Postado em 01/01/2001
Instituição oferece microcrédito a empreendedores de baixa renda
Luzia Mara Barbosa precisava de R$ 1 mil para instalar sua barraca de feira em Jundiaí; José Luís Mendonça queria R$ 5 mil para montar sua gráfica em Matão; Serafim Valério tinha planos de comprar um carrinho de pipoca que custava R$ 250 e iniciar uma atividade profissional em Piedade; Darci de Oliveira, de Guariba, sonhava com uma engenhoca para produzir garapa e necessitava de R$ 600; Paulo Jesuíno, de Tupã, planejava fazer pães para vender de porta em porta; Vivaldo Brito, também de Tupã, precisava de R$ 218 para comprar material e tinta e fazer o que mais sabia: reforma de cadeiras de palhinha. Em comum, todos eles, brasileiros do interior de São Paulo, tinham uma ambição: trabalhar por conta própria e deixar para trás, definitivamente, a humilhação de viver desempregados ou sob a ameaça de não saber de onde tirar o sustento do dia-a-dia.
Para Luzia, Serafim, Paulo Jesuíno e Darci realizarem suas metas, no entanto, todos eles, também em comum, precisavam levantar o capital inicial para tocar os novos empreendimentos. Sem nenhum pé-de-meia guardado ou parentes que pudessem dispor da quantia necessária, alguns deles procuraram o gerente da agência bancária de sua cidade em busca dos recursos.
Rápido, apesar de não terem nome sujo na praça, os empreendedores brasileiros em potencial descobriram que, de saída, esbarravam numa exigência básica: não tinham conta em banco e, portanto, eram considerados inaptos para ter acesso a esse tipo de linha de crédito. Gentilmente, os gerentes os despacharam com fichas e cadastros que, com a história de vida de cada um, jamais poderiam ser preenchidos. E, se fossem, possivelmente as condições do empréstimo bancário, a juros anuais de 250%, tornariam inviável a manutenção de qualquer atividade. Mesmo o mais engenhoso pipoqueiro, padeiro, gráfico ou feirante não conseguiria manter seu pequeno negócio, de subsistência, e ainda pagar as taxas de juros exigidas pelos bancos comerciais de varejo. No fim, como aconteceu e acontece com milhões de brasileiros, não apenas das camadas populares mas também das classes média e alta, o recurso do empréstimo bancário acaba asfixiando o empreendedor e o empreendimento, num ciclo em que perdem todos: o banco, que incha sua carteira de clientes inadimplentes; o empreendedor, que perde não apenas o negócio mas o bom nome na praça e qualquer chance de se recuperar; o país, por fim, que vê engrossarem as fileiras de excluídos e marginalizados.
Foi para tentar quebrar esse círculo vicioso que surgiu uma idéia simples e objetiva: criar um banco cuja função fosse essencialmente social. Um local com recursos públicos e privados que pudesse integrar a grande parcela de brasileiros atirada à pobreza e tolhida de qualquer possibilidade de ascensão social. Mirando-se no exemplo da experiência do Grameen Bank (ver texto abaixo), em Bangladesh que realiza empréstimo de pequenas quantias a pessoas para que, sozinhas ou em grupo, tenham uma chance de iniciar atividade própria , começaram a surgir no Brasil várias iniciativas destinadas a criar instituições financeiras para atender exclusivamente pessoas de baixa renda.
Com o nome genérico de Banco do Povo, essas iniciativas para providenciar o chamado microcrédito já pipocam em muitos estados e municípios brasileiros. Em São Paulo, possivelmente pela condição de estado mais populoso e mais rico da federação, a experiência do Banco do Povo vem se destacando por ser mais organizada e abrangente do que qualquer outra similar em execução no Brasil.
