Postado em 26/08/2014
Inserida no campo das Artes Visuais, a Performance é uma expressão artística que transita à margem do grande público. A EOnline conversou com o artista Flávio Rabelo, do Cambar Coletivo, sobre o fazer performático, happening, Marina Abramovic e sobre o papel do performer neste terreno da arte provocativa
Projeto que chega à sua décima edição, o PERFORMANCE é uma iniciativa do Sesc Campinas de propor uma provocação a partir da arte contemporânea, discutindo a especificidade da performance como meio de expressão artística. A proposta é promover, a cada mês, apresentações e workshops de artistas e coletivos diferentes, que se valem desta linguagem para desenhar suas obras.
Em agosto, o Cambar Coletivo, articulado por Flávio Rabelo (Maceió, Campinas, Diamantina), James Turpin (Miguel Pereira, Londres), Roberto Rezende (Maceió, São Paulo) e Raquel Aguilera (Miguel Pereira, Rio de Janeiro), esteve presente no Sesc Campinas, para um período de oficinas-intervenções e performances adaptadas ao contexto da cidade e dos espaços da Unidade.
A programação de setembro já está pronta e trará o coletivo carioca Herois do Cotidiano, que realiza três performances e uma oficina, com a proposta de potencializar os afetos e gerar microutopias efêmeras e temporárias dentro do espaço urbano, trabalhando na linha da arte relacional e da performance como prática espiritual.
A EOnline conversou com o artista Flávio Rabelo, do Cambar Coletivo, sobre o fazer performático, happening, Marina Abramovic e sobre o papel do performer neste terreno da arte provocativa.
EOnline: Um dos pilares da chamada arte clássica é a busca pelo belo. Onde está essa busca na performance?
Flávio Rabelo: Já há algum tempo o belo deixou de ser um dos pilares na arte, passando a ser visto dentro de sua complexidade, onde cabe inclusive a sua sombra. Pensando especificamente na performance, acho que o belo não se desenha a partir da noção clássica, com a busca pela harmonia e o equilíbrio. A performance dinamita isso tudo. Ou, talvez, seja um belo em outros moldes, criado por outros caminhos.
Há também o fato de muitos artistas já não sentirem a necessidade de desenhar suas obras a partir deste impulso, que perdeu sua força e deixou de ser um elemento motivador decisivo. Ou ainda, podemos pensar que o sentido do belo se ampliou, ou assumiu seu aspecto mais subjetivo; afinal, o belo se cria também pelo olhar do observador. E há os que veem beleza no terror e no grotesco, por exemplo.
A meu ver, o belo na performance está na relação com o cotidiano em seus detalhes mais insignificantes, com a diversidade da vida.
EOnline: É evidente o estranhamento causado pela performance, principalmente sob a perspectiva do senso comum. Como o performer lida com isso? Há um desejo de ser compreendido?
FR: Penso que o artista da performance necessita ter um certo desprendimento, para não criar expectativas de como as pessoas vão reagir. Se a performance enquanto linguagem procura uma desestabilização dos padrões ou dos locais, se ela brinca com isso e desestabiliza as relações e os procedimentos da arte, me parece que o artista deveria estar atento para não cair na armadilha de criar expectativas estabilizadas, como quem desestabiliza e se incomoda com a desestabilização que ocorre.
É muito comum as pessoas quererem entender a performance. Essa coisa da fruição da arte a partir de um entendimento racional. Quando trabalho na rua com performance, as perguntas que mais escuto são: "O que é isso? Mas o que você está fazendo?"
Há uma certa agonia da nossa sociedade, racionalista ocidental, de precisar entender, ou elaborar um entendimento, como "caixinhas de saber", para poder se situar e ficar confortável.
No começo da minha trajetória enquanto performer, tal reação me irritava. Com o tempo fui aceitando isso como uma consequência natural desse tipo de ação. Ou até mesmo, uma de suas linhas de composição mais acentuadas. Percebi que o ato performático desestabilizava o pensamento das pessoas e as suas certezas, de tal maneira que surgia nelas o impulso de reorganizar novamente seus saberes e entendimentos.
