Postado em 01/12/2000
Se tudo estiver determinado, tudo se tornará um teatro. Isso significa que você tem apenas que encenar isso. Ninguém está pedindo para você vivê-lo; pede-se apenas para que o encene.
Rajneesh
Maria do Socorro entrou na farmácia e entregou o papel ao homem de óculos que a atendeu.
O velho farmacêutico, seu Rodrigues, abriu mais os olhos atrás das lentes grossas e leu num sussurro: "Clorofórmio, 10 gramas; aconitina, 2 gramas; digitalina, 2 gramas...".
O homem interrompeu a leitura e quase gritou, olhando por cima dos óculos:
- Onde arranjou esta receita, menina?
Maria do Socorro vacilou, esfregou as mãos suadas e acabou dizendo, num tom de ingenuidade e timidez, envolvendo o velho:
- Num romance...
- Num romance? Meu Deus...
O homem lembrou-se de perguntar qual o autor do livro, para ver se podia identificar o que quer que fosse, mas achou que não importava, para quê, afinal?
Balançou o papel da receita na mão como uma bandeira:
- Sabe que isto aqui é veneno?
- Sei, sim senhor.
O mesmo tom ingênuo, longínquo, meio indiferente.
- Veneno mortal? - ele insistiu.
- O senhor não pode aviar a receita?
- Essa é boa... Quer que eu seja preso? Ninguém vai aviar isso aqui em Parnaíba e não se trata de veneno pra ratos...
Ele notou que a moça tinha a voz leve, quase sem vida, e lhe sorria estranha, como se lhe pedisse socorro.
- O senhor não pode aviar a receita? - ela insistiu.
- Não, minha jovem, não posso aviar - disse o velho, firme. - Isso não é uma receita médica. Tem alguma autorização? É pra você?
Ela tomou o papel das mãos do farmacêutico e saiu da farmácia quase correndo.
O velho acompanhou seus passos até a rua - olhava para a cintura fina, os cabelos desarrumados sobre os ombros.
Comentou baixinho:
- Vejam só. Querendo se matar nessa idade. Uma criança. Esta cidade está enlouquecendo.
Mais adiante, na praça do mercado, entrou noutra farmácia. Teve a idéia de dizer que aquilo era para ser tomado em doses pequenas, num caso especial.
- Caso especial de quê? - indagou o balconista, desta vez um jovem com um tique nervoso no olho direito.
- Especial, ora... - balbuciou Maria do Socorro.
- E a receita médica? - perguntou o rapaz.
- Só tenho esse papel.
- Não podemos moça.
O rapaz tinha um hálito repelente, além daquele cacoete horrível. Sentiu nojo dele, uma identidade obscura com o que vinha sentindo por tudo.
Caminhou na direção da Praça da Graça. Já estava cansada e suando frio.
"Se ao menos eu tivesse coragem de me jogar no rio..." - pensou. - "O Parnaíba não mata tanta gente? O rio da Cabeça de Cuia, o rio encantado das noites de lua... Minha morte seria até romântica..."
Já ia descendo pela rua do Rosário. Lembrou-se das noites de insônia, sufocada pela tosse. "Passo na quitanda do Zé Fenelon e dali... A quitanda dele não se chama Deus Te Guarde?"
Talvez encontrasse por ali alguma farmácia modesta e não se importassem de aviar a sua receita. Sorriu para si mesma, com uma leve esperança. Caminhava e sentia o coração acelerado. Por momentos tudo parecia flutuar à sua volta, como se não mais vivesse e partilhasse uma estranha vida com fadas, fantasmas e sombras. Existiria outra vida além desta? Se a morte fosse assim, tão alheia e indolor.
Maria do Socorro continuava a procurar uma farmácia, um porto seguro, o vento leve que vinha do rio refrescava o rubor do seu nervosismo. Na janela de uma casa modesta, o jarro com uma planta exibia uma enorme flor vermelha, COR DE SANGUE.
Cor de sangue.
A primeira vez fora ao banheiro, quando terminara o banho matinal. Sentiu um gosto de barro na boca e cuspiu a pasta sanguinolenta.
Tomou um susto, mas não se desesperou. Talvez aquilo fosse um mal das gengivas... alguma coisa nos dentes. O pai tivera piorréia...
Na segunda vez, o golpe fora maior, alguma coisa se desprendeu dentro dela, teve uma ânsia e ensopou o vestido. Na terceira vez não pôde mais esconder, pois fora entre as colegas do ateliê de costura. Manchara toda a saia branca que estava alinhavando.
- Socorrinha, aqui está o seu salário e mais um mês, pra ajudar. Você precisa se tratar, menina - disse-lhe a dona do ateliê naquele mesmo dia.
Quando chegou em casa, contou para a mãe:
- Tive um troço no ateliê, mãe. Botei sangue pela boca. Estraguei um vestido.
- Meu Deus, Socorrinha... O que será, minha filha?