Disponível já em quase 80 municípios paulistas, o projeto do Banco do Povo em São Paulo foi idealizado pela Secretaria do Emprego e Relações do Trabalho, como mais um programa destinado a reduzir o desemprego galopante que atinge diversas regiões. A iniciativa, segundo o secretário Walter Barelli, vem colhendo resultados positivos, e o programa de microcrédito, junto com uma demanda cada vez maior dos microempreendedores, está conseguindo o reconhecimento da população e das organizações interessadas em amenizar os conflitos sociais.
"Para viabilizar a estrutura do microcrédito foi imprescindível formar uma parceria entre governo estadual, prefeituras e órgãos e entidades de apoio, como o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e o Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas de São Paulo (Sebrae-SP)", afirmou Barelli. Em sua opinião, essa união de recursos humanos e materiais está possibilitando uma virada de mentalidade no Brasil, onde ainda é incipiente a cultura de empréstimos a pequenas taxas de juros, essencial para que a população de baixa renda no país possa almejar condições mais dignas de vida por meio de empreendimentos pessoais ou coletivos, realizados em cooperativas de trabalhadores.
Expoente dessa virada de mentalidade no país é o fato de o Banco do Povo ter uma baixíssima taxa de inadimplência. Segundo dados revelados pela Secretaria do Emprego e Relações do Trabalho, a cada R$ 100 emprestados, apenas R$ 1,40 fica sem retorno.
"O povo é cumpridor e, para o beneficiado pelo programa de crédito, é uma questão de honra saldar em dia seu compromisso", enfatiza Barelli. O secretário admite que a taxa de inadimplência de 1,4% pode vir a ficar ainda menor porque, em muitos casos, o que está ocorrendo é apenas um atraso nos pagamentos, que poderão, em breve, ser quitados. "Muitas vezes o beneficiado tem por patrimônio apenas o seu nome, e essa é a garantia maior exigida pelo Banco do Povo", acrescenta. "Antes de tudo, esses trabalhadores são pessoas de caráter, honestas."
Segredo do sucesso
Os bons resultados da iniciativa certamente se devem ao fato de o Banco do Povo trabalhar com uma taxa de juros de apenas 1% ao mês e de procurar capacitar o tomador do empréstimo a melhor gerenciar seu negócio. Junto do processo de empréstimo, o programa do Banco do Povo, especialmente na parceria com o Sebrae-SP, montou um acompanhamento prévio para investigar a viabilidade comercial do negócio planejado e, após a liberação dos recursos, conta ainda com uma assessoria para que as atividades sejam administradas da melhor maneira possível.
Para o diretor superintendente do Sebrae-SP, Fernando Leça, "o microcrédito é uma das ações que mais positivamente atendem ao pequeno empreendedor". Em sua opinião, a chave do êxito da experiência está no trabalho de apoio pós-crédito, em que a entidade atua, para ajudar o novo empreendedor a conseguir manter seu negócio rentável e competitivo no mercado.
José Roberto Generoso, o presidente do Banco do Povo em São Paulo, explica o procedimento: "Antes de emprestar o dinheiro, os agentes de crédito (pessoas da própria comunidade que conhecem bem, não somente os candidatos ao crédito, mas também a capacidade do município em absorver os serviços ou os produtos sugeridos) fazem um diagnóstico sobre a viabilidade do empreendimento em que o microcrédito será aplicado; depois da qualificação técnica do negócio, com o aval do diagnóstico positivo, o Banco do Povo auxilia o novo microempresário a aprimorar sua capacidade administrativa e a ganhar uma nova visão de mercado".
Por definição, o Banco do Povo é um fundo de investimento de crédito popular que ajuda a formar novos micro e pequenos empreendedores, e a estruturar cooperativas, por meio de recursos financiados a taxas sem paralelo no mercado financeiro nacional.
