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Abc da cidadania

Postado em 01/01/2001

 

Programa empresarial aposta na melhoria da escola pública

LEO GILSON RIBEIRO

A educação das crianças é a base da cidadania e do desenvolvimento de um país. Foi essa premissa que levou a Fundação Abrinq pelos Direitos da Criança e a Natura Cosméticos a formar uma parceria, em 1995, para levar adiante um programa revolucionário de apoio à melhoria da escola pública, denominado Crer para Ver. Foi a consciência do fardo que representam para o país os cerca de 19 milhões de analfabetos existentes no Brasil que as levou a arregaçar as mangas e fazer algo para mudar essa realidade nada lisonjeira. Mesmo sem desembolsos gigantescos, essa iniciativa teve o mérito de se antecipar ao Banco Mundial (Bird) e ao Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), que no final de outubro passado divulgaram a seguinte conclusão: o Brasil, se quiser proporcionar um patamar superior de qualidade de vida para sua população, terá de investir maciçamente no ensino fundamental e médio.

As sementes lançadas vicejaram e, em 1999, havia 94 projetos originados dessa parceria, com um público-alvo de 227 mil crianças espalhadas por escolas de todo o país. Em 2000, o total de projetos já chegava a 124, beneficiando cerca de 750 mil crianças brasileiras em mais de mil instituições escolares. Apesar do avanço, as patrocinadoras estão conscientes de que essa iniciativa é apenas um modelo, um chamamento a outros elementos da sociedade civil para que colaborem para erradicar do Brasil esse câncer social, que se apresenta com várias faces. Analfabetismo, escola desinteressante, professores despreparados, imensa evasão escolar, repetência de alunos que trabalham para auxiliar os pais ou que precisam urgentemente de ajuda para melhorar seu grau de educação e cultura. E não é preciso grande esforço para compreender que, sem tais objetivos, o Brasil continuará a chapinhar na ignorância, na fácil manipulação do voto, na repetição mecânica de conceitos sem nenhuma relação com a realidade do país.

Em outras palavras, o programa Crer para Ver é um exemplo do que pode ser feito em prol do resgate da cidadania de milhões de jovens brasileiros que hoje vivem sem nenhuma perspectiva de futuro. De sua parte, a Natura investiu R$ 7 milhões provenientes da venda de produtos cosméticos destinados unicamente a esse fim. E a expectativa permanente, tanto da Natura quanto da Abrinq, é de que não só outras empresas mas também os vários órgãos governamentais aos quais compete promover políticas e ações voltadas a melhorar a vida das crianças se engajem nessa proposta. Os resultados já começaram a aparecer, na forma de mobilização de ligas de amigos de bairros, associações de pais e mestres e organizações não-governamentais, que se viram motivadas a participar da tarefa múltipla e difícil que é tirar a escola do estado lamentável em que se encontra.

Da teoria à prática

Como fruto do programa, foram surgindo escolas bilíngües para grupos indígenas, que passaram a utilizar o alfabeto para registrar manifestações até então apenas verbais. Nas aulas, alternam-se professores que utilizam o português para ensinar e professores índios, que lecionam na língua do grupo tribal. Esse projeto se baseou no trabalho pioneiro do educador Paulo Freire, segundo o qual o aluno não deve ser desvinculado de sua realidade, seja ela tribal, rural ou urbana.

No Acre e no sudoeste do Amazonas, funcionam 39 escolas indígenas, onde inclusive são formados professores. Na Comissão Pró-Índio, no Acre, o material didático utilizado é produzido especificamente para cada uma das etnias a que se destina, observando até mesmo as diversas famílias lingüísticas. Os livros abordam, com desenhos e textos intencionalmente realistas, os problemas decorrentes do contato sexual, alertando para os riscos de gravidez e de contaminação. As índias são prevenidas contra o comportamento de forasteiros, muitos dos quais usam a cachaça para mais facilmente seduzi-las.

Em São Paulo, o projeto Dançar na Escola introduz crianças e adolescentes no vasto universo cultural afro-brasileiro. Coordenado pelo baiano Mestre Pitanga, esse trabalho de arte popular é desenvolvido com instrumentos de origem africana, como djembê (divulgado pelos senegaleses), atabaque, surdo, repenique (usados em escolas de samba) e o berimbau, que predomina nas rodas de capoeira.

Um aspecto que chama a atenção no material didático empregado no programa é a total ausência de preconceitos e o compromisso com a veracidade dos fatos, o que muitas vezes acaba se contrapondo ao que ensinam os livros tradicionais. É o que acontece, por exemplo, no projeto Meu Município, em Santa Leopoldina, no Espírito Santo, que cobre 39 comunidades diversas, onde se entrelaçam designações indígenas (crubixa açu, cavu) e de origem européia (Luxemburgo de Baixo, Tirol, Holanda). Nos livros ali utilizados, há textos como: "Os colonizadores (portugueses) desejavam a posse da terra e, ao perceber que os índios não queriam mais trabalhar para eles, começaram os massacres. Com o uso de roupas contaminadas (gripe, sarampo, varíola, etc.), provocaram a morte de muita gente… Como conseqüência, muito desta cultura (indígena) se perdeu". O negro, por sua vez, é apontado como importante mão-de-obra na agropecuária, na urbanização, assim como se destaca sua contribuição para a música popular brasileira.