EOnline: Como você vê o papel do performer enquanto artista provocador?
FR: Particularmente, gosto de pensar performance como provocação; pessoal e social. Mas, considero que para quem faz performance, é muito importante não se entregar à pretensão de ser “O” artista, como se o lugar do artista o excluísse do envolvimento no jogo de provocação. Ao performer não cabe a vaidade. Se estamos no local da provocação, do risco e da instabilidade, é preciso perceber que essa instabilidade também voltará para si. E antes mesmo de provocar aos outros é necessário se provocar.
Tenho visto pessoas entrando ou trabalhando nessa área, mas querendo certezas, querendo que a plateia reaja desse ou daquele jeito, ou criticando as reações das pessoas. Começo a me questionar se isso faz muito sentido, porque se o território de pesquisa e de ação na performance é a instabilidade, também estamos inseridos nessa instabilidade e precisamos buscar estar preparados para ela. O artista não deveria se julgar superior, como quem diz: eu sou “O” artista performático e estou aqui para provocar você, mas não estou disposto a ser provocado. Essa postura do "provocador vaidoso" não me agrada nem interessa muito. A postura do provocador que não aceita ser provocado, como se houvesse uma hierarquia de valores entre o artista e a plateia, ou o seu interator. A meu ver, estamos todos em pé de igualdade. É um encontro, um caos em pé de igualdade, portanto é preciso estar pronto para receber esse caos de volta, surfar nele sem tantas expectativas de como ele voltará para si. É um trabalho muito difícil. Pode ser aparentemente simples, mas é extremamente arriscado e exige uma tenacidade muito grande de quem lida com essa linguagem.
EOnline: Fale um pouco do seu processo criativo. De onde vêm os seus trabalhos no Cambar Coletivo?
FR: A performance pode surgir de qualquer lugar, ou de lugar nenhum. No meu caso, surge principalmente a partir do cotidiano, de questões pessoais. Por exemplo, iniciei aqui no Sesc Campinas um novo trabalho chamado Pédememória, relacionado ao momento em que estou vivendo agora, com o resgate da minha ancestralidade e o desejo de querer me reconectar a ela, prestando uma homenagem às minhas avós e bisavós. Isto surgiu de um caos interno, pessoal. Meu trabalho é transformar esse caos numa ação, dentro das linhas de pesquisa que trabalhamos no Cambar Coletivo. Assim, criei uma performance que consiste na troca de massagens, nos pés de mulheres com mais de 50 anos, por depoimentos sobre suas avós.
Mas, também pode surgir de livros que li, de situações observadas ou que ouvi falar. Pode surgir de um desejo que nem sei definir qual é direito no início, de sonhos e ainda de outras obras artísticas. Performance gera performance também; costumo trabalhar com séries e/ou projetos por isso. Porque cada ação que realizo acaba gerando outras criações.
Mas, pensando no Cambar como um coletivo, temos interesse especial por ações que se criam a partir de derivas, de cartografias e jogos.
EOnline: Sobre performance e happening, Eloísa Brantes, do Coletivo Líquida Ação, fala que o "acontecimento" (happening, em inglês) é "condição de existência da performance". A seu modo de ver, é possível performance sem happening?
FR: No livro “Performance como Linguagem”, o pesquisador e performer Renato Cohen faz uma distinção histórica entre esses dois gêneros, pensando o acontecimento no Happening. Para Cohen, a distinção tem a ver com a estruturação do acontecimento. O happening privilegia a ideia de espontaneidade, de um acordo, de algo que combinamos aqui neste momento e fazemos, o que se aproxima do fluxo da vida e da ideia de espontâneo. Já a performance estaria um “passo adiante”, no sentido de estruturação da ação. Esse pensamento foi importante na época em que Cohen escreveu o livro, mas hoje as abordagens são mais complexas. Não sei se este é um problema ou um falso problema, tentar distinguir essas duas coisas... Mas essa construção de território ainda é uma discussão atual.
