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Observador invisível

Postado em 01/01/2001

 

Foto: Cristiano Mascaro/

Repórter e arquiteto, Cristiano Mascaro busca imagens do cotidiano

CECÍLIA PRADA

A obra do fotógrafo Cristiano Mascaro, por sua própria natureza, não permite adjetivos banais – ele não é somente um fotógrafo excelente, um artista admirável, um profissional competente. Porque é uma só coisa: único. O olhar do artista do preto-e-branco essencial, reflexivo e filosófico – discípulo graduado do mestre Cartier-Bresson –, propõe-se a registrar "a aparente desimportância de certos acontecimentos", como um "observador discreto, silencioso e possivelmente invisível" da realidade. Uma proposta que obriga o visitante de suas exposições, o leitor de seus livros, a descobrir o canal de sintonia fina com o momento mágico da criação – aquele em que, no relacionamento do detalhe com o todo, na revelação de um gesto, uma luz, um jogo de sombras, no dramático uso do elemento humano como contraponto da arquitetura ou da paisagem, o artista consegue o registro do essencial.

Aos 53 anos, Cristiano diz imaginar-se como "um fotógrafo com certas pretensões de criar imagens" e que vai em busca de sua imagem onde quer que ela esteja. Em geral a encontra bem perto, esperando-o na próxima esquina, "porque o caminho até a esquina me basta – nesse percurso há um universo de coisas acontecendo". Emocionado primordialmente com "o caminho percorrido para chegar àquela foto" – conversar com as pessoas, conhecê-las, entrar nas casas, xeretar sua sala de visitas e retratar essas vidas, esses pedaços de histórias várias que integram o grande todo da cidade, do país –, diz que as cenas de suas fotos lhe caem no colo, como por um feliz acaso, mas são logo enquadradas na sua particular expressão fotográfica. Uma espécie de "compulsão organizativa".

O local do crime

Há dois elementos básicos na sua formação e nos seus 30 anos de profissão: a iniciação como repórter fotográfico da revista "Veja", que o colocou em contato direto com a realidade social, e o estudo da arquitetura, que o dotou de conhecimento técnico e embasamento intelectual. Repórter especial, no Brasil e no exterior, ensaísta – ganhou dois prêmios literários jornalísticos, em 1992 e em 1999 –, professor de fotojornalismo na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo de Santos, dirigiu o laboratório de recursos audiovisuais da FAU de São Paulo de 1984 a 1988 e se doutorou pela USP em 1995. Realizou diversas exposições, tanto no país como fora dele, e hoje suas fotos fazem parte de importantes coleções e instituições culturais.

Em 1985 recebeu da prefeitura de Paris o prêmio Eugène Atget de fotografia – um fato extremamente significativo, porquanto Mascaro é o continuador da tradição, iniciada por Atget, de "se retirar da fotografia". E que foi definida pelo filósofo e escritor alemão Walter Benjamin como o momento de passagem da arte – do valor de culto ao valor de exposição. Dizia Benjamin (em A Obra de Arte na Época de sua Reprodutibilidade Técnica): "O mérito inexcedível de Atget é ter radicalizado esse processo ao fotografar as ruas de Paris, desertas de homens, por volta de 1900. Com justiça, escreveu-se dele que fotografou as ruas como quem fotografa o local de um crime. Esse local também é deserto. É fotografado por causa dos indícios que contém. Com Atget, as fotos se transformam em autos no processo da história".

Essa, justamente, é a característica principal da obra de Cristiano Mascaro. No livro Luzes da Cidade, de 1996, assim como nas várias exposições que tornaram famoso, aqui e no exterior, esse fotógrafo paulista, o público habituou-se a ver como ele enxerga a metrópole. Porque, diz ele, "minha relação com a capital é íntima, imensa e permanente". Nele, a observação do cotidiano é um compromisso permanente – mas do cotidiano insólito, onde o pitoresco não tem vez. Nem o compromisso ideológico ou a denúncia estereotipada e vazia.

Reconhecendo a importância da fotografia jornalística na divulgação da condição humana, adverte: "Precisamos tomar cuidado para que não se banalize a miséria. A publicação excessiva e sem critérios dessas situações poderá acabar por banalizá-las". Porque o fato é que, em sua opinião, "o Primeiro Mundo adora, compungido, consumir a miséria do Terceiro Mundo, como se dessa forma estivesse contribuindo para a solução de nossos problemas".

