujá
Em reunião do Conselho de Economia, Sociologia e Política da FCESP no dia 19 de outubro de 2000, Hernâni Donato falou sobre o mito do Paraíso brasileiro.
HERNÂNI DONATO – Nesta palestra quero abordar ângulo não coberto pelas comemorações oficiais e não exaurido pela mídia nestes meses dos 500 anos do achamento do Brasil. Não se trata de novidade nem de ficção. Apenas é pouco divulgada essa visão paradisíaca do país, hoje visto como, no mínimo, Purgatório. Alguns autores incursionaram por esse Jardim, desde Gândavo e frei Vicente até Sérgio Buarque de Holanda, sendo este o que mais se demorou nessa expedição.
Mas, ainda que sustentada por tão respeitáveis abonadores, essa proposta resulta tão impactante – para não dizer absurda, maluca de todo – que me imponho invocar, mais do que um aval literário, uma vontade que significou sacrifício de vida.
Por isso, nesta linda manhã de 21 de junho de 1774, nesta bela cidade de Lisboa, convido as senhoras e os senhores para uma visita pouco agradável, porém bastante convincente. Vamos descer ao cárcere da Inquisição, a esta cela onde está sendo vestido para a morte o réu de nome Pedro de Rates Hanequim. Nesta manhã e pela tarde deste dia ele será levado à Ribeira e afogado com a observância de todo o ritual próprio. Depois de afogado será enforcado, e enforcado terá o corpo consumido na fogueira. Ao fim do dia as cinzas serão esparsas na foz do Tejo. Nada deverá sobrar dele, que, preso em 1771, recusou teimosamente o perdão que lhe ofereciam em troca da renúncia às idéias que propagava.
De pronto irrompe a pergunta, perplexa, assustada: por que tamanha dureza do poder real? Qual o crime do obstinado Hanequim? Foi o de ter afirmado que o Paraíso Terrestre não fora extinto quando da expulsão de Eva e de Adão, porém ocultado no interior do Brasil à espera de homens que pela sua virtude e coragem o localizassem. A afirmativa de Pedro de Rates foi considerada ameaça religiosa e política para as instituições da época. Religiosa porque contrariava a Bíblia; política porque o povo que mantinha sólido o império nas duas margens do Atlântico tenderia a entender que, se Deus tivesse privilegiado este lado do oceano, estaria indicando qual delas a mais importante. Com isso colocaria o Brasil acima da Metrópole. E isso Portugal não podia tolerar. De fato, Pedro de Rates meteu-se numa conjura para aclamar o infante Manuel rei do Brasil, o que independentizaria o país uns 80 anos antes do grito de Pedro I no Ipiranga. A conspirata foi desarticulada e seus participantes, aprisionados. Ela nos serve como prova de quanto Hanequim – filho de holandês de Roterdã – amava o Brasil, onde viveu 26 anos nas montanhas de Minas.
O poder real não poderia tolerar a convocação de um rei para o Brasil mesmo que escolhido no centro da dinastia. O poder inquisitorial não poderia aceitar as alterações que Hanequim introduzia na Bíblia. Condená-lo, alegando razões políticas, tornar-se-ia perigoso para a própria política, pois, ainda que pelo ângulo negativo, magnificava a importância do Brasil. Mais aceitável pela opinião pública era condená-lo como herético. Não custou aos inquisidores elencarem culpas suficientes. Pois ele afirmava também que a Trindade, Nossa Senhora, Jesus e os anjos, no céu, tinham corpo material. Um tipo de material, digamos, espiritualizado, mas sempre material. Pior ainda, insistia em que Deus Pai não participara da criação do mundo, apenas assistira os trabalhos de Deus Filho e Deus Espírito Santo. O povo foi, pois, informado de que Hanequim fora condenado por razões de fé. Nada de política colonial. Execução que aconteceu a 21 de junho de 1774.
Em resumo, ele afirmava, primeiro, que o Paraíso continuava a existir, a Árvore do Bem e do Mal era uma figueira nativa, os rios Amazonas e São Francisco eram dois dos quatro rios que, segundo a Bíblia, limitavam e defendiam o território do Paraíso e ambos nasciam da fonte da vida jorrante no interior brasileiro – projetada nos séculos futuros como a Fonte da Juventude e procuradíssima –, e, segundo, que Adão fora criado com barro brasileiro e só em adulto é que se dirigira a Jerusalém, atravessando o oceano a pé enxuto. Na Bahia, e em vários outros sítios, Adão deixara, à moda de assinatura, marcas de suas pisadas.
Porém, Hanequim não criara um núcleo de teoria. Apenas ecoara um acreditar secular. Secular no tocante ao Brasil. Milenar no referente à permanência do Jardim do Éden. Talvez tenha sido esse o acreditar mais consolador para os que esperavam a felicidade na terra, o mais fertilizador da produção literária erudita e popular e o mais encorajador de viagens e aventuras. Houve, mesmo, um largo e fértil ciclo de histórias da procura do Paraíso, do qual é particularmente clássica em nossa língua a narrativa As Viagens do Amaro. A confiança foi assinalada em textos, aqui e ali, por quase toda a cristandade. Imaginava-se um Jardim onde toda matéria se faria gozo espiritual, em meio à música angélica, tons celestiais, consolações inefáveis.
No século 14 essa espiritualidade começou a ceder espaço a certos gozos materiais aceitáveis: comidas, bebidas... Ao redor do ano 1320 apareceu o livro De Ave Phenix, que convulsionou aquela imagem do Paraíso introduzindo nele gozos pagãos. Seu autor, Lactâncio (Firmianus Lactantius), merecera ser chamado o Cícero Cristão, por sua obra Da Formação do Homem. Era, pois, um especialista. Haveria delícias demais naquele Éden, o que provocou mal-estar entre o clero. Especialmente por anunciar a abolição da morte para todos os que tomassem da água da fonte que manava do Jardim.
Bem, dirão as senhoras e os senhores que, embora comovente, o empenho de Pedro de Rates Hanequim é pouco para que sua tese mereça a atenção de, por exemplo, gente do padrão daquela aqui reunida. Devo e quero atender a esse justo reclamo. Vamos pois a mais defensores da mesma. Convoco em primeiro lugar dom Antonio León Pinello.
Pinello mereceu, por suas habilitações, ser conselheiro real de Castela, cronista-mor, recompilador das leis das Índias. Destacou-se como historiador, jurista, numismata e por ser considerado um dos maiores bibliófilos europeus, famoso também por sua coleção de antiguidades.
Pois essa personalidade tão ocupada, tão solicitada, dedicou boa parte de sua vida no justificar a teoria de que Adão fora sul-americano, sendo o Amazonas, e não o Nilo, conforme então se acreditava na Europa, um dos limites do Paraíso ocultado.
Pinello escreveu cinco livros, totalizando 88 capítulos que somam 838 folhas, todas bem conservadas na Biblioteca Real de Madri. E mais 930 páginas manuscritas. Para nós, é principal entre as cinco obras aquela intitulada El Paraíso en el Nuevo Mundo.
