Postado em 01/01/2001
Falta de investimentos e excesso de veículos paralisam as cidades
IMMACULADA LOPEZ
A cada ano, o automóvel toma mais espaço na vida das cidades. Na Grande São Paulo, por exemplo, são mais de 10 milhões de deslocamentos de carro por dia, o que representa metade das viagens motorizadas, segundo dados de 1997. A outra metade refere-se ao transporte coletivo. Há 30 anos, a participação dos veículos particulares não chegava a um terço.
Esses números se refletem nas ruas, que já não têm hora para congestionar. Engarrafamentos gigantescos são comuns e tornam cada vez mais difícil locomover-se dentro das cidades. Um grande desafio para os novos prefeitos.
Trânsito complicado não é privilégio dos grandes centros. O problema atinge o país inteiro, em qualquer cidade que não tenha se preocupado em planejar a ocupação do solo e a circulação das pessoas. "Essa, infelizmente, é a regra", diz Ailton Brasiliense, presidente da Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP), uma das entidades mais participantes do debate sobre o transporte no país. Pior: segundo o especialista, o problema tende a crescer, pois a população urbana está aumentando e cada vez se movimenta mais. Ou pelo menos tenta movimentar-se.
Na Grande São Paulo, de 1977 a 1997, o índice de mobilidade (número de viagens por habitante) caiu de 1,53 para 1,23, apesar de o índice de motorização (número de automóveis por mil habitantes) ter crescido de 135 a 184. Ou seja, o aumento do número de carros piorou a circulação na cidade.
"No horário de pico, informa Ailton, ocorrem mais ou menos 1,2 milhão de viagens pelas ruas de São Paulo. Se considerarmos que cada viagem corresponde a um passageiro, são 1,2 milhão de pessoas em circulação." Essas pessoas poderiam ser acomodadas em 30 mil ônibus – 40 passageiros por veículo – que circulariam sem problemas pela cidade, no lugar dos 400 mil automóveis que, hoje, ocupam as ruas nesse horário. Para complicar, acrescenta o especialista, "nos últimos 40 anos, pelo menos 25% dos recursos da cidade foram usados na construção de um sistema viário que privilegia os carros, em prejuízo do transporte coletivo".
Essa situação afeta hoje toda a população, mas certamente os moradores de baixa renda são os mais prejudicados. Segundo dados da Secretaria de Transportes Metropolitanos do Estado de São Paulo, a população de baixa renda tem mobilidade pelo menos duas vezes menor que a de alta renda e gasta por viagem um tempo 32% maior, a um custo 25% mais alto. "Geralmente a sociedade se incomoda mais com o congestionamento do que com a injustiça social que significa investir em túneis enquanto as pessoas se acotovelam nos ônibus", diz Arnaldo Pereira, diretor de Planejamento e Expansão dos Transportes Metropolitanos, da Companhia do Metropolitano de São Paulo. Sem esquecer que essa situação leva a um círculo vicioso: dificuldades no transporte coletivo levam o cidadão a sonhar com o carro próprio, que, ao se multiplicar nas ruas, restringe o espaço para o transporte público.
Cada um na sua
Até os anos 60, São Paulo tinha 5 milhões de habitantes e uma estrutura de transporte público baseada em trens e bondes. Nessa época, "a sociedade e o governo passaram a entender que o automóvel merecia ser privilegiado a qualquer custo", diz Ailton Brasiliense. Calçadas foram estreitadas, praças e canteiros centrais sumiram. Segundo Arnaldo Pereira, foi o reflexo, nas cidades, da política nacional de desenvolvimento, definida na época com base na indústria automobilística e no investimento rodoviário. E, ao mesmo tempo que crescia o apelo para o carro particular, o transporte coletivo foi sendo abandonado, como, aliás, diversos outros serviços públicos.
"O automóvel passou a ser considerado a única garantia de mobilidade", explica Arnaldo Pereira. Afinal, as vantagens pareciam irresistíveis: o carro dá privacidade, vai a qualquer lugar, a qualquer hora, por qualquer caminho. O problema é que esses benefícios não podem ser usufruídos de forma crescente por todos. Quanto mais carros nas ruas, menos eles podem ir e vir livremente. E o trânsito acaba se tornando uma tortura diária nas cidades.
