Postado em 19/12/2013
texto: Gabriel Vituri
A convivência entre diferentes gerações sempre existiu. A evolução, defende o estudioso espanhol Mariano Sánchez Martinez, é que hoje em dia temos ferramentas para entender o que isso significa. Especializado em relações intergeracionais, o professor europeu explica: “Em quatro décadas de discussão sobre o tema, foi possível acumular bastante conhecimento, com pesquisas e iniciativas práticas que contribuem para a integração”.
Intergeracionalidade, o termo usado para definir o convívio entre pessoas de idades e tempos distintos, não se explica com exatidão. É, acima de tudo, uma experiência coletiva de auto-conhecimento e que promove benefícios mútuos. Professor afiliado ao departamento de sociologia da Universidade de Granada, na Espanha, e integrante de grupos de estudos sobre o assunto, Mariano Sánchez se diz otimista.
Sesc São Paulo: É possível definir o que significa o termo intergeracionalidade?
Mariano Sánchez Martinez: Quando você morde uma maçã, o que aquele gosto significa? Estamos falando de algo que é pessoal, que não conseguimos descrever. Poderia ser definido como qualquer relação em que diferentes gerações estão envolvidas, mas isso é muito pequeno se comparado à experiência em si. Outra dificuldade enfrentada nessa busca pela definição é que muitos conceitos são oferecidos, e a maior parte deles é focado na troca, interação, ajuda mútua, comunicação, diálogo, aprendizado. Tudo isso são tipos de relações. Ainda que eu não consiga te dar uma definição exata, o ponto-chave, para mim, não deve tratar apenas do contato, e sim de estabelecer ações com as quais as pessoas estejam envolvidas para compreender a si mesmas, sentir que estão conectadas ao mundo e que podem aprender. Ter essa identidade não é individual, é sempre coletivo.
Quando a preocupação com essas relações se tornou mais presente?
Todos nascemos, é claro, por conta de uma geração anterior. Desde o início, um adulto cuidou do recém-nascido, e aí já existe a relação entre gerações. É até paradoxal, porque apesar de ser algo natural, muitas vezes não enxergamos, não percebemos, essa convivência intergeracional. Não sei precisar quando começamos a nos preocupar mais, talvez na década de 1960, sobretudo na América do Norte, as pessoas começaram a se organizar e aproveitar esse processo de convivência. Foi o tempo em que identificamos este campo, mas as relações sempre estiveram aí. É verdade que se vivemos mais, como hoje, existe a probabilidade de cada indivíduo interagir com três ou quatro gerações ao mesmo tempo. Pela primeira vez na história humana isso está acontecendo, e é um fator importante para entender porque apenas recentemente temos consciência do assunto.
Como se deu a transformação da prática com o passar dos anos?
Inicialmente, as pessoas que faziam os projetos queriam oportunidades para as gerações estarem no mesmo espaço, era apenas isso. Depois, o próximo passo era o “fazer” qualquer coisa juntos, e não apenas conviver; tornou-se necessário aproveitar, conhecer, ir mais a fundo no encontro. As gerações que participaram desse processo, então, começaram a se perguntar o que fazer para beneficiar as duas partes, e houve um passo importante no sentido de desenvolver isso comunitariamente. Ou seja, pensar o espaço público. Quais são os lugares mais apropriados para as atividades em conjunto? Atualmente, muitos países já agem assim. Um exemplo são as casas de repouso para terceira idade, que muitas vezes têm sido colocadas próximas a escolas, creches, tudo na intenção de dividir o espaço de forma harmônica.
O modo de vida hoje, individualista, como o sociólogo Zygmunt Bauman prega, acaba dificultando a interação...
Acho que isso é um bom exemplo para descrever metade do problema. Pela minha experiência, após 15 anos nesse campo, posso dizer que muitas pessoas sentem falta de relações em que possam se sentir conectadas, expandidas. Não estou dizendo que Bauman está errado. Por outro lado, há essa fome pelo contato próximo, o encontro. A ideia individualista também serve de alerta: “Olha, preciso mudar a forma como estou vivendo”. Queira ou não, o fato é que relações são necessárias. Em 2006, fizemos um estudo a fim de mapear como estava a questão intergeracional na Espanha e descobrimos um terreno sólido para iniciativas do gênero. Minha perspectiva é otimista, acho que as pessoas ainda têm muita sensibilidade no face a face.
Qual papel o Estado pode exercer para facilitar a intergeracionalidade?
Para ser honesto, acho que estamos falando de algo que deveria ser administrado primordialmente pelos cidadãos, e não pelo governo. Na Europa, anos atrás, perguntamos para as pessoas sobre o que o governo deveria fazer. Nas respostas, percebemos que ele não é responsável por promover relações entre pessoas. O Estado pode dar recursos, organizar iniciativas em espaços públicos, cuidar da legislação, tudo para orientar o comportamento. Mas é principalmente um comprometimento civil, não é questão política, é da própria sociedade.
Existem diferenças muito gritantes entre a Europa e países de envelheci- mento recente, como o Brasil?
Primeiro, devo dizer que estive no Brasil poucas vezes, e portanto, meu conhecimento sobre o tema por aí ainda é limitado. A questão é que na Europa isso realmente existe faz mais tempo, embora haja conexões e similaridades com a América Latina. Acho também que diz respeito à diversidade... sinto que os brasileiros são mais familiarizados com as diferenças, facilitando esse processo de abertura entre gerações diferentes. Quando falamos de trabalhos interculturais e intergeracionais, as duas expressões se encontram no princípio do “inter”, da troca. Se existem iniciativas para o intercâmbio cultural, é bem possível atingir a excelência no intercâmbio geracional. É sempre complicado implementar ideias novas, mas acho que no Brasil vocês estão em boas condições de inovar.
Onde estão os maiores conflitos nesse processo?
Em primeiro lugar, estamos cometendo um grande erro em separar as relações intergeracionais entre o espaço familiar e o espaço comunitário. É um obstáculo a que devemos prestar atenção, porque isso precisa estar ligado. Outro problema: o crescimento do capitalismo e a mercantilização do estilo de vida é um grande desafio. Há muita atenção voltada à produtividade, e não tanta às conexões humanas. Sobretudo na Europa, o discurso de que é preciso produzir e fazer contribuições positivas em tempos de crise vai contra a ideia de conectar as pessoas e dar tempo aos relacionamentos. Por fim, é cada vez mais comum perceber que os cidadãos estão mais velhos, mas esquecemos das novas gerações, que precisam estar aptas a viver em uma sociedade de jovens e idosos. Ambos precisam de preparação.
Quais são as maiores conquistas atingidas até o momento?
Acima de tudo, os assuntos relacionados às relações entre diferentes gerações ganhou visibilidade. Está, inclusive, na agenda política, possibilitando que todos ouçam mais e mais sobre o tema. Além disso, em quatro décadas de discussão sobre o tema, foi possível acumular bastante conhecimento, com pesquisas e iniciativas práticas que contribuem para a evolução da integração. Apesar de não ser um campo tão sólido, ele existe, e tem sido estudado, pesquisado, há expertise para desenvolver isso ainda mais. Hoje em dia, diversas organizações vêm fazendo o possível para estabelecer contato e trocar ideias com outros países, ter ligação. Finalmente, o mais importante é perceber a chance de lutar contra a discriminação por meio de ações e projetos do gênero. Há visibilidade e recursos para isso.