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O ocaso das fronteiras

Postado em 01/07/1998

MARCOS FAERMAN

A história das fronteiras do Brasil tem quase exatamente cinco séculos. Alguns anos a mais, se contarmos que boa parte dos seus episódios se ligam àquele velho Tratado de Tordesilhas, nascido nos estertores do século 15, quando reis recorriam ao papa para elucidar os destinos de povos conhecidos e desconhecidos. Quando ainda se discutia se os índios eram animais com ou sem alma. Tais fronteiras geográficas e do saber foram explicitadas pelos caminhos da história. Para o professor René Dreifuss, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, as estruturas de tais fronteiras, que podemos chamar de "clássicas", ainda persistem. Mas são ultrapassadas e até negadas por novas estruturas tecnológicas, políticas, econômicas, culturais e até existenciais construídas em nosso tempo e que dão a marca mais especial do final do século 20.

"O processo mundializante atravessa as linhas demarcatórias das fronteiras de várias formas", diz Dreifuss. "Hoje", prossegue, "há um deslocamento permanente de milhões de pessoas na Europa que atravessam fronteiras banalizadas. Em muitos casos, como o de alguns aeroportos, não se passa por elas: já se está dentro de algum lugar." Dreifuss lembra também que nenhuma fronteira detém uma imagem ou uma palavra falada. "Não há condições de estabelecer uma fronteira nas telecomunicações ou na informática."

Hoje, segue Dreifuss, a ação de empresas (ver texto abaixo), de governos, de grupos não-governamentais praticamente ignora essas fronteiras. Assim como em alguns lugares você não toma conhecimento da delimitação entre uma cidade e outra. E o professor arrisca: "Dentro de 150 anos, o cenário mundial poderá conter um novo ente político, a União das Repúblicas da América do Sul... Mas houve um tempo, há 500 anos, em que as fronteiras de uma cidade eram seus muros".

A análise de Dreifuss faz projeções de um futuro (talvez imediato) em que, desde a Internet e seus milhões de navegadores até os grandes bancos internacionais e os processos de unificacão da Europa ou o Mercosul, pode-se esperar uma espécie de diluição das fronteiras (leia também nesta edição as idéias do sociólogo Octávio Ianni sobre a globalização). Mas esse fenômeno só pode ser entendido como etapa de uma longa história, que nos últimos séculos valoriza enormemente as fronteiras das nações.

Fronteiras vivas

Na linguagem dos geopolíticos - herança direta do geógrafo alemão Friedrich Ratzel -, as fronteiras de uma nação podem ser vivas - tensas, militarizadas - ou mortas. Cinco séculos de história do Brasil demonstram que fronteiras mortas podem passar a vivas. E fronteiras vivas podem, no sentido geopolítico, morrer. De 1980 para cá, o governo federal passou a considerar, fosse qual fosse o partido ou governante, que as fronteiras problemáticas, quentes, do Brasil eram as do norte, as da Amazônia.

Mas nem sempre foi assim. "Historicamente, a política do Brasil foi sempre formulada em função da bacia do Prata", diz o professor Shiguenoli Miyamoto, do Núcleo de Estudos Estratégicos da Universidade de Campinas (Unicamp). Devido ao fato de nessa região existirem dois países fortes, Argentina e Paraguai, os grandes conflitos de fronteiras se concentraram ali.

Cada rio, cada colina, cada bocado de terra era disputado a tiros de garrucha, fuzil, canhão ou a flechas, porque batalhões de índios também participavam dos embates. Nos museus, nos livros de história, em narrativas populares, contadas ao pé de fogueiras, em canções e poemas épicos do Rio Grande do Sul, Argentina, Uruguai ou Paraguai, nas noites geladas da região missioneira, muitos desses feitos e mitos ainda estão vivos. É a lembrança de guerras perdidas que alimentou sonhos e pesadelos das fronteiras sulistas de antanho, recolhidas também na gesta de escritores como Érico Veríssimo.

Para ficar ainda mais claro o conceito de fronteira - viva ou morta - podemos olhar para o continente europeu, como diz o professor da Unicamp. Se imaginamos cenários das fronteiras da Alemanha e da França, por exemplo, ao longo da Primeira e da Segunda Guerra Mundial, estaremos diante das fronteiras vivas, naquele despudor de combates e mortes. Bem diferente seria o quadro histórico tradicional das fronteiras quietas da França e da Suíça. Mas voltemos às fronteiras sulistas do Brasil.