Para desafrouxar o nó, diferentes idéias têm sido colocadas em prática: faixas preferenciais para ônibus, solidárias (exclusivas para carros com número mínimo de passageiros), reversíveis (que mudam de sentido de acordo com o horário), além de horários diferenciados para carga e descarga. Foram instalados semáforos inteligentes, que mudam a duração do sinal de acordo com o fluxo de carros, detectado por sensores. Foi criado o rodízio – na cidade de São Paulo o motorista não pode circular na área central expandida nos horários de pico, de acordo com uma escala baseada nas placas dos carros.
"Implantadas a curto prazo e com baixíssimo custo, essas medidas somadas têm feito diferença", garante Nelson I. Maluf El-Hage, diretor da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET) na gestão paulistana passada. Pode ser, mas ele mesmo reconhece que são apenas ações paliativas, para ganhar tempo. "O problema em São Paulo é o excesso de carros. Precisamos de um transporte público eficiente."
Segundo Ailton, as empresas de ônibus também não estariam fazendo a sua parte. No geral, prestam um serviço de má qualidade, com veículos velhos, que levam muito tempo para chegar ao ponto. "Trabalham com o lucro máximo e não com a qualidade máxima", diz o presidente da ANTP. "Precisamos de empresas que sobrevivam prestando um ótimo serviço." Mas a perda de passageiros para as lotações clandestinas, para o carro ou até mesmo para as viagens a pé já está obrigando os empresários a repensar seus negócios e agir de forma diferente.
Diante do impasse, os especialistas afirmam que o poder público deve ser o primeiro a mudar de postura, começando por dar prioridade ao transporte público. Para Ailton, isso requer coragem política. Uma das idéias é começar por utilizar o que já existe. Por exemplo, reservar duas faixas das avenidas importantes para o transporte público nos horários de pico. "Assim, os ônibus, cuja velocidade média na capital paulista é de 12 quilômetros por hora, poderiam alcançar, pelo menos, a velocidade de uma carroça: 20 quilômetros por hora."
No discurso, as prefeituras reconhecem a prioridade do assunto, mas na prática ainda é difícil encontrar um município que pense o transporte dentro de um projeto de desenvolvimento urbano mais amplo. Raramente as secretarias de transporte trabalham em sintonia com o órgão de gestão de trânsito ou com as secretarias de obras viárias. Nas grandes cidades, essa falta de entrosamento torna mais grave o problema, pois nesse caso é necessária a integração entre municípios vizinhos e governo estadual.
Solução no coletivo
Nem tudo é engarrafamento, porém. Felizmente, na contramão da falta de planejamento e de integração, algumas cidades dão bons exemplos de como enfrentar essas questões. A primeira a ser lembrada é sempre Curitiba. Já em 1974, a capital paranaense começou a implantar um sistema de transportes vinculado ao planejamento viário e à ocupação do solo. Definiu eixos de desenvolvimento, instalou vias expressas para ônibus e reorganizou o zoneamento.
"Desde o início, o transporte coletivo foi priorizado", ressalta Fric Kerin, diretor da Companhia de Urbanização da Prefeitura Municipal de Curitiba. Não por acaso, mais da metade dos corredores de ônibus construídos em todo o país está na capital paranaense. Na avaliação de Kerin, o sucesso do projeto dependeu não só da vontade política inicial mas também da continuidade administrativa das últimas cinco gestões – todas ligadas ao ex-prefeito e atual governador Jaime Lerner. Hoje, grande parte da região metropolitana curitibana está coberta por uma rede integrada de transportes, cuja base são os ônibus. Os eixos principais são linhas expressas, com veículos biarticulados que levam até 270 passageiros e circulam em corredores exclusivos. Elas são alimentadas por outras linhas menores, provenientes dos bairros ou da região metropolitana. Há também as linhas diretas – os "ligeirinhos" – que param menos e utilizam estações-tubo, que oferecem maior rapidez de embarque e desembarque. Sem sair dos terminais de integração, os passageiros podem mudar de ônibus com uma única passagem.