Afirmou que Deus fez Adão com barro sul-americano – basta ver, argumentou, que o subcontinente tem a forma de um coração; que o maracujá e não a maçã é que encantou Eva e perdeu Adão; que somente as madeiras das matas do continente poderiam ter dado robustez à Arca, a qual, para recolher tantos animais – onças, tatus, capivaras, emas, gaviões, cascavéis, macacos –, teve capacidade para 28.125 toneladas. As primeiras chuvas caíram a 28.11.1656 do começo do mundo, segundo a datação judaica. A Arca destacou-se do chão americano nove dias depois e pousou em solo asiático a 27.11.1657. Noé mostrou-se um sul-americano convicto. Quando teve assegurada a propagação da espécie humana e a dos animais, reassumiu o comando da Arca e voltou à América. A Arca, pois, está por aí, oculta. Quem sabe umas quantas e uns quantos das senhoras e dos senhores presentes estão predestinados, desde o início dos tempos, a localizá-la em algum recanto ainda misterioso deste país.
Justificando-se, León Pinello relatou e Buarque de Holanda no-lo transmitiu, alguns dos principais autores que situaram o Éden na América do Sul: Francisco López de Gomara, Historia de las Indias; Antonio de Herrera, Historia de las Indias; Juan de Solorzano, De Ind. Jur.; padre Josef de Acosta, Historia Natural de las Indias; frei Tomás de Maluenda, De Paradiso; Laurêncio Beierline, In Theatro Vitae; Cornélio Jansenio, In Pentateuco; Leonardo Mario, In Script; Cornélio Lapide, In Gen.; frei Cláudio de Abbeville; padre Nicolao Abramo, Phori Vet. Testam.; Fernando Montesino, que, na dedicatória de um auto-de-fé celebrado em Lima no ano de 1640, assim principiou: "Dois autos-de-fé, os maiores, se celebraram na América. Um deles fez Deus, primeiro inquisidor contra a apostasia de Adão e Eva no Teatro do Paraíso".
Seria longo e decerto tedioso relatar mais livros e mais propagadores desse acreditar. Mas há um divulgador do mesmo que não pode deixar de ser citado. É o nosso bem-conhecido e devidamente reverenciado padre Simão de Vasconcelos, que vamos seguir no tomo I da clássica Crônica da Companhia de Jesus do Estado do Brasil. Mais especificamente, nas Notícias Curiosas. Confiado em "testemunhos infinitos", aceitava que o Paraíso Terreal fora posto em terra do Grão-Pará. Sacerdote, Vasconcelos preocupou-se com a possibilidade de que tal idéia aborrecesse os inquisidores. Afinal, contrariava toda a história oficial, a própria Bíblia. Consultou, por escrito, doutores de Lisboa, Coimbra e Évora. À unanimidade, os consultados responderam que Vasconcelos não incorria em falta. Afinal, não fora nunca definido o sítio elegido por Deus para criar Adão e Eva e instalar o Éden.
O padre Serafim Leite, no livro mais recente e bem-documentado a respeito, e que se intitula O Tratado do Paraíso na América e no Ufanismo Brasileiro, publicado em Lisboa em 1962 e em nossa Coleção Brasiliana, teatral e documentalmente, relata o que ocorreu em seguida à consulta. E que foi o seguinte: Vasconcelos liberou a impressão do livro, senhor que era de todas as autorizações necessárias. Impressão lenta, pois feita no ano de 1663.
À medida que cada exemplar era ultimado, o autor o destinava a uma personalidade. Para que o vissem e opinassem. Quando o décimo ficou pronto, chegou-lhe ordem terminante para mudar a redação do trecho final. Não deveria afirmar, mas deixar vaga a localização do Éden no Brasil. E, principalmente, amenizar a atuação do Espírito Santo em relação ao Pai e ao Filho na escolha do local do Paraíso. Vasconcelos recolheu os dez volumes distribuídos. Imaginemos com quais cautelas e trabalhos. E pensemos no susto e na perplexidade dos que tiveram de devolver a obra. Refez e reimprimiu o trabalho. Disse, e é o que podemos ler, que "não cometeria pecado quem assim pensasse, já que tamanhos prodígios se tinham assinalado nestas partes do mundo". Sabemos de tudo isso pela correspondência entre Vasconcelos e um dos consultores, a qual foi localizada pelo padre Serafim Leite na Biblioteca Nacional de Turim.
Quais os sinais do Paraíso?
Durante certo tempo, antes e logo depois da viagem cabralina, o Brasil foi chamado Terra dos Papagaios. Diz-se que, mesmo antes de abril do ano 1500, os atrevidos marinheiros que ousavam integrar equipagem de barcos vindos em busca do pau-brasil preferiam ser pagos com papagaios e com jibóias.
Na Europa, além das notícias sobre as virtudes do clima, das águas, das frutas, a presença numerosa do papagaio, da jibóia e do beija-flor valia como provas da localização do Paraíso.
Tal crença está na melhor tradição européia ligada ao Éden. O papagaio seria a verdadeira ave do Paraíso. Antes da queda do homem no pecado todos os bichos falavam, conforme é bem sabido. Mas depois do fechamento do Jardim, só a ele foi concedido o continuar falando. Além do quê, sua longevidade o fazia privilegiadamente quase imortal.
Ele aparece, com essa prerrogativa, na poesia e na arte. Sérgio Buarque de Holanda relaciona casos. O poeta Tasso o coloca no Jardim da Armida; o vate Marino, no poema "L’Adone", o faz discorrer com sábios notórios.
Na arte, basta citar Rubens, que, ao fazer por encomenda cópia do quadro O Pecado Original, de Ticiano, ousa introduzir nele um papagaio. Tal cópia se encontra no Museu do Prado, em Madri. E no Museu Real de Haia está outro quadro O Paraíso Terrestre, de Rubens e Jan Brueghel, no qual figura um papagaio.
A jibóia lembrava o Paraíso por acreditar o povo que, depois de morta e devorada, ela ressuscitasse retomando carne e espírito. E o beija-flor seria sempre um milagre, pois nascido de borboleta se transformava em ave.
O ar e a água curavam
A crença de que o Paraíso estava na América portuguesa deu consistência a outro mito ou quase mito: se tivesse o Éden saído direto e sem jaça das mãos de Deus, não agrediria com doenças mas curaria os males físicos com que os europeus cruzassem o oceano. Por isso, até no interior das instituições religiosas expediam-se para o Brasil os doentes.
Não precisamos de melhores exemplos do que os de Nóbrega e de Anchieta. Este veio corcunda, vitimado pela queda de uma escada na biblioteca da escola. Nóbrega, além de gago, padecia de perda de sangue, principalmente nas pernas. Outros religiosos, muitos leigos, procuraram curas no clima, nas águas, na alimentação.
Neste ponto da história permito-me uma digressão em torno de acontecimento que me comove sobremaneira e que envolveu os dois citados jesuítas. Ambos estão em Iperoígue tentando acalmar os tamoios e tirá-los da órbita da influência francesa. Se fracassassem, o Brasil português pereceria. Na praia, conversam, oram. Súbito, surgem canoas de tamoios que, conforme notícias da véspera, incursionavam para matar os dois religiosos. Só há fugir. Nóbrega perdendo sangue não pode correr. Pede a Anchieta que se salve e salve o Brasil lusitano. Mas o corcunda José toma nas costas o gago e doente Manuel e vencendo lagoas e areal salva-se, salvam-se e ao Brasil que é o nosso. Milagre? Quem sabe, coisas próprias do Paraíso!
Disputa pelas frutas
As senhoras e os senhores já se terão perguntado se a localização e o conteúdo de tal Jardim não suscitaram celeumas. Sim, várias. Destaco uma ou duas. Das mais curiosas é aquela acerca da fruta que seduziu Eva e, pois, desgraçou-nos a nós, mortais.