- Não sei, mãe.
A velha não se preocupou muito:
- Não se assuste, Socorrinha, você vai se tratar e ficar boa. Seu pai chega hoje. Vamos ver.
O pai era maquinista de um navio mercante que costumava atracar no porto de Tutóia. Quando em viagem, enviava a metade do salário para a família, que mal dava para as despesas da casa. Maria do Socorro tivera de arranjar aquele emprego e suspender os estudos no grupo escolar de dona Candinha, onde fazia o supletivo.
- Emprego cansativo, mãe - ela se queixava.
Horas e horas debruçada sobre a máquina de costura, ou encurvada cerzindo peças de roupa, que sempre se multiplicavam à sua frente.
- Ninguém quer mais fazer roupa nova - se queixava a dona do ateliê. - Todo mundo em Parnaíba está nessa de consertar os trapos. Cidade de pobres, né. Onde é que vamos parar?
Dor nas costas, cansaço, aquele estranho esmorecimento pela vida. Mas não se queixava para não afligir a mãe, coitada, já tão sofrida. A vida era só isso?
Quando o pai voltou disse que tudo ia se arranjar, pois a sua família tinha direito a tratamento médico na Santa Casa.
- Eu sou da Marinha, não sou?
E fez aqueles exames horríveis, escarrando em vidros, tirando chapas, os remédios, as injeções, tendo que se alimentar sem gosto ou prazer.
- A moça tem que fazer uma superalimentação - dissera o médico para a sua mãe que, cabisbaixa, apenas sussurrou:
- Somos pobres, doutor... meu marido é maquinista...
- A doença está um pouco adiantada, mas com a novidade da estreptomedicina e o iso-benzacil... vamos ver.
- Doutor, esses remédios... - soluçou a mãe.
- As injeções toma aqui.
E então ela pôde associar doença e humilhação, os pratos de casa separados, o seu copo, a sua xícara, a sua toalha. Até a sua roupa era lavada noutro tanque, a mãe tentando se justificar:
- A higiene é tudo, disse o doutor.
E o Júlio? Como poderia beijá-lo sem remorso? Ou poderia? Qual seria a reação dele?
As olheiras negras e a palidez de cadáver - o nervosismo e o medo acentuando o seu estado, sabia. Só os lábios estavam vivos, palpitantes, mas num contraste de esquisita vermelhidão.
- Eu também posso ajudar, Socorrinha - disse-lhe Júlio, compreensivo.
E as economias para o casamento? O certo, senti, naquela cidade cheia de preconceitos, era que ficaria marcada pelo resto da vida, com ou sem cura.
Bom que estivesse lendo aquele romance...
A receita viera na hora certa.
Era o seu desejo agora, partido do fundo, de bem fundo da alma: a morte. Estava pronta para a experiência extrema. Aproveitaria aquele momento em que tinha raiva de todo mundo. Arre! O que mais era preciso? Amadurecimento? Coragem? Uma dose forte de covardia, como diziam?
Júlio jogava futebol, tinha o peito largo de atleta e vivera muitos anos com aquele rosto corado cheio de vigor. Não o prejudicaria fazendo-o casar-se com uma... uma tuberculosa.
Maria do Socorro olhou para a mocinha que vinha em sentido contrário na rua. Talvez fosse da sua idade. Tinha a pele rosada e olhava para tudo com sofreguidão, como se a vida fosse um prêmio e não um castigo.
Lembrou-se da avó, falando dessa terra, "esse vale de lágrimas", e morrendo aos poucos numa cama da Santa Casa. Santa Casa... casa da morte.
- Tudo termina aqui, vó?
- Deus prometeu restaurar o Paraíso aqui na Terra. Algum dia... Tenha esperança e fé.
Fé.
Viu o letreiro de uma farmácia pequena, uma só porta.
"É aqui" - pensou.
Um rapaz moreno, de avental branco, veio atendê-la.
Estendeu-lhe o pedaço de papel amassado.
Estava trêmula.
Ele olhou, balbuciou algumas palavras da receita e disse:
- Não sei se temos digitalina. Vou ver. Vai esperar?
- Sim... mas tenho pressa.
- Só um instante.
Maria do Socorro teve uma ligeira tonteira, talvez de emoção, ou de fraqueza, o coração saltando no peito magro.
O homem de avental saberia que aquilo era veneno?
Ele apareceu por trás do balcão, sorriu e disse:
- Temos digitalina. Só um minuto.
Um frio na espinha.
A vista escura.
Um forte ardor no peito.
- Não se esforce muito que pode ter uma nova hemoptise - dissera o médico da Santa Casa.
A flor vermelha do jarro daquela janela era como se estivesse se espalhando pelo seu vestido branco da primeira comunhão.
Assis Brasil é escritor, e autor de Beira Rio Beira Vida (1965) e Os que Bebem como os Cães (1975), entre outros.