Os recursos para o banco são fornecidos pelo governo estadual, que entra com cerca de 90% do total, e pelas prefeituras, que complementam o montante. Um aliado poderoso na obtenção desses recursos, por parte do estado, tem sido o BNDES. Depois de um longo período funcionando como agente de crédito empenhado em garantir financiamento apenas a grandes negócios e empresários, a instituição está partindo agora para um campo efetivamente social e destinando verbas para diversos programas de microcrédito, incluindo o do Banco do Povo e o Crédito Produtivo Popular. Segundo dados do BNDES, de 2001 a 2005, deverão ser liberados R$ 5 bilhões para projetos de cunho social.
Com uma carteira de recursos estimada em R$ 35 milhões, o Banco do Povo preestabeleceu faixas para todos os tipos de empréstimos. As pessoas jurídicas ou físicas podem receber entre R$ 200 e R$ 5 mil. Para as cooperativas e associações, os valores variam de R$ 200 a R$ 25 mil.
Os pretendentes considerados aptos a participar do programa podem ter personalidade física ou jurídica, desde que não sejam funcionários públicos, que trabalhem por conta própria, disponham de um negócio que gere renda familiar ou queiram implantá-lo. Podem participar também as cooperativas ou associações que estejam legalmente constituídas e realizem algum tipo de empreendimento.
Exigências
Um dos pré-requisitos básicos do Banco do Povo é de o pretendente estar em atividade, em setor formal ou informal, há pelo menos seis meses dentro de seu município. Residência fixa e habitar no mínimo há dois anos na cidade em questão são duas outras exigências classificatórias. Quem estiver disposto a participar também não pode ter restrições no Serviço de Proteção ao Crédito, o SPC, ou na Serasa. Outro item considerado importante é o usuário do programa, incluindo as cooperativas, ter tido um ganho bruto não superior a R$ 87,3 mil no ano anterior.
O Banco do Povo financia capital de giro, ou seja, a compra de mercadorias e matéria-prima industrializáveis. Por isso, todos os cheques são liberados em nome dos fornecedores, o que, segundo os realizadores do programa, evita a ocorrência de um possível desvio de verba. Investimentos fixos, como a aquisição de máquinas, equipamentos e ferramentas, também são financiáveis. É vetado o financiamento para o setor agropecuário de sementes, fertilizantes e animais. Entre os pedidos que não são atendidos está o de recursos para pagamento de dívidas, aquisição de veículo de passeio ou atividades que possam infringir regras de conduta comercial, como pirataria de produtos industrializados.
Para saldar seu débito com o Banco do Povo, o beneficiado pode escolher várias formas de pagamento, de acordo com suas possibilidades de ganho mensal e a partir do projeto de viabilidade estipulado pelos agentes de crédito. Para capital de giro, em prestações fixas, o tomador de crédito terá prazo de no máximo seis meses para quitar suas obrigações. Para capital fixo, em que normalmente a faixa de endividamento é maior, o prazo é também alongado. Pode chegar a 18 meses, também sempre em parcelas mensais, iguais e fixas.
A situação de cada candidato, depois de apreciada pelo agente de crédito, é analisada pelo Comitê de Crédito Municipal, que aprova ou veta a solicitação de empréstimo. No caso de concessão dos recursos, a agência da Nossa Caixa Nosso Banco do município processa o contrato que vai ser assinado por todos os envolvidos e responsáveis, inclusive com a formalização das garantias. O cheque estará disponível poucos dias depois.
Como garantia, os pretendentes podem apresentar um avalista (não há restrição a parente de primeiro grau), idôneo e com comprovada capacidade de pagamento. Caso não seja possível apresentar um avalista, o futuro microempresário tem a opção de alienar 100% dos bens financiados para o Banco do Povo. Ou seja, no caso de inadimplência, o banco tem a possibilidade até hoje não exercida de seqüestrar os bens financiados.
Segundo os números do último balanço do Banco do Povo, divulgado em outubro, já foram beneficiados pelo programa de microcrédito cerca de 20 mil empreendedores em São Paulo, com um valor total de recursos liberados da ordem de R$ 11 milhões.