Até Colombo e Cabral foi pacífica a aceitação da maçã como o instrumento do tentador. Era o que dizia o livro do Gênesis. Porém, no devassamento do interior americano não se achou macieira alguma. Ou se mudava a fruta ou a localização do Paraíso.
Também nesse particular divergiram os países ibéricos. Riquíssimos em literatura relativa ao tema deram à maçã substituto diferente. Os portugueses, na Europa e no Brasil, elegeram a banana, que, aliás, na classificação de Lineu, é chamada Musa paradisiaca. Visualizemos Eva, toda indecisão e êxtase, assistindo a serpente descascar a banana pecaminosa! Logo a banana...
Havia suporte antigo e firme para essa atribuição. O importante autor Garcia da Orta, no citadíssimo Colóquios dos Simples e Drogas da Índia, refere como ouviu de um franciscano que "nesta fruta é que Adão pecou". Há mais. No saboroso Libro del Infante Don Pedro de Portugal, Gómez de Santisteban assegurou que o mítico rei cristão Preste João anualmente confirmava os governadores de província na fé em Jesus, partilhando com eles uma banana e reflexões sobre "o milagre que nessa fruta há: que em cada parte que se parte aparece o crucifixo e santa Maria com seu Filho nos braços".
Talvez fossem bem diversas das nossas democráticas e vulgares bananas de feira aquelas bananas reais do Preste João, mas confio em que já amanhã as senhoras e os senhores cumprirão com mais respeito o gesto de lançar ao lixo a casca da banana matinal.
Aqui, como na Ásia, a banana era encontradiça. Pero de Magalhães Gândavo, que escreveu o Tratado da Terra do Brasil pelo meado dos anos quinhentos, referiu-se ao fato de a banana guardar em seu íntimo o claro desenho de um crucifixo. Gabriel Soares de Sousa registrou no Tratado Descritivo do Brasil, em 1587, que "quem cortar a banana ver-lhe-á no meio a feição de um crucifixo".
Mesmo bem depois que o mito do Paraíso se transformou no do El Dorado, da riqueza como forma de vida paradisíaca, a banana manteve prestígio miraculoso. E em âmbito nacional. Frei João Pacheco, no Divertimento Erudito, impresso em 1734 em Lisboa, relatou que na Bahia dava-se como certo ser "essa a fruta que Deus proibiu a Adão". Também em Recife tal acreditar tinha curso segundo se lê no Folclore Pernambucano, de Pereira da Costa. Ainda em 1808, ano em que, com a chegada da família real, o Brasil tornou-se a cabeça do império luso, tratava-se a fruta com reverência. John Luccock, observador arguto da vida carioca, anotou que "não há um bom católico neste país que corte uma banana transversalmente, porque seu miolo mostra a figura de uma cruz".
Isso tudo, no mundo português. Com o que não concordaram os espanhóis. Eles e seus descendentes americanos situaram o Éden, sim, na América, mas não em terras portuguesas. Quiseram-no na vertente ocidental dos Andes e, no lugar da maçã, repudiando a plebéia banana, posicionaram a bem menos rara e bem mais exótica granadilla, que é o nosso maracujá. Fizeram-no especialmente pela flor, logo chamada flor da Paixão. Assim se reforçou a ponte, estendida em algum tempo, entre a expulsão do casal edênico e a Paixão de Cristo. A flor do maracujá mostrou-se perfeita para esse enlace entre o Velho e o Novo Testamento.
De nenhuma flor, à exceção talvez da rosa, foi dito, em exaltação, o que se disse desta, na Espanha, na França, na Itália. Correu pelas igrejas e pelas casas cristãs da Europa, recitado como se fosse oração, o soneto do napolitano Genaro Grosso Al fior in cui si vede la Passione del Signore. Na cultíssima Bolonha, o inspirado sonetista Claudio Schitini também burilou versos a ela dedicados.
Ao começarem os anos mil e seiscentos o maracujá havia feito arquivar a banana. Mesmo Vicente do Salvador e Simão de Vasconcelos aceitaram-no. Ainda em 1702 frei Antônio do Rosário, em seu Frutas do Brasil, lembra a seus leitores uma das justificativas para se honrar a flor da Paixão: Cristo, na cruz, "encostou a cabeça para mostrar que morria como flor que, quando morre, se inclina para a terra". É que aos crentes sempre foi mostrado que na flor do maracujá estão reproduzidos os instrumentos da Paixão.
Também na geografia, espanhóis e portugueses disputaram a glória de hospedar o centro do mundo. Colombo, em carta aos reis, afirma ter localizado o Paraíso. Ele quedou-se abismado com o volume da água doce que o rio Orenoco despejava no oceano. Só podia tratar-se de um dos quatro rios paradisíacos. E descreve como enviou destacamento para localizar o Éden e o sucesso alcançado. O cartógrafo Schörner, no mapa de 1515, grava a porta do Éden na região apontada por Colombo, atual Paria, que o gravador localizou na Amazônia brasileira. Paria sive Brasilia está escrito na carta. Mesmo no Brasil não houve unanimidade quanto ao sítio onde vicejara o Jardim que ocultava a Arca.
Autores, autoridades, donatários portugueses disputaram para as suas terras o local do Paraíso. Amazonas, Maranhão, Bahia, Pará e Mato Grosso. Afinal, o regionalismo é de todos os tempos, e em todos os tempos a nossa terra é mais bonita do que a dos outros. Aí está o hino nacional garantindo serem o céu, os bosques, os amores do Brasil superiores a quaisquer outros.
Portugueses, franceses, italianos, alemães, judeus desembarcaram, ou mais ou menos, ainda acreditando peregrinar pelo chão do Paraíso. E eis que se surpreendem com migrações de tupis e guaranis que vagam, em multidões, na busca do seu paraíso – do y vy mara ey (terra sem mal). Ele tem no centro a oca milagrosa de Nhanderuvussu, o criador do mundo. Visualizam esse seu Éden posto em algum lugar além do oceano, lá de onde vem o sol. Europa? África? Palestina? Os europeus querem-no no Ocidente. Os americanos, no Oriente. Que força prodigiosa essa que leva o homem de todas as longitudes e epidermes a sonhar e se bater pelo retorno à pátria seminal e perdida?
A estrada do Peabiru
Até aqui temos tratado da crença na ocultação do Éden em algum lugar do Brasil. Ela tem a ver com dois outros mistérios pejados de fascínio e objeto de fortes polêmicas. O da estrada do Peabiru e o da estada no Brasil, muito antes do descobridor, do verdadeiro apóstolo são Tomé, introdutor do cristianismo. Em pessoa.
O nosso indígena era tão primitivo que se mostrou incapaz de colocar dez pedras uma sobre a outra. Não há memória, não há exemplo, não há ruínas que indiquem a abertura de algo a que se pudesse chamar estrada. Ele se guiava pela foz de um rio, o pico de um morro, a margem de uma floresta. Ele não abriu caminhos, no máximo aproveitou carreiros de anta. Isso, em toda a extensão da descoberta portuguesa.