"Sempre houve disputas intensas nessa região", diz o professor Miyamoto, "e prevaleceu a idéia de que seria o líder inconteste da América Latina quem controlasse a bacia do Prata." Por isso, o Brasil sempre concentrou suas forças militares ali, e não ao longo de outras fronteiras com baixa densidade populacional e países de menor poderio militar e econômico do que a Argentina e o Paraguai - antes de este país ser praticamente destruído na guerra que foi de 1864 a 1870.

Tordesilhas

Quando o menino Max se apaixonou pela história, nem poderia sonhar que seria um oficial da marinha do Brasil - o contra-almirante Max Justo Guedes. Mas ele nem sabia ler, tinha cinco anos apenas, quando ficou fascinado pela História do mundo para crianças, de Monteiro Lobato. Quem ia à sua casa tinha de contar um pedacinho do livro para ele.

Hoje, aos 70 anos de idade, é diretor do Departamento do Patrimônio Histórico e Cultural da Marinha. Ainda é fascinado por obras historiográficas - e também as escreve. O almirante fala das peripécias e ardis de séculos de guerras e controvérsias das fronteiras do Brasil, com um dote narrativo singular.

As questões de limites que envolvem territórios de Portugal e Espanha fazem surgir o Tratado de Tordesilhas, de 1494, que traça a linha divisória das terras possíveis da Espanha e de Portugal no Novo Mundo.

Ora, segundo o almirante Max, considerado um dos maiores conhecedores da cartografia do Brasil colonial e imperial, inclusive por mestres europeus, esse tratado dava margem a muitas dúvidas. Por exemplo, sabia-se que a linha de Tordesilhas demarcaria como território português a porção de terra que ia de Cananéia, no litoral paulista, até as proximidades da foz do rio Pará, no norte. Por sua vez, a história registra a existência de cartas ao rei de Portugal escritas por navegantes que haviam caído prisioneiros dos espanhóis, dizendo que "sabe-se perfeitamente que os limites entre os territórios de Vossa Alteza e os territórios do rei de Castela são o equador". Tudo desenhava a cena do conflito. Porque os espanhóis, instalados nas terras bem ao sul, junto ao rio da Prata, quando mandam o primeiro governador fazer a gobernación de Buenos Aires, já lhe dão ordens de fundar povoações ao sul de Cananéia.

"Mas nunca foram bem-sucedidos nisso", diz o almirante. "Em 1541, devido ao cerco e combate de índios muito aguerridos, tiveram de abandonar até mesmo a primeira cidade de Buenos Aires, fundada em 1536."

Só em 1580, por obra de Juan de Garay, se faz a segunda inauguração da futura metrópole de Buenos Aires, com o apoio logístico da província do Paraguai, a partir da vila de Nuestra Señora de Santa María de la Asunción (Assunção), fundada em 1537.

Mas os problemas dos espanhóis alojados no rio da Prata não se resumiam a Buenos Aires. Como a margem esquerda do rio da Prata esteve relativamente abandonada durante o século 16, não havia empecilho às expedições que exploravam aquele litoral. Assim, pôde Martim Afonso de Sousa, em 1531, tomar para Portugal metade do estuário platino. E, conforme o Tratado de Tordesilhas, todo ele era espanhol.

A união das coroas ibéricas (Espanha e Portugal), em 1580, facilitou mais ainda a expansão portuguesa. Como explica o almirante Max, o tabuleiro de xadrez em que jogavam tais protagonistas vai ficando cada vez mais intrincado. Graças à existência de Assunção, os espanhóis de Buenos Aires preferem transitar em trilhas sob o seu domínio. Além do mais, aos espanhóis parece cada vez mais desinteressante o litoral brasileiro. O que poderiam lá encontrar, imaginavam, além de índios e mais índios? Ou portugueses?

Rei Branco

Nessas alturas, a imaginação dos espanhóis era incendiada pela idéia de que deveriam se voltar obsessivamente para a caçada aos minérios que jorravam à luz do dia em países como a Bolívia ou o Peru. Os portugueses, desde fins do século 16, buscam, até a loucura, encontrar a prata que estaria sob o controle de um tal "Rei Branco", instalado em montanhas e selvas cobertas pela aura do mistério.

Um aventureiro português ao sabor da lenda, ou da verdade, do Rei Branco, Senhor da Prata, desvia uma expedição que se aventurava por Pernambuco, toma a rota do sul, entra no rio da Prata, avança pelo rio Paraná e depois pelas águas negras do rio Paraguai, sempre atrás das luxuriosas riquezas do estranho e sempre oculto rei.

