Postado em 27/06/2014
Incansável na arte de fabular e experimentar a língua e a linguagem em seus limites, Guimarães Rosa é criador de um universo sem precedentes na literatura brasileira
O escritor preferido de muitos, o escritor ainda desconhecido de tantos outros. Para muitos admiradores e pesquisadores, João Guimarães Rosa é o maior escritor brasileiro de ficção da segunda metade do século 20. Nas palavras de Walnice Nogueira Galvão, autora de estudos sobre o autor, essa classificação chega a ser consensual. A magnitude das histórias e dos títulos de sua obra rivaliza com o apelo popular do homem extremamente culto e ao mesmo tempo dono de uma humildade ímpar, que fez da vida a própria literatura e vice-versa.
Nascido em Cordisburgo, Minas Gerais, em 1908, aos 10 anos se mudou com a família para a cidade vizinha de São João Del Rei e, posteriormente, para Belo Horizonte. A cidadezinha de Cordisburgo, no entanto, foi a escolhida para abrir seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, em novembro de 1967, poucos dias antes de morrer. Definida por ele como pequenina e sertaneja, teve um lugar especial em sua memória, tanto afetiva quanto geográfica, povoada pelos campos, vaqueiros, gado e a gruta “milmaravilha” do Maquiné: “Cordisburgo era pequenina terra sertaneja, trás montanhas, no meio de Minas Gerais. Só quase lugar, mas tão de repente bonito: lá se desencerra a Gruta do Maquiné, milmaravilha, a das Fadas; e o próprio campo, com vasqueiros cochos de sal ao gado bravo, entre gentis morros ou sob o demais de estrelas, falava-se antes: ‘os pastos da Vista Alegre’.”
Estudos e formação
Guimarães Rosa completa os estudos formais no Colégio Santo Antônio, em São João Del Rei, e depois no Colégio Arnaldo, em Belo Horizonte, o mais renomado da região. Por ele passaram, em diferentes épocas, o poeta Carlos Drummond de Andrade e o médico e escritor Pedro Nava. Profissão, aliás, que Rosa também iria seguir. Inicia o curso em 1925 e o conclui em 1930, na Faculdade de Medicina da Universidade de Minas Gerais. No mesmo ano, casa-se com Lígia Cabral Pena, mãe de suas duas filhas, Vilma e Agnes. Exerceu a medicina numa época e em regiões nas quais os pacientes que não tinham dinheiro para pagar o tratamento ofereciam, em contrapartida à consulta, um cabrito ou uma galinha. Porém, o que o abatia era a impotência ante a morte, quando não conseguia salvar seus pacientes. Tal situação levou-o a a abandonar a profissão.
Poliglota – afirmava falar português, alemão, francês, inglês, espanhol, italiano, esperanto, um pouco de russo; isso sem contar outras tantas línguas nas quais lia ou que pelo menos estudara –, em 1935 ingressou no Itamaraty e encaminhou sua carreira diplomática, começando a assumir compromissos importantes e viagens. Em uma delas, servindo como cônsul-adjunto em Hamburgo, conheceu sua segunda esposa, Aracy Moebius de Carvalho (1908-2011), para quem dedicou o clássico Grande Sertão: Veredas, publicado em 1956.
Expandindo os sertões
Romances e contos de Rosa despertam não apenas a atenção de literatos, mas de criadores de outras áreas. O cantor e compositor nascido no Piauí e criado em Minas Gerais Makely Ka viajou de bicicleta pelo sertão, inspirado nas rotas do livro Grande Sertão e lançou o disco Cavalo Motor em junho deste ano (O show de estreia do álbum aconteceu em maio na Choperia do Sesc Pompeia.). Já o cineasta Fernando Meirelles, fã confesso do escritor, não desistiu de rodar um filme baseado nas mais de 600 páginas do mesmo livro, embora reconheça a dificuldade de investir num projeto desse porte. “Ainda sonho em rodar Grande Sertão: Veredas, mas não sei se um dia isso vai acontecer. É um filme muito caro pela locação, a quantidade de personagens, cavalos, cenários etc. Não sei se o espectador brasileiro hoje estaria interessado em histórias de jagunços. Quem gosta de Guimarães, certamente. Mas, infelizmente, ele é um autor pouco lido no Brasil, ou menos lido do que deveria”, opina Meirelles, que menciona a qualidade cinematográfica das paisagens e a beleza das histórias, os neologismos, o raciocínio e a subjetividade dos personagens. “Ao transpor para o cinema, claro que é possível usar um pouco da prosódia nos diálogos, mas o prazer do texto se perde. Não tem jeito. Trabalhar com boas histórias escritas por maus autores é tarefa bem mais fácil, não há muito a perder”, enfatiza com sinceridade.