Pois em 1501, em São Vicente, os portugueses viram-se confinados à praia, espremidos nela pela cadeia montanhosa da serra do Mar. Ela impedia o acesso ao planalto ou pelo menos o dificultava enormemente. Anchieta descreve a escalada como a mais áspera das estradas do mundo. Subiam agarrados em raízes e em cipós. De repente, os portugueses descobrem uma estrada, oito palmos de larga, empedrada nas zonas pantanosas, tendo o leito atapetado por relva que o mantinha limpo e conservado. Em larga extensão, não sabemos ao certo por quê, aprofundava-se, uniformemente, 40 centímetros no solo. Estava ladeado por outra erva, mais alta, de até 1,50 metro, que ocultava e protegia o traçado. A cada 18 quilômetros, uma construção de pedras com dois cômodos, duas portas, uma voltada para o ocidente, a outra para o oriente. Nela, os viajantes se protegiam da chuva, da noite, do frio, das feras. Esse caminho aprofundava-se 200 léguas pelo interior. Nóbrega, escrevendo ao rei, exclamou: "Essa estrada supera em qualidade as melhores ruas de Lisboa".
Embora a maior parte da documentação, tanto a religiosa quanto a laica, em português e em espanhol, além de depoimentos como os de Schnidel, faça referência ao Peabiru como uma rede que do litoral sul se dirigisse para Assunção, vários pesquisadores alargam a presença do sistema viário inca no Brasil, mencionando um Peabiru que, da região subandina da Colômbia, chegaria ao litoral pernambucano. E outro que, também descendo dos Andes, escorreria pelo Brasil central, rumo à Bahia, ganhando, este, o nome mairapé, o qual passou a designar, popularmente, naquela região, os caminhos de construção não identificada.
Ainda estudante, para atender a um professor, dei-me a pesquisar sobre a linha tordesilhana. Deparei com a mapoteca que fora do Morgado de Mateus, aquele terrível e forte governador de São Paulo que impediu o avanço espanhol rumo ao Atlântico. Nessa mapoteca, encontrei um mapa do ano de 1576, no qual alguém desenhara o caminho a que me referi, e que ali aparecia com o nome Peabiru. Ao ler esse nome, ao tocar nesse mapa, minha vida mudou. Vários dos acidentes geográficos balizados em certa área, na serra de Botucatu, me eram familiares. Eu os havia percorrido inúmeras vezes e de repente os descobria objetos e partícipes de um capítulo portentoso da história americana. Tinha de saber mais, muito mais, a respeito do caminho.
Há mais de 50 anos pesquiso o Peabiru. Tal caminho ia até Cuzco e transformado em estrada de primeira categoria no planejamento imperial dos incas demandava a cidade do México. Ele contava, ao longo do traçado, canalização de água para dessedentar o caminhante, abria em certos trechos pomares onde o viajante se alimentava com frutas. Portanto, bem antes de Colombo e de Cabral, o continente serviu-se de um extraordinário sistema viário ao qual poderemos denominar, sem exagero, a primeira grande transcontinental americana.
A que servia? Tem-se como certo que mostrava o interesse inca pelo domínio futuro da margem atlântica, embora até 1500 sem o manifesto propósito de incorporá-la a alguma província imperial. Servia, assim, ao comércio. E tanto que Tomé de Sousa, sendo governador-geral, assustado com o volume de mercadorias andinas exportadas pelos espanhóis por São Vicente, resolveu clausurar o Peabiru, cominando pena de morte para quem infringisse a proibição. A esse rigor de Tomé de Sousa atribui-se o não terem restado em território paulista restos documentais do Peabiru. Mas há sinais abundantes em outros estados por onde correram ramais do mesmo. Luís Caldas Tibiriçá escreveu ter encontrado, no Mato Grosso do Sul, mais de 1 quilômetro do caminho pavimentado com lajotas irregulares, 40 centímetros abaixo do solo e com 1,80 metro de largura. O padre Colbachini mostrou a Inácio da Silva Teles outro largo trecho, com quase as mesmas características, ao largo da aldeia Meruri, no Mato Grosso. Há notícias de achados de restos também valiosos no noroeste do Paraná. Portanto há testemunhos dessa primorosa engenharia viária de alguma cultura andina muito avançada. Talvez a dos incas.
O Sumé civilizador e apóstolo
O segundo enlace do mito do Paraíso brasileiro foi com o Sumé. O português, ao chegar, percebeu ser o nativo incapaz de trabalhos de técnica viária. No entanto, deparou-se com o prodigioso caminho. Admirado, perguntou ao índio: "O que é isto?" Resposta: "Peabiru". Insistiu: "Mas quem fez o Peabiru?" O selvagem respondeu aquilo em que acreditava: "Pay Sumé" O lusitano que fizera a pergunta com interesse de conquistador ouviu a resposta com ânimo de católico. Exclamou: "Mas eles estão falando é de são Tomé!"
São Tomé esteve no bem-querer luso desde os primeiros dias do cristianismo em Portugal. O rei mandou que seus prepostos na Índia revirassem o país, mas localizassem o túmulo de são Tomé. Para onde o português foi, levou são Tomé. Além disso, ele usava recitar o trecho evangélico que se refere à divisão do mundo feita por Cristo entre seus apóstolos como área de seus trabalhos apostólicos. Ao ouvir o índio, o português ligou Pay Sumé a são Tomé e ambos à presença do Paraíso. Daí o ter batizado o Peabiru com o nome de Caminho de São Tomé.
Mas com isso e com a atuação quase igual dos espanhóis na sua área sul-americana, ressuscitaram o mito do Sumé. Quem foi Sumé? Uma figura que está na mítica de todos os povos americanos desde o Alasca à Terra do Fogo. Aparece sempre igual: alto, loiro, às vezes barbado, às vezes imberbe, portando um camisolão. Variação maior, o calçado, que atendia à área de atuação, podendo ser de couro, de cortiça e mesmo de látex, este na região amazônica.
Torna-se amigo da população local, ensina as técnicas agrícolas e artesanais, transmite ensinamentos morais e religiosos, cuida da saúde e da instrução. Mas quando legisla condenando a antropofagia e a poligamia tem contra si os homens, que decidem matá-lo. Na região do Titicaca foi recluso em uma cabana à qual puseram fogo; em áreas como a do nordeste brasileiro, tentaram lapidá-lo. Em outras foi alvo de flechas. Sempre o sobrenatural interveio em seu favor: chuva providencial, vento forte que desvia as flechas, etc. Com semblante muito triste, cabeça baixa e dedo indicador erguido, recuando, imerge na água da qual emergira. Prometendo: "Voltarei em tempos nos quais os homens estiverem prontos para aplicar a minha doutrina". Quando os espanhóis, couraça brilhante e capacete luzindo ao sol do México, do Peru, do Chile, do Paraguai, apresentaram-se aos naturais do país, estes os aclamaram como o Sumé que retornava. Esse acreditar foi a desgraça desses povos. Mas essa é outra história.
Depois de muito estudo, estou convencido de que esse Sumé, que não foi um único indivíduo, na verdade representou um grupo de monges escandinavos que em meados do século 12 deixaram seu bispado na Islândia, passando-se para a América. Terão sido os primeiros sacerdotes a falar de cristianismo em nosso continente. Segue-se hoje a orientação de que da Islândia teriam passado para a América do Norte; daí para a Central, o Caribe; do Caribe para o nosso Maranhão e daqui para o interior continental. Curioso observar que a mítica indígena, bem assim a crônica colonial centro e sul-americanas, coincidem em relação ao Sumé e a estes personagens ainda misteriosos. Pessoalmente, não posso esconder uma funda impressão que me deu a leitura do relato do frei Gaspar de Carvajal, cronista da expedição de Orellana – aquela que anunciou a descoberta das amazonas. O frei descreve, e isso se passou em abril de 1542: acostumados a encontrar homens de cabelos pretos, pele bronzeada e baixa estatura, assombraram-se com a chegada à aldeia onde se encontravam de quatro homens brancos, de cabelos claros e que desciam até a cintura. Homens altos, um palmo a mais do que o mais alto dos cristãos. Carvajal destacou serem os quatro louros muito bem-educados, esplendidamente vestidos, enfeitados com ouro. Orellana obteve deles aquilo que era de mais precioso no lugar e na situação, isto é, comida e muita conversa em espanhol. Mas nenhuma informação sobre quem eram, de onde provinham e para onde se dirigiam.
