Postado em 01/07/2014
Apesar de a seleção brasileira ter sido, em 1958, o primeiro time multirracial a vencer uma Copa do Mundo, as tensões raciais no futebol brasileiro existem até hoje. Pouco antes de o Brasil sediar o Mundial de Futebol, em junho, novas demonstrações de racismo envolvendo jogadores brasileiros vieram à tona. Considerando os eventos esportivos realizados no Brasil como oportunidades de avaliar os preconceitos que atingem o mundo dos esportes, o antropólogo e pesquisador Wagner Xavier de Camargo e o historiador Marcel Diego Tonini analisam o assunto.
É preciso discutir as raízes do problema
por Wagner Xavier de Camargo
Não bastassem os problemas estruturais que se têm apresentado em nosso cotidiano em relação à Copa do Mundo de Futebol, algumas outras questões sociais emergem para nos dizer que ainda há muito a ser resolvido na sociedade brasileira. E o racismo nos esportes – ou, particularmente, no futebol como vitrine do esporte nacional – é uma delas.
Na primeira semana de junho, numa rodada do Campeonato Brasileiro de Futebol, uma querela ocorrida entre o atacante Emerson Sheik, do Botafogo, e o zagueiro Lúcio, do Palmeiras, trouxe à tona muito mais do que um simples episódio de discussão entre jogadores. Sheik afirmou ter sido “xingado” de gay em sentido ofensivo; Lúcio se defendeu e, mais tarde, publicou na rede social Twitter uma foto em que segurava uma folha de papel com a inscrição “#SayNoToRacism” (“#Diga não ao racismo”), participando então da campanha da Fédération Internationale de Football Association (Fifa), lançada em 2013. Em que pese a acusação homofóbica no xingamento não ter relação direta com racismo como fenômeno, ela é, obviamente, uma explicitação de estereótipo, base para a edificação de preconceitos.
De tempos em tempos somos surpreendidos por situações racistas divulgadas na grande mídia, que ocorrem, sobretudo, no campo esportivo e, em geral, envolvem jogadores ou estes e torcedores. Não raro, atualmente, as (pobres) bananas viraram formas inusitadas de protestos a partir das arquibancadas. O exemplo mais notório de racismo deflagrado foi o de “Grafite” (Edinaldo Libânio), num jogo da primeira fase da Copa Libertadores da América de 2005, entre São Paulo e Quilmes. O referido jogador foi xingado de “negrito de mierda” pelo zagueiro argentino Leandro Desábato, numa dividida de bola. Como resultado imediato, ambos foram expulsos de campo e o argentino foi preso pela polícia paulista (ficando encarcerado por mais de 35 horas). Apesar de ter sido o caso mais comentado e analisado por jornalistas, críticos(as) e estudiosos(as) de futebol, pouco ou nada mudou no cenário das ofensas racistas dentro e fora dos gramados nos últimos anos. Ao menos no Brasil, o racismo é naturalizado nos esportes como “parte do jogo”, pois, afinal, dizem os torcedores que tais manifestações ocorrem no “calor das emoções”.
Com essa última afirmação estou, obviamente, reconhecendo que há racismo no país e ele é endêmico, atingindo vários âmbitos sociais, dos quais o futebol e os esportes não escapam. O problema, de meu ponto de vista, é ficar tudo subsumido ao culpabilizar/punir agressores e não discutir as raízes da causa.
Grosso modo, é importante entendermos que o racismo não é um corpo de teorias científicas, mas sim um conjunto de opiniões preconcebidas (e, consequentemente, preconceituosas) acerca de atributos físicos (fenotípicos e/ou genéticos), que estabelecem hierarquia entre indivíduos e grupos raciais. Em termos da história da humanidade, a dominação entre tais grupos sempre existiu, por diversos motivos (inclusive econômicos). Porém, foi no século 19 que o evolucionismo cultural ganhou status de modelo científico, embalado pelo desenvolvimento da biologia darwinista. O antropólogo Claude Lévi-Strauss, sob demanda da Unesco no período pós-2ª Guerra, escreveu um texto para desarticular o conceito de “raça” e a noção de superioridade entre grupos raciais, pressupostos da influência avassaladora do evolucionismo nos pensamentos social e antropológico. “Raça e História”, portanto, questiona a noção de que a história e as culturas possam ser explicadas pelo mesmo esquema de uma mudança evolutiva, em ordem linear e progressiva. Com isso, o racismo foi combatido no plano das ideias e o texto é uma referência teórica até hoje.
O segundo conflito mundial, por sua vez, trouxe um grande número de mortes, causadas particularmente por essa concepção de diferenças raciais (e de grupos raciais “melhores” e “piores”). No esporte, tivemos a realização da 11ª Olímpiada em Berlim, 1936, claramente organizada por Adolf Hitler como instrumento político de demonstração de superioridade da “raça ariana” e do nazismo como sistema social. Apesar de a Alemanha ter saído dos jogos como grande campeã em número de medalhas, alguns casos de atletas negros de destaque (como o norte-americano Jesse Owens, nas provas de atletismo) mostraram o quanto a “ideologia racial” de Hitler era falha.