O implacável jogo que iria devorar anos de guerra e de paz - e vidas - está lançado. Mas o que fazem, na hora de nele intervir, os portugueses? O almirante diz, com uma carga de deliciosa ironia, que os portugueses, para deixar o rio da Prata sob sua jurisdição, alargam imensamente a costa norte do Brasil. "Como era dificílimo o cálculo da longitude", diz o almirante Max, "eles podiam colocar o cabo de Santo Agostinho onde bem entendessem."

"Por isso, quando traçavam o meridiano pelo equador, o rio da Prata caía na jurisdição portuguesa. Até o século 18, então, nós teremos mapas em que o rio da Prata (por astúcia dos portugueses) fica no mesmo meridiano que passa pelas imediações do rio Pará, na tentativa de manter as aparências do velho Tratado de Tordesilhas."

Centro de contrabando

Mas para entender o cenário político, militar e econômico de quase um século nas fronteiras do sul, é preciso situar o fato importantíssimo que vai acontecer em 1680, quando os portugueses ousam criar uma cidadela no rio da Prata, no lado oposto a Buenos Aires. Isto é, cara a cara com os espanhóis. Seu nome é Colônia do Sacramento, e sua ressonância geopolítica será imensa.

Em Nélson Werneck Sodré (História militar do Brasil) podemos ver que Colônia do Sacramento representava toda uma praça organizada já com o intuito de "exercer o contrabando, neutralizando a ação fiscalizadora e centralizadora de Buenos Aires. Tal função deveria ser sempre vista como ameaçadora pela coroa espanhola, que não recuaria diante de sacrifício algum para neutralizá-la ou lhe dar fim com a destruição daquela praça".

Quem vai traçar interessante retrato - quase cenográfico - de Colônia do Sacramento é o historiador Pedro Calmon, em sua História do Brasil. Ele nos diz que "Sacramento era antes um posto avançado, importante e próspero em virtude do contrabando, mutuamente vantajoso, para a guarnição da praça e os comerciantes de Buenos Aires, e tão ativo que, em breve, entre 1716 e 1762, sua fase áurea, cresceu em 18 ruas, adquiriu um casario burguês e mesmo faustoso, que se alinhou a par das muralhas, (...) e passou a concentrar uma pequena mas rica sociedade de traficantes, embarcadiços, comboreiros, que compravam e vendiam mercadorias do Pampa e do Peru, açúcar e escravos do norte".Nesse período, mais de uma vez, Colônia do Sacramento passa de mãos portuguesas para espanholas e vice-versa.

Os ingleses dão apoio logístico à decisão portuguesa de manter Colônia do Sacramento. Como diz o almirante Max, isso se dá porque os britânicos estão interessados no contrabando da prata, que por ali escoa saindo dos domínios espanhóis da Bolívia e do Peru.

"Tudo isso descia pelos rios Paraguai, Paraná e da Prata, e era contrabandeado para Colônia do Sacramento." Mas os próprios espanhóis de Buenos Aires também estavam interessados em tal contrabando. Afinal, queriam comprar coisas que eram produzidas no Brasil ou vinham do Oriente. "O luxo sempre foi mania da humanidade" diz o almirante Max.

E se olharmos para cenários mais amplos daquele mundo, em estado de incipiente mas decidida globalização, vamos observar frotas da Índia, com suas cargas de porcelana, tecidos finos e especiarias, signos do que era suntuoso ou agradável às vistas, e que era trocado por prata, em Colônia do Sacramento.

Essa localidade vai adquirir feição mais estratégica ao longo das invasões holandesas, porque ela e Rio Grande do Sul se tornam grandes fornecedoras de carne e charque. "Colônia do Sacramento", explica o almirante Max, "se tornou indispensável para Portugal, embora representasse a fuga de milhões de escudos para a Espanha. O fisco da Espanha perdia. O rei de Espanha perdia."