Também essa é outra história. As pesquisas continuam, o maravilhoso que delas resulta bem merece que um dia, no futuro, nos encontremos de novo neste local. Mas o assunto de hoje foi o mito do Paraíso. Voltemos a ele.
Curioso observar que esse mito não arrefeceu ao contato do europeu com a dura realidade da terra nova. Homem de fé e necessitado de horizontes, o português continuou acreditando.
Porém, adaptando a crença. O mesmo ocorreu na América espanhola. O Paraíso foi mudando para aquilo que melhor parece ao homem rústico a definição do Paraíso: a riqueza, a juventude eterna. Tivemos então não mais as miragens da Arca e do Jardim, mas as das Fontes da Juventude, das cidades todas de ouro, das montanhas de prata, das lagoas de esmeraldas. Talvez a última manifestação sobre a ocorrência física do Éden em chão brasileiro tenha sido do frei Antônio de Santa Maria Jaboatão: o Orbe Seráfico, que é de 1761.
Contei para alguns, apenas recordei para outros, algo ligado ao pré-achamento e aos primeiros tempos da nossa terra.
Lenda, sim, mas que ajudou muita gente a perseverar na procura e na luta, e nisso consiste o viver. Essa gente me comove pelo que acreditou e pelo como procurou. A idéia do Paraíso não se arquiva jamais.
Misturei um tanto as coisas, mas espero ter dito, nesta nossa comemoração especial dos 500 anos do Brasil, algo pouco divulgado. Não importa que ainda esta tarde alguns dos presentes resmunguem que "esta foi uma manhã perdida". Convivemos todos, por algum tempo, no território do maravilhoso. Gostaria que essa mensagem fosse levada e que, de alguma forma, estimulasse ao menos uma das senhoras, um dos senhores a prosseguir nas pesquisas aqui sugeridas. Deixo claro, porém, estar compensado e bem pelo fato de que por mais de uma hora as senhoras e os senhores toleraram a minha exposição.
Creiamos, nós também, que a despeito de governantes que desgovernam, de juízes sem juízo, de policiais que assaltam, de professores que emburrecem, de autoridades que desautorizam, vivemos a um passo de descobrir o Paraíso e fazer dele o Brasil ideal para os nossos bisnetos.
Debate
Nota do Editor: as colocações dirigidas ao palestrante foram algumas vezes reunidas em blocos, para ser respondidas de forma concentrada.
MOACYR VAZ GUIMARÃES – Sua exposição foi encantadora, e ao mesmo tempo com um conteúdo de feitiçaria, que podíamos ficar a ouvi-lo dias e dias. A cada fato relatado havia sempre menção a outros que seriam eles próprios motivo para outra conferência. Há um mundo intelectual a ser desbravado. Tudo aquilo que você falou vai me fazer pensar e indagar a mim mesmo: será que foi assim, onde estará a verdade e não a versão?
CLÁUDIO CONTADOR – Em relação ao Peabiru, existe algum sítio tombado?
HERNÂNI – Não. A Universidade Federal do Paraná está cuidando disso, e trabalhando muito bem conforme nos dá notícias constantes um também grande entusiasta pelo assunto, que é o escritor e pesquisador Luiz Galdino. O importante é ocultar que existem esses restos, pois se criou uma lenda aqui entre nós de que onde houve jesuítas, houve tesouros. Na expulsão definitiva feita por Pombal, acredita-se que os jesuítas não tiveram tempo nem meios para levar o eventual tesouro e o enterraram. Por todo o Brasil, jesuíta lembra tesouro enterrado. Gente curiosa descobre uma ruína, decide que ela deve ser do tempo dos jesuítas e dinamita. Aqui perto, em Itararé, havia um ídolo de pedra que não deu tempo para ser estudado. Foi dinamitado porque disseram que por ali andaram jesuítas. Nunca saberemos o que foi aquilo, quem o fez.
SAMUEL PFROMM NETTO – Com sua exposição, Hernâni Donato trouxe-nos os bons ventos da pesquisa séria, do rigor crítico, da fundamentação competente, da incessante busca do conhecimento autêntico, genuíno sobre nossa história.
Ao longo de toda essa exposição, no entanto, cresceu em nós, particularmente em mim, de par com o enlevo e o interesse por tanta coisa surpreendente trazida à baila por Hernâni Donato, a angústia de saber que conhecimentos de boa cepa como esses não são compartilhados pela imensa maioria da população, não são ensinados e não são aprendidos nas nossas escolas de ensino fundamental e médio. É nesse contexto do que não se ensina e do que não se aprende em meio ao comum das pessoas que indagamos se não é já tempo de dizer aos donos do ensino nestas plagas que o rei está nu e que precisamos fazer chegar com seriedade, e com esse mesmo enlevo com que o ouvimos aqui, às crianças e aos jovens particularmente, não essas versões espúrias sensacionalistas, primárias ou de disfarçada ou descarada doutrinação político-ideológica a respeito de nosso passado, mas os frutos desse trabalho árduo de pesquisa histórica legítima, segundo os melhores padrões internacionais da atualidade, compreendida aqui em relação a esse passado a pesquisa sobre nossa pré-história, nossas raízes, as concepções, motivações, ousadias construtivas que entraram na composição do que somos e do que seremos, de nossa cultura, nosso modo de ser, nossos sonhos, nosso pensamento, nossas aspirações. Há uma enxurrada de pseudo-história que está nos livros didáticos nas mãos de nossas crianças e nossos jovens, e na Internet. Estou muito assustado com o que estou vendo na Internet. Ela é um instrumento precioso para a transmissão das lições de Hernâni Donato, mas é igualmente um instrumento nefasto porque está pondo nas mãos e na cabeça (o que é pior) de crianças e de adolescentes tolices que qualquer mentecapto queira colocar na rede. Ela é a fonte do melhor e do pior que possa surgir na mente humana. Eu não acrescentaria, mas sou irreprimivelmente levado a dizer: tolices que estão até mesmo em trabalhos e teses universitários. O que fazer, ao ver do nosso festejado conferencista, em relação a esse estado de coisas?
HERNÂNI – Acho que fazer algo como o realizado aqui hoje é um bom caminho. Nossa imprensa, sabe Samuel melhor do que ninguém, está fechada para as coisas que não redundem em dividendos e em votos. É muito difícil abrir espaço nos veículos de comunicação, não há mais suplementos, não há mais revistas culturais ou as que continuam existindo têm espaço muito limitado. Outras são esnobes demais para descer a matérias que mobilizem público reduzido como esta de que tratamos. Então restam-nos as escolas. O senhor, que é presidente de uma associação de educadores, bem que poderia, a partir de hoje, iniciar um movimento para que haja, ao menos nos colégios particulares, um dia ou hora por semana para falar de histórias que tornem apetitoso conhecer a história.