Assim, o cotidiano de Mascaro é o do estranhamento – o posto de gasolina deserto e iluminado, na noite intemporal de uma São Paulo fantasmagórica. Uma sala da Bienal, vazia, onde arte são apenas as sombras – da moça, da planta, das grades da janela. Os planos de escadarias. As interseções do concreto ou de encanamentos, formando mondrians. A Praça da Sé ornada de figuras que parecem peças de xadrez de um jogo gigantesco... E que remetem a momentos decisivos da estética literário-cinematográfica. A obra de Mascaro é uma enciclopédia de sofisticação – um instrumento e uma testemunha de cultura, dotada de poder metafórico de altíssimo grau.

Pé na estrada prateada

A fase atual de Mascaro engloba um projeto mais amplo, que acaba de ser realizado, com o apoio da Editora Senac, de fotografar o interior do estado de São Paulo – com o belíssimo resultado que são as 150 imagens em preto-e-branco reunidas no livro São Paulo, lançado recentemente, e uma exposição no Sesc Pompéia. O editor Quartim de Moraes, ao tomar conhecimento do projeto, viu-o como "uma questão de fé" e, movido pela intuição, apoiou-o incondicionalmente. De outubro de 1998 a março de 2000, Mascaro percorreu o interior paulista, no qual percebera, há muitos anos, "que além de suas riquezas ou mazelas havia uma vida qualquer, que se revela à margem das coisas superlativas e sobre a qual valeria a pena se debruçar".

A vivência do estado permeou a biografia do artista – nascido em Catanduva, aos poucos meses de vida foi levado para Campinas, onde morou até os 5 anos. Depois, foram a vida na capital, os estudos, a adolescência e a mocidade – mas sempre com férias passadas em fazendas ou pequenas cidades. "Hoje", diz o fotógrafo, "moro em Carapicuíba, na chamada Grande São Paulo, com a qual convivo em harmonia e com uma certa cumplicidade."

A vontade de "passar a limpo todas essas lembranças" se cristalizou em um momento de decisão – em 1991, após fotografar em um luminoso fim de tarde um trecho de estrada, deixou-se literalmente transportar pelo brilho do pavimento prateado, seduzido pelo apelo literário (constante nesse homem tão culto, para quem "a fotografia está muito mais próxima da literatura do que das artes plásticas") daquele espírito on the road da geração beatnik. "Quando vi o resultado da foto, aquela estrada prateada, lembrei das imagens de Robert Frank e resolvi botar o pé na estrada", diz.

O suíço Robert Frank, considerado um dos grandes fotógrafos vivos, celebrizou-se por sua amizade com os poetas e artistas da geração norte-americana dos anos 50/60 e pelo documentário Pull my Dayse, que teve roteiro de Jack Kerouac, o papa da geração beatnik.

No avesso da foto

Nessa mudança de enfoque, nessa abertura para a complexidade temática, Mascaro desvendou um novo lirismo, passando de um requinte dramático e estetizante para imagens de uma desconcertante (e falsa) simplicidade. Confessa que, certa vez, fora à procura do folclore – pretendia fotografar a festa de Nossa Senhora dos Navegantes, na Bahia, mas foi impedido por um forte vendaval... E assim, já muito mais maduro, ao partir para o interior paulista, não foi atrás do Jeca Tatu, de imagens interioranas típicas, mas ainda, sempre, do cotidiano urbano.

Diz o escritor Ignácio de Loyola Brandão, no prefácio do livro São Paulo: "O que não há aqui são peões corcoveando no lombo de um boi bravo... quermesses, coretos ou footings, churrascos ou bailes de debutantes, shows em conchas acústicas ou procissões... Não há clichês, estereótipos... Não há o visto nem o repetido. Nem por um momento se pensa no déjà vu. Porque não se viu, se está vendo".

E o que se vê é a decisão nítida de fotografar o avesso do clichê – um Guarujá sem multidões, ou com multidão ao fundo, diluída, e o idílico privilégio da areia apenas pontuada pelos sócios de um clube elegante; uma Aparecida dessacralizada, comercializada, onde nem santa nem devoção aparecem, mas sim a brutalidade do estacionamento imundo, com fileiras de ônibus abstratos e iguais; uma Ubatuba, uma Araraquara, Barretos ou Ribeirão Preto que poderiam se chamar qualquer outra coisa – com imagens de virtuosismo delicado, contraponto da condição humana, o desfocado sobre um detalhe, sobre parte da figura. A cabeça "engolida" do homem que abre a porta do refrigerador, uma vendedora "diluída" por trás do mostruário de bijuterias, um "aprisionado" cortador de cana, a ironia das bolas brancas na parede preta onde se destaca a grande bola branca que é a barriga do homem gordo... A composição perfeita, em espelho, dos elementos macacos/crianças no zoológico de Santos. Uma festa para o intelecto.

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