É impossível seguir à frente com esta narrativa sem situar um conjunto de fatos e datas que estão no cerne de um espírito guerreiro que vai ser uma das essências das fronteiras sulistas do Brasil e do próprio Rio Grande do Sul. Como pano de fundo é preciso mencionar que, até o ano de 1776, quando Colônia do Sacramento e Sete Povos das Missões - reduto de jesuítas e índios guaranis - passam definitivamente para o acervo territorial da Espanha, tais espaços mudaram constantemente de mãos, em feitos que envolveram guerras e sangue. Nesse meio tempo, o Rio Grande do Sul ganha forma, através de fortificações e com a chegada de imigrantes açorianos (que fundam Porto Alegre, em 1752, com a primeira denominação de Porto dos Casais), isso um bom tempo depois de os espanhóis terem fundado Montevidéu, em 1726.

"Todas essas flutuações", vai explicar Nélson Werneck Sodré, "mostram como a área sulina permaneceu disputada por longo tempo, teatro de continuados combates, presa constante de inquietação, exigindo estrutura militar que assentaria na própria população, para acudir às suas necessidades, independentes de modelos externos e inteiramente subordinados ao meio."

Ora, enquanto tais eventos se davam no extremo sul do Brasil, ou do que seria o Brasil, os paulistas avançavam pelas matas que desembocavam em regiões desconhecidas do país. Isso se dá principalmente no futuro território do Mato Grosso, onde índios encontram ouro, no ano de 1717. A partir do ano seguinte, é a corrida do ouro, que lembra as cenas de outras desvairadas expedições na caça ao mais valorizado dos metais. Assim o Brasil vai ampliando suas fronteiras para o oeste - o que se organiza mais ainda com a fundação do arraial de Cuiabá, em 1727. Um feito que tem a direta presença do governador de São Paulo, que faz a estafante e louca viagem que parte do rio Tietê, sobe o Paraná, passa pelas águas do Paraguai e prossegue por aí - a partir de território paraguaio - até dar em Cuiabá, peripécia que é executada ao longo de seis infatigáveis meses! Essas jornadas são pontilhadas de histórias terríveis que o tempo devorou e os livros escolares pouco registram. Como um evento de 1725, lembrado pelo almirante Max, rastreando sua memória.

"Saíram seiscentas canoas armadas (chamadas monções) de São Paulo. Mas só conseguiram lá chegar um português e um escravo negro. Todos os outros foram mortos ou capturados - e vendidos como escravos no mercado de Assunção. Essa expedição foi batida e dizimada pelos índios guaicuru-paiaguás, canoeiros, e o outro ramo guaicuru, hábeis na lida com cavalos."

Inversão de curso

Foi à custa de tais epopéias que os limites do Brasil foram empurrados para o oeste e para o norte. Em meados do século 18, o hábil negociador português Alexandre de Gusmão vai convencer os espanhóis da validade do célebre Mapa das Cortes, no qual o território brasileiro está bastante deformado. E ampliado. Para isso, Gusmão vai se valer do fato de que - como diz o almirante Max - "os espanhóis não tinham boas informações cartográficas. Por isso, o Mato Grosso vai parar no mesmo meridiano da linha de Tordesilhas. E Alexandre de Gusmão ousou inverter a posição do rio Madeira, levado a correr de noroeste para sudeste, e não de sudoeste para nordeste, como acontece na vã realidade".

Cicatrizes de episódios guerreiros ou contendas fronteiriças mais suaves, envolvendo o desenho de muitas áreas do Brasil, serão resolvidas, entre o final do século 19 e os primeiros anos do século 20, por José Maria da Silva Paranhos, o barão do Rio Branco, figura talvez ímpar na diplomacia nacional.

O barão - que se tornou uma das figuras mais populares da história do Brasil - nasceu no Rio de Janeiro a 20 de abril de 1845 e morreu na mesma cidade, a 9 de fevereiro de 1912. Ele começou a exercer seu ofício de supernegociador num contencioso que envolvia, ainda, a velha questão dos Sete Povos das Missões, e para a qual fora escolhido por seus profundos conhecimentos de história e geografia - principalmente quando se tratava da região do rio da Prata. Nesse episódio, de 1895, foi definitivamente resolvida a questão, contando as partes com a arbitragem do presidente Grover Cleveland, dos Estados Unidos. Em 1900, o barão resolveu problemas da fronteira do Amapá, e em 1902 Rio Branco intervirá em uma das mais delicadas questões de fronteira que foram registradas na história do Brasil. Trata-se do célebre episódio do Acre, que é quase literalmente tomado por seringalistas brasileiros, tendo à frente José Plácido de Castro. A questão, que tem como outro contendor a Bolívia, é resolvida com a compra do território por 2 milhões de libras esterlinas.Num período que vai até 1906, o barão do Rio Branco terá um papel decisivo na definição dos limites do território brasileiro, resolvendo litígios que envolvem a Venezuela, Colômbia, Equador, Bolívia, Peru, Uruguai, Argentina e as então Guianas Inglesa e Holandesa. Assume, então, a condição de um dos principais desenhistas do território brasileiro contemporâneo.