REGINA HELENA DE PAIVA RAMOS – Vou fazer uma pergunta, embora correndo o risco de que por causa dela você tenha de ficar mais duas horas conosco, o que seria ótimo. Entre os que estiveram aqui antes de Cabral, citam-se sempre os corsários. E os templários, como se encaixam nessa história? Eles se espalharam pela Europa toda, fizeram castelos, fortificações. Muita gente diz que fugiram do país quando um dos reis da França mandou fechar os castelos e os fortes todos, e teriam vindo para o Brasil.
HERNÂNI – As velas de Cabral eram templárias. Mas como são templárias? A Ordem do Templo, fundada em Jerusalém para cuidar dos peregrinos, degenerou pelo caminho mais suave, o da riqueza. Tornaram-se eles os maiores financistas da Europa. Financiavam reis, papas. É claro que isso acabou causando sérios problemas a eles. E o rei da França, Filipe, o Belo, rei forte, absoluto, questionou-se: "Por que vou pagar tudo o que devo aos templários se preciso de mais dinheiro ainda? Mas bem que posso liquidar com eles". Só que deveria ter uma motivação para agir com violência, não podia simplesmente atacar. Contava com um ministro chamado Nogaret, homem esperto, devotado ao rei e com muita imaginação. Aqui entramos, outra vez, no nevoeiro da lenda. Nogaret teria ponderado ao rei: "É fácil justificar uma ação radical contra a Ordem do Templo. Qual é o seu símbolo?" Era o de um cavalo com dois cavaleiros, que significa serem os templários, em sua origem, tão pobres que tudo entre eles deveria ser dividido por dois. Mas Nogaret sofismou: "Basta interpretar que não se trata de símbolo de pobreza, mas sim de homossexualismo, de um pecado mortal". Àquela altura o homossexualismo era punido drasticamente. O rei ordenou: "Proceda". Nogaret organizou o processo contra a ordem e, apesar dos apelos universais dos credores, dos amigos e do papa, Jacques de Molay, o supremo mestre templário, foi levado à fogueira. Dizem (é bonito acreditar nisso) que quando as chamas se ergueram Molay teria gritado: "Filipe e Nogaret, em menos de um ano nos encontraremos". Em menos de um ano ambos morreram. A morte de Nogaret é policialmente notável, a dar-se crédito à lenda a ela relativa. Certo dia seu mordomo anunciou: "Um fabricante de velas que está instalando sua fábrica no bairro deseja fornecê-las a esta casa pela metade do preço corrente". Esse fornecedor seria um templário que assumira a missão de vingar seu chefe. Em cada vela colocou uma pequena porção de veneno, e Nogaret, enquanto trabalhava ao lado de um candelabro, foi aspirando, aspirando, aspirando, ficou muito doente e morreu. Se non è vero... E na história do Brasil? O rei de Portugal teve uma visão mais política do assunto. Chamou os templários a seu reino, recomendando-lhes: "Mudem o nome de sua ordem para o de Ordem de Cristo e seu símbolo para o da cruz". Aquela que está nas velas de Cabral. A Ordem de Cristo levou para Portugal o que pôde de bens. Financiou a viagem de Cabral e várias expedições à Índia. Quanto a cavaleiros templários, não acredito que tenham vindo. Vieram cavaleiros da Ordem de Cristo, poucos e mais como representantes do rei em funções administrativas.
JOSEF BARAT – Realmente é intrigante o fato de a história oficial do Brasil representar sempre o descobrimento como o produto de um acaso. Isso é ensinado até hoje, quando o Tratado de Tordesilhas existia há seis anos, já dividindo uma coisa desconhecida em tese. Por que houve sempre a insistência em passar a idéia do descobrimento por acaso? Há ou houve alguma razão política para isso?
HERNÂNI – Uma razão econômica que se transformou em política, e muito importante. O Brasil era conhecido da Espanha e de Portugal, não na sua dimensão nem na sua disposição geográfica, mas sabia-se que estava ali. Abrindo um parêntesis, há um curiosíssimo mapa chamado Cola do Dragão. Esse mapa é de muito antes do descobrimento e teria sido levado a Portugal por dom João II, o Príncipe Perfeito, que veio a ser rei. Na Turquia ouviu falar de viagens a terras estranhas e soube que em Veneza havia um mapa que mostrava um outro mundo. Passando por essa cidade, obteve o tal mapa, entregue por ele a seu irmão Henrique, o Navegador. Nesse mapa, que é provavelmente de 1236, está claramente reproduzido o litoral oeste da América do Sul, incluindo a cordilheira dos Andes, que só veio a ser conhecida oficialmente quando os espanhóis chegaram ao Peru. Não temos o original porque, à medida que os descobrimentos portugueses eram realizados e confirmados, os mapas correspondentes eram levados para um arquivo na região de Alcobaça. Essa mapoteca foi incendiada numa revolta de camponeses. Perdemos o original. Tenho uma reprodução do mapa Cola del Dragón. Nele, o espinhaço dos Andes é a cauda de um dragão. Foi desenhado, acredita-se, antes da chegada dos espanhóis aos Andes, antes de Magalhães passar pelo estreito. Mas, então, o Brasil não interessava, maiormente nem a Portugal nem à Espanha. O Tratado de Tordesilhas na verdade não foi tão questionado pelos portugueses para ter o Brasil, mas para possuir as Molucas, a terra das especiarias. Daí a disputa de légua a mais, légua a menos de oceano. Na medida em que o tratado se estendesse para oeste, também ia para leste, na outra ponta, no Oriente. Quem ficasse com as Molucas seria uma potência rica. Portugal ficou com elas, mas a chegada dos holandeses, dos franceses e dos ingleses ao Oriente fez com que o preço das especiarias caísse verticalmente. A Índia, que foi a grande esperança de Portugal, em vez de enriquecer, empobreceu o país. Daí ter se apegado ao Brasil. Portugal permitiu que houvesse tipografia em suas colônias, inclusive no Japão, mas proibiu-a no Brasil até 1808, quando chegou a família imperial. Curiosamente, para os homens de empresa, a única tipografia que funcionou, clandestinamente quase, em Pernambuco, especializou-se em um produto que todos os empresários conhecem muito bem e é uma especialidade brasileira: letras de câmbio.
BARAT – Uma curiosidade: a costa brasileira não era importante para a navegação para a Índia? Uma das finalidades do tratado não teria sido essa?
HERNÂNI – Sim, tornou-se importante. Lembre-se, porém, que Portugal podia viajar para a Índia aportando nas ilhas atlânticas. O rei, nas instruções a Cabral, precisou: "Se tiver água suficiente, não pare em Cabo Verde e na Madeira". Água suficiente para chegar à Índia? Não. Para chegar à costa brasileira. Esse é um dos argumentos dos que defendem a tese do achamento proposital. Mas nesse período portugueses descobriram o segredo da navegação no Atlântico Sul, ao qual denominaram a volta do mar. Os que não dominavam tal segredo freqüentemente queriam ir ao Prata e acabavam no Caribe. Estão curiosos por conhecer esse segredo? Por mais que hoje nos pareça trivial, foi de importância máxima. Consistia em num certo ponto da costa africana engolfar no rumo noroeste observando, a cada noite, a subida da estrela polar. Quando sua altura atingisse a latitude do cabo São Vicente, voltar a proa para este e seguir em frente até chegar em casa. Essa, pelo menos, é a explicação dada por Milton Vargas em sua obra A Ciência do Renascimento. Voltemos à pergunta de Josef Barat. Mas, sim, serviu como base para viagens à Índia. Vaz Caminha menciona essa utilidade da Ilha da Vera Cruz.