EOnline: Em relação ao ato performático, que de maneira geral é classificado como uma coisa feita de qualquer jeito, que qualquer um faria...
FR: É muito fácil a performance ser vista como qualquer coisa, afinal este termo é usado cotidianamente em várias áreas. A performance artística também tem um sentido muito amplo, paradoxal, e, no senso comum, virou quase que um sinônimo de coisa mal feita, mal pensada. Nesse sentido, o livro de Cohen tem a importância de tentar estabelecer outros padrões e outros entendimentos para a performance, num esforço para desvinculá-la da ideia de algo feito de qualquer jeito. De lá pra cá muita coisa foi feita e escrita sobre o assunto. Há também no Brasil muitos outros pensadores que deram continuidade à pesquisa sobre a performance como linguagem, como por exemplo o Lúcio Agra (PUC/SP), o Fernando Villar (UnB), a Bia Medeiros (UnB), o Cassiano Quilicy Unicamp e a Eleonora Fabião (UFRJ). Cito estes porque são os que mais estive próximo nos últimos anos. Inclusive há uma citação da Eleonora que, para nós do Cambar, é muito preciosa, pois fala da ideia de performance como a escrita de programas. Nessa citação, são apresentadas 3 características que, acreditamos, podem ajudar a tirar a performance do lugar do mal feito: ela fala que as ações precisam ser conceitualmente polidas, meticulosamente calculadas e que exigem uma tenacidade aguda dos executores. O que ela chama de programa ou de performance, tem essas 3 características. Se criarmos ações tomando esses pressupostos por norte, não será qualquer coisa, mas ao mesmo tempo pode ser qualquer coisa. O que você precisa é pegar aquela qualquer coisa da sua vida, que te motiva, te afeta, te rasga, te inspira, seja lá o que for, e empenhar-se para transformá-la numa ação artística. Eleonora Fabião também tenta afastar a performance da ideia de improviso ao defender que o performer se programa para poder desprogramar. Não há ensaio: há uma preparação por outros caminhos, para por fim executar a ação.
EOnline: Em 2010, o Museum of Modern Art (MoMA – Londres) realizou sua primeira exposição inteiramente dedicada à performance: uma retrospectiva da obra de Marina Abramovic, pioneira na arte da performance, cujos primeiros trabalhos datam do começo da década de 1970. Qual a sua opinião sobre este assunto?
FR: O espaço simbólico ocupado pela performance é o da marginalidade, ou de uma arte vista como alternativa e não oficial. Mais do que em termos do prédio físico, do espaço museu, Marina conseguiu colocar a performance num antilugar. É como se ela fosse para o inverso da performance, colocando no centro uma arte situada à margem. E faz isso com notoriedade, reconhecimento, atraindo a atenção de críticos etc., o que causou um enorme rebuliço no pensamento dos performers. É como se ela tivesse mexido novamente com esta linguagem, mas em direção ao sentido oposto. Algo que somente ela poderia ter feito. Qualquer outra pessoa que o fizesse, não teria essa repercussão.
Marina tem trabalhos extremamente radicais, alternativos, até cruéis, e que se estabeleceram ao longo dos anos como notórios na performance. Até o momento em que ela faz essa inversão, rumo ao quase oposto, quase se contradizendo. A princípio caímos na tentação de julgá-la, mas por outro lado é como se ela conseguisse fissurar um discurso que foi criado na década de 1970 e que praticamente todos os performers seguiram reproduzindo. Ela rompe com esse discurso da alternatividade, de ser marginal, que acabou se homogeneizando e se tornando um discurso estabelecido. Só não sei se ela tem consciência disso...
EOnline: A exposição serviu também para ressaltar a possibilidade de diálogo da performance com outros suportes...
FR: E com o próprio reverso, com a própria sombra. As coisas são complexas e a performance é esse lugar da complexidade. Não é dualista; preto e branco; certo e errado; dentro e fora. É sempre esse entrelugar. Por isso acho que mais uma vez, Marina conseguiu ocupar um entrelugar e desestabilizar seu próprio terreno.