Nesse sentido, os megaeventos esportivos que ocorrem e ocorrerão no Brasil – a Copa do Mundo de Futebol e os Jogos Olímpicos em 2016 – são grandes oportunidades para redimensionarmos nossos olhares em relação ao mundo dos esportes, talvez no sentido de questionarmos se vivemos, de fato, num “paraíso racial”, crença partilhada por muitos(as). A ideia de que mulheres e homens negros, pardos, indígenas, asiáticos vivem em plena “democracia racial” na sociedade (e também no esporte) é equivocada e perversa. As diferenças de renda, de tratamento, de formação e mesmo de oportunidades desfavorecem tais indivíduos.
As críticas dos movimentos sociais feminista, negro e homossexual, a partir dos questionamentos da ordem vigente nos anos 1960-70, mostraram o quanto há de equívoco nesses pressupostos das sociedades dominantemente brancas, cristãs, masculinas e ocidentais.
Portanto, como torcedores(as), esportistas ou espectadores(as), antes de postarmos uma hashtag (#) no Twitter ou Facebook apoiando uma causa ou comentando algum lance de jogo, devemos nos certificar de que essa não é uma manifestação vazia de sentido ou, o que pode ser mais danoso, de que não seja apenas mais uma opinião preconceituosa, estereotipada, isto é, racista (homofóbica ou sexista), reproduzida no “calor das emoções”.
“Antes de postarmos uma hashtag (#) no Twitter ou Facebook apoiando uma causa ou comentando algum lance de jogo, devemos nos certificar de que essa não é uma manifestação vazia de sentido ou mais uma opinião preconceituosa”
Wagner Xavier de Camargo é pós-doutorando em Antropologia Social e pesquisador do Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre Futebol e Modalidades Lúdicas (Ludens), na Universidade de São Paulo (USP), e do Laboratório de Estudos das Práticas Lúdicas e Sociabilidade (LELuS), da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)
Por um novo futebol no combate ao racismo
por Marcel Diego Tonini
Mal chegamos à metade de 2014 e mesmo assim já aconteceram diversos casos de racismo no futebol, tanto no Brasil, quanto no exterior. Ao contrário de anos anteriores, porém, alguns desses episódios tiveram grande destaque nas mídias e mobilizaram a opinião pública, tais como os que envolveram os jogadores Tinga, Arouca, Neymar e Daniel Alves, e o árbitro Marcio Chagas. Os casos tomaram tamanha proporção que a própria presidente da República, Dilma Rousseff, comentou tais fatos em redes sociais e convidou os rapazes para um encontro em Brasília, mostrando solidariedade e disposição no combate a esse tipo de crime. E mais: afirmou que a Copa do Mundo de 2014, disputada no Brasil, será a Copa contra o racismo. Dá para acreditar nisso?
Muitos motivos nos levam a crer que não, mas basta dizer que há menos de três anos o próprio presidente da Fédération Internationale de Football Association (Fifa), Joseph Blatter, não só negou a existência de racismo no futebol como ainda sugeriu aos negros insultados aceitar isso como parte do jogo e, no fim da partida, dar as mãos aos oponentes que os ofenderam. Sem dúvida, quem quer que fosse o maior representante da entidade máxima do futebol jamais deveria fazer tal declaração. Como se sabe, a Fifa tem mais países afiliados do que a Organização das Nações Unidas (ONU). Se isso revela a sua força por um lado, por outro exige dela uma postura muito mais rigorosa no combate ao racismo. Apresentar uma faixa com a frase “Diga não ao racismo” ou fazer com que os capitães de seleções nacionais e algumas personalidades mundiais leiam mensagens contra o racismo é muito pouco.
Independentemente de esta Copa do Mundo promover ou não ações sérias na luta antirracista, cabe a nós aproveitarmos esse momento histórico em que diversas mídias oferecem espaço ao futebol para debatermos a questão. Nesse sentido, que função esse esporte desempenhou no Brasil e que papel ele pode cumprir na sociedade em geral?
É sabido que o futebol foi introduzido oficialmente no Brasil por uma elite econômica e social branca em fins do século 19 como uma prática de distinção social. Num país que havia pouco tinha abolido a escravidão e onde o trabalho manual era estigmatizado, dar pontapés numa bola era um ato de emancipação. Nessa nova sociedade de classes, na qual a competição no mercado de trabalho escancarava – e ainda escancara, como veremos – o racismo dissimulado, o futebol colocou-se, assim como o samba, como um dos poucos espaços sociais de integração e ascensão dos negros na primeira metade do século 20. Isso não significa, absolutamente, dizer que esse foi um processo linear, sem contradições, conflitos sociais ou mesmo tensões raciais.