MÁRIO CHAMIE – Gostaria de me fixar talvez no perfil mais saliente da palestra de Hernâni Donato, que é o mito. Estamos falando de mitos, e eu gostaria de lembrar que existe o mito anacrônico e o funcional. Todo o repertório de informações que Hernâni levantou aqui, por mais historicamente comprovável que seja, paira num plano de fabulação e especulação. Diz-se que Cabral não descobriu o Brasil, tomou posse do Brasil. Independentemente disso, gostaria de saber de Hernâni se essa tomada de posse, registrada na carta de Caminha, não institui um mito funcional histórico que afasta para um plano de fantasia e fabulação todos os outros conteúdos míticos a que o palestrante se referiu. Porque a carta de Caminha funda um outro processo mitológico de efeitos concretos.
Caminha tem uma visão da terra brasileira que despoja o excesso de delírio imaginativo para uma realidade objetiva. Quando descreve o indígena ou ainda quando fala da sanidade dos ares e das águas, ele está numa perspectiva edênica, mas palpável, que vai depois gerar formas de autoconhecimento e abordagem da própria formação da história do Brasil, até do ponto de vista protocolar formal. A carta de Caminha foi um documento protocolar, até mesmo na sua constituição de introdução, desenvolvimento e epílogo, é a carta, portanto, de um narrador oficial que veio a substituir os narradores fantasiosos. Posso citar o exemplo de Cadamosto, as narrativas que antes eram relatos, não eram nem narrativas, eram contadas por terceiros ponto a ponto, como se diz em português refinado, em português legítimo. Então Cadamosto ouve um marinheiro que conta suas histórias, e essa tradição vai até Montaigne. Quando Montaigne, por exemplo, escreve sobre o canibal, ele está ouvindo um índio brasileiro, suposta ou realmente, para formular suas hipóteses e seus pontos de vista. A carta de Caminha é tão cautelosa que quando fala de alguma coisa sempre diz: "Assim me pareceu". Ele sempre faz uma ressalva porque na verdade está escrevendo ao rei o que o rei gostaria de ouvir, por se tratar de uma carta do poder. Ele está representando o poder e faz uma narrativa como um bom repórter, mas que vai cedendo à beleza e à presença do objeto observado, seja a paisagem física, seja a humana. De tal modo que funda uma mitologia que passa a ter função operacional na cultura brasileira, e até o fim da carta parece que era já uma profecia de outros protocolos brasileiros, como, por exemplo, o jeitinho e o nepotismo. Então a pergunta que faço é se Hernâni Donato considera que todo esse levantamento faz-se com sua mitologia fundante e, portanto, pode merecer aspectos e estudos que saem do didatismo contemporâneo, às vezes controlado por ideologias. Essa mitologia fundante não coloca em definitivo numa espécie de relicário para divertimento do espírito, para prazer inclusive da inteligência, todo esse arcabouço que você trouxe hoje à tona?
HERNÂNI – Endosso tudo o que Mário Chamie disse. É exatamente isso. Quanto à carta de Caminha, é um documento que nos introduz no conhecimento do Brasil, é o primeiro documento que descreve e aconselha. Porém Caminha era nada na armada, não tinha uma função importante, seria apenas o escrivão de uma feitoria na Índia, não era do comando da armada, não estaria, por exemplo, a par das instruções secretas do rei. Ele escreveu muito bem. Aliás, era um escritor.
CHAMIE – E um grande humanista. Não era tão ninguém assim.
HERNÂNI – Comparada com a carta do Mestre João, é uma obra literária, escreve muito bem. Mas tenho comigo (ele me perdoe se o estiver caluniando) que ele não deveria escrever aquela carta, não incumbia a ele. Nós nos referimos muito à carta porque foi a que sobrou, as outras desapareceram talvez no terremoto de Lisboa ou talvez na destruição dos arquivos. Mas eu tenho para comigo que ele escreveu a carta caprichosamente objetivando o final, o último parágrafo, em que pede ao rei que perdoe um genro que havia dado morte a um padre numa procissão. No mais, concordo com o que disse, é o primeiro documento fundante.
CHAMIE – Esse problema do nepotismo, do genro, etc., é uma particularidade do documento que funciona muito em termos de tradição brasileira. Mas o documento, independentemente do que era Caminha ou deixava de ser, institui uma trajetória histórica e mítica irreversível.
HERNÂNI – Sem dúvida.
CHAMIE – E de grande profundidade e brilho. Não devemos esquecer que houve o confronto de duas culturas, uma letrada e outra ágrafa. E é ele que traz mais do que ninguém essa cultura ágrafa para um primeiro plano da formação de uma história, de uma nação e de um povo como o brasileiro, que vem dar depois nos maiores estudiosos e intérpretes da história do Brasil, desde Sérgio Buarque, Gilberto Freyre, etc. Então não importa quem era. O que poderia ter sido e não foi, não foi. A carta de Caminha foi e continua a existir. De modo que o argumento não é que desqualifica mas que de certo modo torna episodicamente menos significante a figura de Caminha. O fato é que a carta é um sol mítico poderoso. Como diria Fernando Pessoa, o mito é o nada que é tudo, o mesmo sol que abre os céus é um mito brilhante e mudo. O nada de Caminha é mais tudo do que o tudo das outras fantasias.
HERNÂNI – Concordo "caminhamente" com sua exposição. E vou voltar a outros caminhos depois da sua explanação.
ROBERTO PENTEADO – Em oportunidade em que pesquisava o cultivo de algodão no estado do Paraná, deparei-me com as ruínas de Loreto, onde se pode verificar a devastação feita pelos espanhóis. Tenho amostras de cerâmica de uso culinário ou de telhas de cobertura, tudo documentado fotograficamente. As ruínas de Loreto se localizam nas proximidades de Itaguajé, porém não conheço a história nem encontrei relato a esse respeito. A área de devastação é extensa. O senhor poderia falar alguma coisa sobre essas ruínas?
HERNÂNI – Houve um momento em que os espanhóis sediados em Assunção tentaram criar uma província, que seria uma província de leste, cujo objetivo era ou tamponar o avanço português ou preparar o espanhol rumo a Santa Catarina, porque a comunicação mais fácil com a Espanha era a rota entre Assunção e Santa Catarina. Loreto, confiada aos jesuítas mais tarde, foi um desses pontos de apoio. Houve mais de uma Loreto, não sei se essa a que o senhor se refere é a que foi depois destruída, não pelos espanhóis, mas por bandeirantes. Eles destruíram várias reduções naquela área e trouxeram milhares de índios escravizados.
PENTEADO – Eu não encontrei registro histórico, apenas relatos de moradores. Mas é no norte do Paraná, perto de Itaguajé.
JACOB KLINTOWITZ – Vou acrescentar uma pergunta a respeito do mito fundador de civilização. Vejo que ele se repete em outras regiões do mundo, inclusive como o ser surgido do mar como fonte da vida e da civilização, que traz basicamente os mesmos elementos: o grão, que é a ciência, é a genética do silvestre ao civilizado, a arte, que é representada na iconografia e na arquitetura, e também uma visão cosmogônica, que se repete na fundação urbanística porque ata o que está na terra ao que está no céu, repetindo a cosmogonia celeste. Então esse mito tipicamente americano também é semelhante ao que se vê em outras partes do mundo.