Todo o sistema é operado por empresas particulares, que recebem por quilômetro rodado. "O que não isenta a prefeitura de fazer investimentos constantes para ampliar e manter a infra-estrutura", destaca Fric Kerin. Nos últimos anos, a cidade contou com um financiamento de R$ 130 milhões, recebido do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), e cerca de R$ 28 milhões vindos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Foram feitas, também, parcerias com a iniciativa privada para o desenvolvimento de novos veículos, como os ônibus biarticulados. Resultado: sem lotações clandestinas circulando pelas ruas, a cidade tem 209 milhões de passageiros pagantes por ano e cerca de 60% dos proprietários de carros (a frota atual é de cerca de 700 mil veículos) usam o transporte público.
À procura de saídas
Pela primeira vez, nos últimos 30 anos, a região metropolitana de São Paulo também tem um amplo planejamento de transportes. Em julho passado, a Secretaria de Estado dos Transportes Metropolitanos, com participação das várias prefeituras da região, anunciou o Pitu 2020 (Plano Integrado de Transportes Urbanos para os próximos 20 anos). As propostas do Pitu partiram da definição de qual era a cidade desejada: "Uma metrópole competitiva, saudável, equilibrada, responsável e cidadã". Em outras palavras, que fosse capaz de garantir acessibilidade aos serviços e bens urbanos, diminuir a poluição atmosférica e sonora, melhorar o atendimento aos pólos regionais, revitalizar o centro e priorizar o transporte coletivo.
Para atingir tais objetivos, foram previstos, até 2020, 284 quilômetros de metrô (R$ 21,82 bilhões), 260 quilômetros de corredores de ônibus (R$ 1,6 bilhão) e 121 quilômetros de pista dupla do Rodoanel, em torno da região metropolitana (R$ 2,56 bilhões).
Segundo Arnaldo Pereira, que coordenou a elaboração do plano, o Pitu, mesmo que não seja implementado, já trouxe alguns benefícios: provocou discussões e mostrou a necessidade de planejamento. Em vários pontos, por exemplo, ele está sintonizado com as propostas do novo governo da capital paulista, sob gestão do PT. Está prevista a articulação de uma rede integrada de transportes em que ônibus, metrô, trens e peruas se complementem.
Com a integração, as linhas de ônibus serão melhoradas, ficando as áreas não atendidas por transporte coletivo para as lotações, que deverão ser regulamentadas. A nova gestão pretende também colaborar com o governo estadual na ampliação do metrô e na criação de novos corredores de ônibus.
"O principal objetivo", destaca Augusto Portugal, do Grupo de Transporte e Circulação do Instituto Florestan Fernandes, "é melhorar a qualidade do serviço e aliviar o bolso da população." Para viabilizar o plano, será necessário implantar um bilhete único eletrônico, que possa ser usado nos vários sistemas (ônibus, trem, metrô) sem que seja necessário pagar uma nova passagem em cada viagem. Esse bilhete custaria mais do que uma tarifa simples, mas bem menos do que a soma de todas as viagens.
De acordo com o especialista, embora o maior beneficiado seja o usuário, as empresas também sairão ganhando. Afinal, com a melhoria das linhas os custos cairão, diminuirá o mercado paralelo de passes e crescerá o número de passageiros (que hoje fazem até viagens a pé para evitar outra tarifa). Trata-se, entretanto, de tarefa espinhosa, pois não será fácil padronizar bilhetes e catracas, definir uma política tarifária e, principalmente, entrar em acordo com o governo estadual, que é o responsável pelo metrô e pelos trens metropolitanos.
De onde vêm os recursos
As propostas de São Paulo e as ações de Curitiba mostram que, além de planejamento, o transporte precisa de mais investimento. Cabe às prefeituras, além de redirecionar a verba já existente, encontrar novas fontes de recursos. Uma possibilidade apontada pelos especialistas é vincular a arrecadação do Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA) e das multas de trânsito (hoje a cargo da prefeitura) aos investimentos em transporte.
Outra opção é estabelecer uma contribuição em nome das melhorias trazidas pela construção do metrô, já que a regulamentação do uso do solo cabe à prefeitura. Essa idéia está presente, aliás, no projeto de transportes da nova prefeitura paulistana. Dessa forma, a administração municipal poderia cumprir a promessa de colaborar com a ampliação do metrô, embora se espere também mais atenção do governo federal.