Em 1958, a seleção brasileira de futebol tornou-se o primeiro time multirracial a vencer uma Copa do Mundo. Essa é uma conquista que não se pode apagar. Os jogadores negros tiveram grande participação neste e nos títulos seguintes. Em grande medida, eles até hoje representam não apenas o futebol como a imagem do próprio povo brasileiro. Sem dúvida, Pelé é o atleta que mais simboliza isso – mais no exterior, é verdade. No entanto, não podemos nos iludir e acreditar que isso signifique uma democracia racial, seja no futebol, seja na sociedade brasileira.
Apesar de os negros terem conquistado há muito tempo o espaço para praticar essa modalidade como atletas, isso não quer dizer que eles não sofram ainda hoje discriminação nessa atividade. Prova maior disso são os recentes e recorrentes episódios de racismo no futebol cometidos contra eles por todos os agentes desse universo esportivo, com destaque para os torcedores. E o que dizer, então, de outros espaços nesse meio profissional? Aí o problema se agrava e muito. Como em qualquer outro setor do mercado de trabalho, quanto mais se sobe na hierarquia do futebol, maior o poder e consequentemente o controle sobre a função exercida. São excepcionais os casos de negros que conseguem galgar a posição de jogador, olheiro, roupeiro, massagista ou segurança e ocupar cargos como preparador físico, treinador, médico, árbitro e, sobretudo, dirigente. Isso também vale para o jornalismo esportivo.
Nesse sentido, o episódio ocorrido com o árbitro Marcio Chagas é sintomático. Sofreu insultos raciais desde que entrou em campo; o seu carro, que estava em um estacionamento restrito, foi encontrado amassado e com bananas no capô e no escapamento; não teve apoio das autoridades policiais no local; sofreu acusações caluniosas dos dirigentes do clube denunciado; não teve apoio nenhum da federação para a qual trabalhava, que ainda insinuou que ele sofreria sanções por ter tornado público o caso ao dar declarações na imprensa. Diante de tal situação, não se calou e resolveu encerrar a sua carreira de árbitro para servir de exemplo ao seu filho e engajar-se na causa negra.
A profissão de treinador, por sua vez, é desempenhada tradicionalmente por ex-jogadores. Apesar de estes serem em sua maioria negros, não os vemos ocupando tais posições. Qual a explicação para essa realidade? Uma sociedade racista não suporta negros em postos superiores, muito menos exercendo comando sobre brancos. Dois exemplos recentes são Andrade e Jayme de Almeida, que foram ex-jogadores e treinadores do Flamengo, clube mais popular do país. Após anos comandando categorias de base, tiveram, em crises, a oportunidade de subir para o profissional. Depois de passarem no teste como interinos, foram efetivados e levaram o clube a ser campeão nacional em duas ocasiões: Campeonato Brasileiro de 2009 e Copa do Brasil de 2013, respectivamente. No primeiro momento de instabilidade, foram demitidos sem o devido respeito pela história que construíram no clube. Portanto, ao contrário do falacioso argumento da falta de preparo ou de competência dos negros, o que lhes falta na verdade é oportunidade, pois capacidade de comandar eles têm.
A função de dirigente, contudo, é a mais cerceada dentro do universo do futebol espetacular exatamente porque representa o poder político máximo e administra as finanças. A classe elitista branca que a controla é composta majoritariamente por profissionais liberais, em especial advogados, médicos, engenheiros e empresários, cuja atuação se mostra muitas vezes não só geracional como hereditária. Nesse cenário, é uma atividade que não precisa ser oficialmente remunerada, sendo esta mais uma maneira de restringir o acesso às camadas populares, além de critérios expressos nos estatutos de clubes e federações (como, por exemplo, um número determinado de anos de filiação para se tornar elegível). Quantos negros e brancos pobres têm condição de investir tanto tempo e dinheiro por um suposto diletantismo?
O futebol não poderia ser avesso à sociedade brasileira, que é racista. Ele também reproduz e ressignifica esse fenômeno em diferentes níveis, conforme tentamos argumentar. Se combater o racismo institucionalizado em sua estrutura hierárquica é uma tarefa quase impossível, deveria ao menos usar a sua capacidade de alcançar e mobilizar as massas justamente para mostrar uma nova postura frente ao fenômeno. Como? Por meio de duras punições esportivas a clubes, seleções e federações, e com a identificação dos agressores, entregando-os às autoridades locais para que sejam penalizados de acordo com as leis nacionais. Visto que os insultos raciais sempre fizeram parte da cultura do futebol, bem como outras práticas racistas citadas, está mais do que na hora de dar um basta nisso e ensinar novos valores: em vez da violência e da impunidade, o respeito e a igualdade. A Copa do Mundo de 2014 é uma ótima oportunidade para pôr isso em ação.
“Uma sociedade racista não suporta negros em postos superiores, muito menos exercendo comando sobre brancos. Dois exemplos recentes são Andrade e Jayme de Almeida, que foram ex-jogadores e treinadores do Flamengo”
Marcel Diego Tonini é doutorando em História Social pela Universidade de São Paulo (USP), pesquisador do Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre Futebol e Modalidades Lúdicas (Ludens-USP), do Núcleo de Estudos em História Oral (NEHO) e do Grupo Interdisciplinar de Estudos sobre Futebol (GIEF-USP)