A outra pergunta, que de certa maneira faz parte dessa, é sobre o mito ou a nostalgia do Paraíso, que também é comum e que quando passa da Ásia para o cristianismo se altera porque a idéia do Paraíso, que era de eleição espiritual, no cristianismo a partir de certo momento se transforma em algo que está lá fora. Então procura o Paraíso de maneira geográfica, já não é um estado de espírito. Essa seria a diferença do mito Paraíso no Novo Mundo para o Paraíso que seria Shambala na África, que é um acesso espiritual. Então eu lhe perguntaria se esse mito não é semelhante a outros mitos fundadores de civilização em outros lugares e se existe realmente esse deslocamento do entendimento ou da nostalgia do Paraíso, uma terra que se perde por decadência espiritual para uma terra que se conquista geograficamente.
HERNÂNI – O senhor reporta ao mistério maior, que é o da unicidade do gênero humano. Por exemplo, o mito Tamandaré. Essa palavra quer dizer, mais ou menos, "o salvo das águas", o que remete celeremente ao Moisés hebreu e nilota. Os índios não construíram arcas. Noé, escolhido pelo céu para manter a espécie, derrubou uma palmeira, acomodou-se entre as olas. O céu escureceu, houve trovões, choveu, a palmeira foi conduzida sobre as águas e ele foi recolhendo o cachorro-do-mato, a onça, etc. A palmeira fez-se arca. A segunda questão de Klintowitz refere-se à procura do Paraíso. Não se sabe bem, mas parece que a cada 25 anos os tupis reuniam-se aos milhares e saíam à procura do Paraíso, o Paraíso os chamava e eles viajavam nessa direção. Imaginem um povo sem socorros médicos, sem ajuda, comendo o que encontrasse ou não comendo e vagando por selvas e campos, ansiando por retornar ao lar ancestral onde não havia doença nem morte, nem trabalhos ou perigo. Não estamos outra vez lembrando a peregrinação dos judeus rumo à Terra Prometida? Alguns dizem que os tupis demandavam um país além do oceano, outros que miravam os Andes, de onde teriam descido originalmente. A última dessas migrações começou em fins do século 19, quando centenas de guaranis-apapocuvas saíram do sul de Mato Grosso rumo à costa atlântica. Terminou apenas em 1912, quando o abnegado etnólogo Curt Nimuendaju esforçou-se por recolher os sobreviventes a um local que se transformou na reserva araribá. E a que foi mais conseqüente no período histórico ocorreu na Amazônia. Cerca de 14 mil tupis saíram do litoral brasileiro na direção do Peru. Era o ano de 1549. Apenas 300 deles chegaram até Chachapoyas, onde foram aprisionados pelos espanhóis, que os acusaram de espionagem em benefício de Portugal. Creio que existe um mito único que emigrou e foi adaptado a cada terra, a cada povo.
PAULO JOSÉ DA COSTA JÚNIOR – Como criminalista que sou e advogado, o que me deixou estupefato, Hernâni, foi aquela forma de execução de um condenado. Primeiro afogado, a seguir enforcado, depois queimado e as cinzas lançadas na foz do Tejo na vazante. Sou pesquisador no campo criminalista e nunca tive conhecimento de execução semelhante. Qual a razão de tamanho requinte de crueldade?
HERNÂNI – Penso que com seu afirmar tão fora da ortodoxia ele tenha ofendido a religião e o rei. Pregava a separação pré-Tiradentes. Terá sido um Tiradentes avant la lettre, queria, subjacentemente à matéria religiosa, independentizar o Brasil, e isso Portugal não podia permitir.
FÉLIX MAJORANA – Vou fazer uma pergunta curta e com certeza será curtíssima sua resposta. São Vicente existia porque era um porto, e dali saíam as riquezas do planalto. Não era interesse português subir para esses altos porque tinham de enfrentar índios e uma série de problemas. Era mais fácil pegar as riquezas e levar. E havia uma estrada que ia do planalto a São Vicente, em que passavam tropas de burro, inclusive com locais para abrigar os animais e as pessoas. Essa, que depois viria a ser a Estrada do Mar, seria por acaso a do Peabiru?
HERNÂNI – Nem essa nem as anteriores terão seguido o trajeto do Peabiru. Aliás, não sabemos concretamente por onde o Peabiru subiu a serra. Com a proibição imposta por Tomé de Sousa, perderam-se rumo e restos.
JOÃO TOMAS DO AMARAL – Tenho duas curiosidades. A primeira é sobre o fato de Cabral ser o comandante da esquadra, dado que ele não era nobre. Um pouco antes ele recebeu um título de nobreza que era dos Cabral. Ele não era Cabral, era Gouveia. E a outra é a relação entre o poder financeiro da época, a Escola de Sagres e o achamento ou descoberta.
HERNÂNI – O capitão-mor não ordenava necessariamente as manobras da esquadra. Era o representante do rei. A Cabral o rei cedeu os melhores pilotos e comandantes de navio. Escrevi um ensaio, "Cabral, o 007 do rei", publicado no antigo e saudoso "D.O.Leitura". Tenho para comigo que Cabral, não sendo marinheiro nem militar, era o chefe do serviço de informações e contra-informações de Portugal. Sabia tudo o que as outras potências sabiam, porque Lisboa era um vespeiro de informantes, de espiões. A notícia do descobrimento do Brasil chegou a Ancona, a Veneza, a Florença e a Madri, antes que o rei português a comunicasse a seu primo e rival, na Espanha. Então Cabral, ao que saibamos, não navegou nunca antes, não navegou depois, não recebeu nenhum cargo quando voltou. Para o rei a viagem de Cabral não terá sido um sucesso total. Também não a terão entendido como êxito completo os comerciantes que financiaram alguns dos navios. Pois ele saiu com 13 barcos e regressou com cinco. Então acho que ele sabia tudo sobre a política exterior de Portugal, e tinha domínio diplomático. Daí a escolha para o comando.
Há um espaço muito significativo entre o fim da Escola de Sagres, com a morte do príncipe, e a descoberta ou o achamento. Sagres teve muito dinheiro da Ordem de Cristo, pois o rei, ao criar a ordem, entregou-a ao controle de seu irmão Henrique, o Navegador. Os lucros da ordem foram canalizados para a formação das frotas portuguesas. Além do quê, Henrique foi também um grande empresário. Introduziu a indústria do açúcar nas ilhas do Atlântico, montou pescarias no litoral, introduziu a exploração de certos minerais. Como mestre da Ordem de Cristo, foi casto e pobre pessoalmente. Tudo o que ganhava nessas atividades empregou na navegação, comprando livros, atraindo peritos e desenvolvendo a técnica de construir e pilotar navios. Entendo que Henrique marcou mais do que qualquer outra pessoa ou episódio a transição entre a Idade Média e o Renascimento. Ele não comandava capitães de seus navios e sim serviçais de sua casa. A um deles mandou avançar pela costa africana, e esse homem parou diante de um local onde o mar, literalmente, fervia. E a fervura do mar foi um dos mitos que contiveram a navegação oceânica na Idade Média. Realmente o mar fervia, então ele parou e mandou um barco dizer a dom Henrique: "O mar ferve, não posso continuar". Dom Henrique expediu de volta o mensageiro com a ordem peremptória: "Não obedeça ao que ouviu dizer, mas ao que teus olhos enxergarem". A troca da experiência do "me disseram" pelo que "eu vi" é a passagem da Idade Média para o Renascimento. Bem, quanto à fervura do mar, tratava-se de vento forte, agredindo banco de areia junto ao litoral. Segundo Milton Vargas essa teria sido a primeira, ou uma das primeiras vezes em que a autoridade clássica era substituída pela visão direta, iniciando desse modo o individualismo como regra de vida.
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