Com a descentralização dos serviços de transporte e trânsito, promovida pela Constituição de 1988 e pelo Código Nacional de Trânsito, não cabe mais à União gerenciar ou operar o transporte urbano. Os especialistas, porém, cobram a definição de diretrizes gerais e maior liberação de recursos. "O governo saiu de cena de forma brusca. E hoje os recursos são liberados sem uma política de prioridades ou metas", avalia Rogério Belda, vice-presidente da ANTP. Em sua opinião, a União deve investir no transporte dentro das metrópoles, pois o país também ganha ou perde com o desenvolvimento urbano.
Do seu lado, o governo federal garante que está reassumindo seu papel. "Afinal, a vida econômica e social do país se dá nas cidades, nas quais vivem 85% da população brasileira", reconhece Iêda Lima, coordenadora-geral do recém-criado Grupo Executivo de Transporte Urbano, da Secretaria Especial de Desenvolvimento Urbano, ligada à presidência da República. A criação desse grupo já seria um sinal da nova postura do governo federal. Iêda alerta, entretanto, as prefeituras para que revisem com urgência os planos diretores de transporte e trânsito, muito defasados, a fim de evitar o desperdício de novos investimentos. A grande maioria dos municípios e estados pede recursos (para projetos de metrô, trens ou corredores de ônibus) sem analisar previamente o que ocorre, qual a necessidade real de deslocamento da população e quais as alternativas para tornar o projeto eficaz e adequado à capacidade de endividamento de cada cidade.
Uma das alternativas é a privatização de ramais do metrô, por exemplo. Em São Paulo, um trecho da nova linha Vila Sônia–Luz será finalizado e operado por capital privado. A empresa que vencer a licitação poderá explorar a operação da linha por 30 anos e depois passar o empreendimento para o estado.
Segundo Arnaldo Pereira, da Companhia do Metropolitano de São Paulo, o objetivo da privatização, no caso do transporte paulista, não é livrar-se do serviço e fazer caixa, mas alavancar investimentos e melhorar o nível do metrô. Ele acredita que é possível conciliar o interesse privado e o serviço público sem perda de qualidade. Um exemplo é o corredor de ônibus São Mateus–Jabaquara, que passa por quatro municípios além da capital e desde 1997 vem sendo operado por uma empresa privada, a qual, num prazo de cinco anos, terá de substituir toda a frota de ônibus a diesel por trólebus.
Em Santo André, na Grande São Paulo, a prefeitura também está definindo regras e objetivos para a participação da iniciativa privada nos transportes. O corredor de ônibus da Vila Luzita foi feito por uma empresa particular em troca da licença de operação por 25 anos. Também ficaram a cargo dela a construção do terminal, a sinalização e a aquisição dos ônibus articulados.
Viajar a pé
Caminhar é um dos meios de locomoção mais usados pelos brasileiros. Além dos 10 milhões de viagens diárias em automóvel e 10 milhões em transporte coletivo, a região metropolitana de São Paulo contabiliza mais de 10 milhões de viagens a pé. No total, essa caminhada representa um pouco mais de 34% dos deslocamentos diários. E não estamos falando do deslocamento até o ponto de ônibus, mas de trajetos que poderiam ser percorridos de ônibus ou metrô. Também em outras cidades, segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), a proporção das viagens a pé é grande: 29% em Salvador, 31% em Teresina, 38% em Fortaleza, 35% em Vitória, 47% em Belo Horizonte e 56% em Cuiabá.
"Há dez anos, a média ficava entre 20% e 25%", compara Iêda Lima. As razões apontadas são o desemprego, a queda do poder aquisitivo e o alto preço das tarifas, que fazem o brasileiro pensar duas vezes antes de pegar um ônibus ou metrô. Na última pesquisa realizada na região metropolitana de São Paulo, em 1997, o governo estadual descobriu que 60% das viagens tinham como destino a escola, que ficava longe de casa.
Andar a pé é tão comum que até existe uma entidade em nome dos pedestres. É a Associação Brasileira de Pedestres (Abraspe), cujo presidente, Eduardo José Daros, resume numa frase as dificuldades do caminhante numa cidade como São Paulo: "Andar a pé seria menos ruim se as calçadas não fossem tão estreitas e esburacadas, com carros mal estacionados, lixo espalhado pelo chão, ruas escuras e sem faixas de pedestre... Tudo isso acaba aumentando o desejo das pessoas de ter um carro, que parece ser sinônimo de conforto e segurança".
Poderia ser, se elas pudessem deslocar-se mais livremente por nossas avenidas engarrafadas.
![]() |
|