Catastrofismo

Os episódios das fronteiras do sul podem ter sido resolvidos objetivamente. Mas isso não impediu que as fronteiras com a Argentina continuassem sendo consideradas "quentes" pelos geopolíticos dos dois lados, pelo menos até o começo dos anos 80. O último episódio de tensão entre a Argentina e o Brasil parece ter sido o que envolveu a construção da represa de Itaipu, no lado brasileiro, e de Corpus, no lado argentino. No fluxo de ameaças, alguns setores militares da Argentina (mais ou menos isolados) chegam a dizer que o Brasil queria usar Itaipu como arma de guerra, para inundar o território argentino. Mas o professor de direito internacional Oliveiros Ferreira, jornalista e escritor, e diretor do jornal "O Estado de S. Paulo", comenta esses fatos belicosos no sul de nosso continente de forma jocosa, lembrando, antes, que se Itaipu foi o "último litígio declarado entre Brasil e Argentina, o último não declarado foi o atômico". Aliás, segundo o professor Oliveiros, o "catastrofismo" de um setor militar argentino (e dizem que os brasileiros também tiveram as suas loucuras) foi tamanho, que um dos mais importantes geopolíticos daquele país, o general Juan Guglialmelli, escreveu um livro sobre a oposição entre Argentina e Brasil e apontou três saídas: ou a Argentina resolveria seus problemas internos, ou se uniria ao Brasil - em posição submissa -, ou faria a guerra com o Brasil!

Numa noite paulistana repleta de neblina, com sua figura que evoca Miguel de Cervantes, curvada sobre um computador, fazendo a chamada de um editorial do "Estado", com uma boina basca, o mestre Oliveiros Ferreira perpetra algumas ironias...

"O general Gugliamelli morreu, e nem sei se sua revista, 'Estrategia', continua", diz Oliveiros. "Seu livro já comemorou uns bons anos, e não tivemos sinal da possível guerra." Aquele clima dos tempos de Itaipu, segundo o jornalista, também se foi porque os interesses falaram mais alto. E na crise que se sucedeu à Guerra das Malvinas, lembra ele, a Argentina nem teve como construir a represa de Corpus, apesar de todos os acordos que fizeram. Em contraposição, com o Mercosul, abriu-se para a indústria argentina um enorme mercado.

O jornalista gaúcho Vítor Vieira evoca que, até pouco tempo atrás, havia cidades fronteiriças do Rio Grande do Sul com até cinco quartéis, como era o caso de Santiago de Boqueirão. Bagé, por exemplo, chegou a ter quatro quartéis. E havia outros sinais de problemas estratégicos e militares que se refletiam em outros planos. As ferrovias argentinas ainda têm uma bitola mais larga que as brasileiras da fronteira gaúcha. "E as bitolas díspares", diz Vítor, "eram uma maneira a mais de evitar uma possível invasão bélica por via férrea." Pela mesma razão, a ciclagem das usinas de um lado e outro também era diferente. Se houvesse uma ocupação armada, os brasileiros não poderiam usar a energia elétrica argentina - e vice-versa.

Vítor evoca que durante a ditadura militar brasileira correram rumores de que se as esquerdas ganhassem as eleições presidenciais no Uruguai, havia um plano brasileiro de ocupação daquele país.

Mercosul

De qualquer maneira, o produto dessas tensões, hoje ultrapassadas, deixou marcas nos dois lados: imensos descampados que os fazendeiros aproveitavam para - de lado a lado - usar na arte do contrabando. E se havia muito contrabando miúdo de parte a parte, investimentos naquelas áreas eram poucos.

Mas esse cenário mudou vertiginosamente nos últimos anos, com o impacto da distensão nas fronteiras sulistas. Um exemplo foi a inauguração, no ano passado, da Ponte São Borja-Santo Tomé, com mais de três quilômetros, que atravessa um dos pontos mais largos do rio Uruguai. Sonhada desde os tempos do primeiro governo de Getúlio Vargas, a ponte "jamais foi construída por razões geopolíticas, militares, que desmoronaram com os avanços do Mercosul", segundo o jornalista gaúcho. Além do mais, agora estão sendo construídas duas usinas conversoras de energia, para servir aos interesses do Brasil e da Argentina. E enquanto um gasoduto trará gás da Bolívia para o Brasil, se conclui outro negócio utilizando produto argentino. Trata-se da usina térmica a gás de Uruguaiana, que vai gerar 456 megawatts.