Empreendimentos ligados à alimentação, como lanchonetes, bares e restaurantes, lideram o volume de captação, com mais de R$ 1,3 milhão em créditos liberados. Serviços como os de costureiras, bordadeiras e cabeleireiras, assim como atividades relacionadas a floriculturas, academias de ginástica, sapatarias, feiras livres e serralherias também ocupam posições de destaque no ranking.
Na capital, onde a primeira agência do Banco do Povo foi inaugurada em 23 de setembro, o plano, ainda por falta de entendimentos com a prefeitura, está funcionando em parceria com o Programa de Auto-Emprego (PAE).
Na abertura da agência, quatro empreendedoras foram contempladas com o início das operações de crédito na capital paulista. Duas delas, Deonildes de Santos Padiá e Deildes Gonçalves de Oliveira, fizeram o curso de capacitação oferecido pelo PAE e se uniram para montar o negócio próprio. Elas obtiveram um empréstimo de R$ 200, com o qual poderão comprar matéria-prima para a fabricação e venda de doces e salgados. Em três meses, Deonildes e Deildes deverão saldar a dívida em parcelas iguais de R$ 68,50, o que dá um total geral de R$ 205,50.
Outro cheque do Banco do Povo foi entregue a outra dupla de mulheres empreendedoras: Lourdes Maria da Silva e Antonia Gomes de Oliveira, que se habilitaram com um curso de corte e costura. Com um crédito de R$ 650, a ser saldado num período de seis meses, elas poderão comprar tecidos para a fabricação de lençóis e fronhas. As duas atividades foram consideradas viáveis pelos agentes de crédito.
Entre as diversas virtudes da experiência do Banco do Povo, uma delas foi descobrir que 56% dos tomadores de empréstimo, que estão se transformando em empreendedores, são constituídos por mulheres. Um fato histórico no Brasil é a maioria dos lares estar sendo sustentada pelas mulheres, e, portanto, a possibilidade de uma iniciativa como a do Banco do Povo aumentar a capacidade feminina de ampliar a renda familiar é das mais positivas.
"Ainda não temos uma pesquisa que avalie o perfil das mulheres microempreendedoras, mas nossa sensibilidade aponta para o fato de elas terem se tornado maioria na obtenção dos empréstimos por serem grandes organizadoras e possuírem habilidades adquiridas em seus trabalhos domésticos", revelou Barelli. "Como sabem costurar, cozinhar, com o microcrédito poderão expandir essas atividades e ganhar dinheiro com elas."
A história quis que uma das experiências mais fascinantes das finanças modernas ocorresse em uma das regiões mais pobres do mundo. Há 30 anos nascia em Bangladesh, país vizinho à Índia, com uma das menores rendas per capita do planeta, o projeto do Grameen Bank (banco da aldeia, no idioma bengali), que, depois, acabaria se tornando referência dos chamados Bancos do Povo em cerca de 40 países da Ásia à América Latina, incluindo o Brasil. A proposta da instituição surgiu quando o bengalês Muhammad Yunus, depois de doutorar-se em economia na universidade norte-americana de Vanderbilt, voltou a Bangladesh. Ele percebeu que, nas populações locais, a grande maioria das pessoas vivia (e vive ainda hoje) com menos de 1 dólar por dia. Nessas condições, um empréstimo de quantias consideradas irrisórias, como US$ 30, poderia fazer a diferença entre a miséria absoluta e uma estrutura de ganha-pão de subsistência. Animado com a idéia, ele a pôs em prática (com recursos do próprio bolso), e deu início a uma carteira de crédito para pessoas completamente excluídas do sistema financeiro oficial. Com índice nulo de inadimplência, o projeto prosperou até se transformar no Grameen Bank, em 1983. Atualmente, o banco tem uma clientela de 2,4 milhões de pessoas e movimenta mais de US$ 2 bilhões, com uma média de empréstimos de US$ 180 por pessoa.
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