Em Guassussê, ex-cidade de Conceição do Buraco, que foi submersa pelo açude de Orós, a 400 quilômetros de Fortaleza (CE), o núcleo Teatro Opção leva avante uma árdua tarefa: formar pequenos grupos teatrais. Com uma população de mais de 2,5 mil habitantes, a cidade possui uma escola que não tem sala para os professores, não dispõe de biblioteca nem de livros. Os jovens alunos usam a praça da cidade, sob o sol forte, para ensaiar. Nesse lugar, não é só o flagelo da seca que determina a evasão escolar, pois a falta de oportunidades também leva os estudantes a saírem para centros maiores a fim de ganhar seu sustento. Ali ainda existe um imenso preconceito por parte dos homens, que impede a participação feminina nos espetáculos públicos, pois isso "não é coisa de mulher direita". Apesar desses valores morais equivocados, os habitantes de Guassussê preocupam-se em garantir uma formação escolar de melhor qualidade para seus jovens e organizam bingos a fim de dar respaldo financeiro ao Conselho de Educação da cidade.

A mística São Tomé das Letras (MG), cuja fama se deve tanto aos grupos esotéricos que a procuram quanto à suposta aparição de extraterrestres, está empenhada em transformar a música popular brasileira em mais um apelo turístico da cidade. A Associação Comunitária Viva a Criança coordena aulas de canto, expressão corporal, confecção de instrumentos e instrução musical elementar. Pois ali quem não sabe o dó-ré-mi escrito e solfejado é tido como "narfabeto" em música, defeito imperdoável. A cidade, que sempre viveu com olhos e ouvidos mais voltados para coisas do céu, em breve estará divulgando o primeiro CD idealizado pelos alunos da Associação Comunitária. As crianças nem pensam mais em perder tempo na rua. Em vez disso concentram-se na fabricação de instrumentos musicais: berimbaus, chocalhos, xilofones de água, violões e instrumentos de percussão.

Iniciativas específicas voltadas para deficientes físicos e mentais se constituem, no Recife (PE), no desafio pedagógico de integrar os diferentes. Ao mesmo tempo, em Santo Antônio de Jesus, no interior da Bahia, esforços são desenvolvidos para conciliar a necessidade dos menores de ir em busca do próprio sustento – muitas vezes também do da família – com o processo de alfabetização. O tempo despendido por esses jovens no trabalho em fábricas de fogos de artifício ou na lavoura precisa, invariavelmente, ser compensado por períodos suplementares de estudo, pelo menos até o quarto ano do ensino fundamental, a fim de que seja, senão eliminado, pelo menos minimizado o fenômeno escabroso da repetência, devido à qual muitos deles levam até nove anos para chegar ao fim do curso. São alunos cujas carências não se limitam ao aprendizado escolar. É preciso somar a ele noções básicas de higiene e de algo de que muitos deles nunca ouviram falar: cidadania.

Durante uma longa entrevista concedida à revista "Caros Amigos", de São Paulo, Oded Grajew, presidente da Fundação Abrinq e coordenador da Associação Brasileira dos Empresários pela Cidadania (Cives), foi questionado por vários jornalistas interessados na novidade de seu empreendimento. Grajew viveu vários anos em Israel, e nunca esqueceu o lema que lá encontrou: "Para as crianças, tudo". Ou seja, aos pequenos não podem faltar alimentos, escola, assistência médica. Isso explica por que a Abrinq tem colocado as crianças à frente de seus esforços. Nos relatórios da Unicef sobre a situação da criança no mundo, diz ele, "o Brasil está lá embaixo. Não é uma situação ruim, é péssima, mesmo na comparação com países muito pobres". Acreditando que às vezes é possível fazer muito mais dentro da sociedade civil, tendo o governo como parceiro, ele lançou mão de seus relacionamentos para lembrar aos empresários que colaborar para alcançar uma sociedade mais justa e próspera "também interessa aos negócios". A idéia é introduzir valores sociais na agenda empresarial. "Essa é a minha função", ele faz questão de afirmar.


 

Como participar

 

Um dos objetivos do programa Crer para Ver é apoiar a iniciativa e a criatividade de instituições escolares, bem como sua capacidade de diagnosticar os próprios problemas e de buscar soluções.

Para participar, os projetos devem cumprir alguns quesitos, como pertencer a organizações não-governamentais sem fins lucrativos constituídas juridicamente há mais de um ano (inclusive associações de pais e mestres e conselhos de escola); as ações devem ser dirigidas a escolas públicas (educação infantil e ensino fundamental); as iniciativas devem estar incorporadas à rotina da escola, ter efeito multiplicador e perspectiva de continuidade; é necessário também que sejam articuladas com as secretarias de Educação, durem no mínimo um ano e no máximo dois e apresentem contrapartida financeira para a implantação das ações, pois o programa não financia 100% do projeto.

Os trabalhos são recebidos e analisados durante o ano todo, por um comitê formado por especialistas em educação. O financiamento máximo é de R$ 50 mil por ano.

O programa Crer para Ver tem sede em São Paulo (Rua Lisboa, 224). Na Internet o endereço é www.fundabrinq.org.br  (e-mail:pcpv@fundabrinq.org.br).

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