Diante de cenários como esse, Oliveiros Ferreira afirma que "não tem o menor sentido" uma guerra entre Brasil e Argentina.

Atravessando as fronteiras do sul, vamos encontrar uma área que as autoridades brasileiras crescentemente estão encarando como um problema fiscal criminal, e que se localiza nas cidades fronteiriças com o Paraguai, particularmente na altura de Ciudad del Este, do nosso vizinho. É ali, pela Ponte da Amizade, principal elo entre o Brasil e o Paraguai, que contrabandistas de baixo ou grande calado, ligados ou não a outras contravenções, operam. Segundo a Receita Federal, as perdas, nos primeiros anos desta década, chegaram a R$ 2,4 bilhões por ano.

Além de provocar a evasão de receitas, esse negócio ilegal, que algumas autoridades entendem que também se liga ao tráfico de drogas e armas, passou a ameaçar a vida de funcionários da Receita Federal, como Jackson Corbari, chefe da aduana fiscal em Foz do Iguaçu, que assumiu a perigosa tarefa de enfrentar essas situações. O fato de Corbari precisar ter sua vida protegida pelo governo federal para exercer suas funções está sendo encarado como uma verdadeira afronta, por exemplo, pela Polícia Federal (PF). Da mesma forma, a PF, departamentos estaduais de combate aos entorpecentes e outras áreas, militares, entendem que as fronteiras amazônicas se transformaram num verdadeiro problema de segurança nacional por abrigarem rotas de tráfico de drogas - antes estritamente cocaína, agora também crack (derivado da coca) e até uma percentagem pequena, mas assustadora, de heroína. Além disso, hoje já é sabido que está implantada na Amazônia a coca nativa, planta chamada epadu.

O professor Shiguenoli Miyamoto afirma que o governo americano tentou usar o território amazônico como campo de treinamento para unidades militares que teriam a tarefa de combater naquela região o plantio e o tráfico de drogas. Isso evitaria os riscos de derrotas para as bem-armadas forças que servem de corpo de proteção aos traficantes. "Antes de combater na Colômbia e na selva amazônica, eles precisariam fazer um treinamento e se familiarizar com o meio ambiente. Isso ocorreu há mais ou menos três anos", diz Miyamoto.

Uma das iniciativas do governo para resolver esses e outros problemas da Amazônia é o discutido programa Calha Norte, que conta, entre outros pontos, com a instalação de um sistema de unidades militares naquela região. Segundo Miyamoto, a crítica contra esse projeto, feito em 1985 e que chegou ao conhecimento da população em 1986, é que ele não tinha a participação da sociedade. Em um dos seus estudos sobre o Projeto Calha Norte, publicado na "Revista Brasileira de Ciência Política", da Universidade de Brasília, Miyamoto destacava que havia outros pontos que levaram o governo a se voltar com tanta energia - pelo menos no discurso - para a Amazônia, como as incursões pelas fronteiras do grupo guerrilheiro M-19, da Colômbia, e a emergência na borda norte do país de governos populistas de tons esquerdistas, na região das Guianas. Tudo isso passava a caracterizar essa fronteira como "viva" e não "morta".

No Rio de Janeiro, onde vive, o professor René Dreifuss, em seu apartamento em Laranjeiras, também analisou a questão para Problemas Brasileiros, insistindo na importância do Projeto Calha Norte como esforço de ocupação territorial.

"A Amazônia é um dos grandes trunfos que o Brasil tem e deve saber usar", diz. E ele demonstra conhecimento do assunto: "Há, por exemplo, milhões de insetos na Amazônia - e os estudiosos têm muito a aprender observando borboletas e besouros. Há, ainda, milhares, dezenas de milhares de plantas, cada uma delas prometendo uma farmácia inteira. E, aproximadamente, 200 etnias diferentes, que têm o conhecimento direto da experiência e experimentação de tudo isso. E que vão poder informar o que sabem. E que terão de ser preservadas, para que continuem sendo elas mesmas."

O professor René Dreifuss entende que, em nome de tudo isso, o Brasil deve ter um parque científico-tecnológico vinculado à biotecnologia e à engenharia genética, que pode ter um dos seus centros na Amazônia e outros fora - para que se possa "pensar em rede".

"O Brasil", conclui, "terá de ser uma potência biotecnológica. E, para isso, necessita de capacitação interna, pesquisa de ponta, uma infra-estrutura adequada para realizar a decodificação da biodiversidade e sua sintetização."

Mas o alcance de tudo isso, segundo ele, exige "o uso de coisas que, em boa parte, são desterritorializantes, como a parafernália de computadores, satélites, etc."

Entrando num estágio da humanidade em que as fronteiras de alguns Estados, como os europeus, se diluem "de uma forma estonteante", existem outras realidades, absolutamente contemporâneas, em que os limites do país ainda devem ser vigiados, demarcados, controlados. É o caso das infinitas fronteiras da Amazônia. Mas, paradoxalmente, ao lado do fuzil ou da metralhadora do soldado solitário daquelas lonjuras, a vigilância passa por aparelhos que evocam o mais puro vanguardismo da velha ficção científica: olhos metálicos e químicos que emanam informações de satélites artificiais para radares. Uma parafernália futurista que detecta, com olhos implacáveis, os movimentos nas velhas fronteiras, demarcadas, às vezes, em mapas traçados em acordos muito antigos, escritos a bico-de-pena.

Brasil quer ganhar o mundo

OSWALDO RIBAS

Ultrapassadas as tensões graças ao Mercosul, as fronteiras brasileiras estão sendo redesenhadas. Pelo menos quando deixamos de lado características estritamente geográficas e políticas. Hoje, por exemplo, é possível beber guaraná da Brahma na China, comer churrasco da Porcão em Tóquio, assistir à novela da Globo em Lisboa, fazer o trecho San Francisco-Los Angeles a bordo de um jato regional Brasília ou entrar num caixa eletrônico do Itaú em Buenos Aires. Por meio de filiais espalhadas pelo mundo, ou tirando vantagem da onda de redução de barreiras tarifárias promovida pela Organização Mundial do Comércio (OMC), as empresas brasileiras, à sua maneira, esforçam-se para conquistar espaços preciosos na economia global. Atualmente, o Brasil ostenta o título de campeão absoluto, entre as nações emergentes que sediam multinacionais, e já possui cerca de mil companhias, de capital predominantemente nacional, com filiais espalhadas pelos quatro cantos do mundo: as global players brasileiras.

"O fato de 400 das 500 maiores empresas transnacionais estarem instaladas em território brasileiro mostra a que grau de internacionalização chegou a economia brasileira", destaca o economista Octávio de Barros, diretor técnico da Sociedade Brasileira de Estudos de Empresas Transnacionais e da Globalização Econômica (Sobeet). "Como país que absorve investimentos diretos estrangeiros, o Brasil, nos últimos três anos, só vem sendo superado pela China e, mesmo assim, boa parte dos recursos que chegam àquele país asiático não vêm sob forma monetária", acrescenta o técnico, para demonstrar que o mercado brasileiro pode estar liderando a captação global. Reconhecido como um dos "milagres" do Plano Real, que completou quatro anos, o impressionante aumento do volume de investimentos diretos estrangeiros no Brasil saltou para US$ 17 bilhões em 1997. Em 1993, era de US$ 2 bilhões. Recentemente, o Banco Central divulgou um estudo sobre esses investimentos que mostra já representarem 18% do Produto Interno Bruto.

E se por um lado o Brasil vem sendo escolhido como uma segunda pátria das multinacionais - e quase não passa mais um dia sem que ocorram fusões e aquisições de empresas nacionais por rivais estrangeiras, sintoma, aliás, observado em todo o mundo -, por outro, as companhias brasileiras também mostram seu apetite pelo mercado global. Associando-se em parcerias internacionais ou montando suas próprias fábricas e escritórios em mercados externos, as operações com bandeira brasileira estão sendo abertas à velocidade de dez por mês, segundo dados do mais recente relatório da Conferência das Nações Unidas para o Comércio e Desenvolvimento (Unctad). "No total, o número de companhias de capital brasileiro instaladas diretamente em mercados externos rompeu a barreira das mil empresas", destaca o relatório.

A recente ofensiva para conquistar espaço nos países sócios e associados do Mercosul - Argentina, Uruguai, Paraguai, Chile e Bolívia - contribuiu muito para as empresas brasileiras aventurarem-se em mercados externos. A Arisco Industrial Ltda. - uma das líderes nacionais no setor de alimentos, por exemplo - investiu US$ 10 milhões numa nova unidade na província de La Rioja, na Argentina. É a quarta fábrica da empresa naquele país, expandindo seus negócios na América Latina. Segundo uma fonte da Arisco, a nova unidade industrial atenderá à demanda de exportação do Mercosul e deverá projetar a empresa como uma das maiores de seu setor no continente. A Arisco fatura hoje US$ 70 milhões na Argentina. Com a nova fábrica, o grupo prevê uma receita argentina da ordem de US$ 150 milhões em dois anos. Ainda nesse setor, outra empresa brasileira, a Sadia, maior fabricante nacional de carnes industrializadas e alimentos processados, com faturamento anual de US$ 2,8 bilhões, saiu em busca da internacionalização e atualmente aspira unir-se a empresas americanas, francesas, italianas e portuguesas.

Na condição de maior global player nacional - empresa em disputa pelo mercado mundial -, a Petrobrás, ainda estatal mas em vias de privatizar-se, é a companhia que mais investe no exterior. Com operações em lugares tão distantes como Angola, Líbia, golfo do México, Austrália e Noruega, a Petrobrás - já uma líder mundial na exploração de petróleo em águas profundas - pretende dobrar sua produção de óleo fora do Brasil em 18 meses. Atualmente, 5% do 1,1 milhão de barris/dia extraídos pela Petrobrás estão no exterior. A empresa também disputa o mercado de derivados, como gasolina, e já é uma das grandes fornecedoras para postos de distribuição nos Estados Unidos, Europa e América Latina.

Com estratégia diferente, mas ainda assim com o perfil mais agressivo entre as companhias nacionais no mercado global, a Empresa Brasileira de Aeronáutica (Embraer) brilha na arena internacional. Após quase fechar as portas no período terminal de sua vida como empresa estatal, a Embraer disputa atualmente, palmo a palmo, o concorrido mercado mundial de aviões para transporte regional. Em 1997 exportou US$ 641 milhões, ou 140% a mais que em 96. No primeiro trimestre deste ano - último dado disponível - já vendeu US$ 186 milhões, e tem em carteira pedidos, principalmente de empresas americanas, que ascendem a mais de US$ 1 bilhão.

No ramo da construção, a empreiteira Odebrecht, com investimentos e operações em vários continentes, ganhou a concorrência para construir desde uma hidrelétrica na Malásia - agora suspensa no pós-colapso dos Tigres Asiáticos -, até o trem-bala que ligará a cidade de Miami a Orlando (sede da Disneyworld), nos Estados Unidos. Na área química, o grupo gaúcho Renner, produtor de tintas para carros e paredes, expandiu suas fábricas pela América Latina, com novos endereços na Venezuela e no Chile.

Apesar da dificuldade do idioma português, restrito a poucas e pobres regiões do mundo, frente à dominação americana e japonesa, o Brasil também disputa um espaço na mais que rentável indústria cultural. A Rede Globo - até para fazer jus ao nome - compete com a mexicana Televisa pelo mercado latino-americano de telenovelas, ganha prêmios internacionais e mostra sua produção em pontos tão distantes do planeta como Pequim, Havana ou Londres. A agência de publicidade W/Brasil já está presente na Espanha, Portugal e EUA, na esteira da nova fama brasileira como "maior mercado emergente mundial da publicidade".

Competitividade

A modernidade brasileira, no entanto, esbarra em obstáculos quase intransponíveis quando se trata de medir a competitividade nacional. O Fórum Econômico Mundial, instituto de pesquisa internacional com sede em Davos, na Suíça, derrubou a classificação brasileira do 42o lugar para a 46a posição. Em um universo de 53 países, o Brasil só ganha da Colômbia, Polônia, Índia, Zimbábue, Rússia e Ucrânia. Por quê?

Lester Thurow, economista americano famoso em todo o mundo por suas idéias polêmicas sobre a nova era dos mercados globais e professor de Economia Internacional do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), põe o dedo na ferida: "Educação", diz ele. "Se o Brasil quiser um dia vir a ser uma potência global, afluente e influente, terá de começar a dar escolas às crianças e reciclar profissionalmente sua mão-de-obra em atividade." Para Thurow, o Brasil terá de crescer durante um século, a taxas anuais de 10% ao ano, para superar a diferença que o separa das nações ricas, berço das maiores multinacionais.

 

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