Noemi Jaffe, escritora e doutora em literatura brasileira que já trabalhou em seus cursos o conto “A Terceira Margem do Rio”, do livro Primeiras Estórias, de 1962, afirma que esse texto se tornou um símbolo da obra do autor, apresentando suas características marcantes, como a experimentação da linguagem, a transcendência, a erudição e a poetização da linguagem, tudo atrelado à admirável capacidade de fabulação. “Ele costumava contar que esse conto caiu na cabeça dele como uma bola de futebol. Estava andando pela rua e o conto caiu inteiro na cabeça dele. Só precisou sentar e escrever. Tendo isso em vista, o conto se tornou um tanto mitificado”, relata Noemi. Nessa experiência o escritor também inspirou músicos da MPB, em especial Caetano Veloso, que em 1991 produziu a canção homônima interpretada por Milton Nascimento. O conto também mereceu uma adaptação para o cinema, conduzida por Nelson Pereira dos Santos em 1994.
Personagens, fabulação e linguagem
“A vontade de explicar e entender o mundo era tamanha. Não há uma filosofia só para ele, não basta uma religião, então quando chega na língua, não basta uma comum, ele tem que criar a própria”, diz sem disfarçar o encantamento a autora do livro O Léxico de Guimarães Rosa (Edusp, 2008, 3ª ed. revista), Nilce Sant’Anna Martins. Ela optou em chamar o estudo de “léxico” guiada por uma frase do próprio Rosa, que costumava afirmar que cada escritor deveria criar o seu próprio léxico.
A narrativa ficcional e elaborada de Rosa, não é de estranhar, vem acompanhada de personagens marcantes, Riobaldo e Diadorim, Zé Bebelo e Miguilim, que, além de tocar os leitores, têm emoção dividida com o criador. Segundo Nilce, ao mesmo tempo em que escrevia “Campo Geral”, conto do livro Corpo de Baile (José Olympio, 1956, 2 volumes), chorava em alguns trechos. Na opinião dela, certamente por causa do menino Miguilim.
Wander Lourenço, pós-doutorando em Estudos Comparatistas da Universidade de Lisboa, com o tema “Diadorim – a reinvenção de Dom Quixote de La Mancha (Inversões ficcionais do mito da Távola Redonda em Grande Sertão: Veredas)” confessa que, ao se deparar com a invenção da escrita do romancista, não imaginava que um ser humano fosse capaz de escrever com “uma espécie de vara de condão”. “Rosa subverte o idioma de tal feita que o encantatório e o sublime se rendem ao seu discurso-feitiço, qual fossem arrastados por uma correnteza alquímica, que transpõe a represa do idioma, em disfarces de rio, pássaro ou buritizal. Ao mesmo tempo, no Grande Sertão, retrata-se a condição humana em sua fronteira mais limítrofe de sobrevivência entre um ato de traição e uma paixão proibida. As imagens que transbordam poesia desaguam na figura de Maria Diadorim, que se equilibra por sobre dois segredos cruciais: o de paternidade e, sobretudo, o de sexualidade”, contextualiza o pesquisador, que chega a comparar na obra roseana a Donzela Guerreira ao Cavaleiro da Triste Figura – apelido dado por Sancho Pança a Dom Quixote. “É neste exato momento que, por magistrais sutilezas, se prefigura Reinaldo/Diadorim, jagunço do bando de Joca Ramiro – espécie de chefe político assassinado à traição pelo seu lugar-tenente, o pactário Hermógenes –, em diálogo com o fidalgo cinquentenário e andarilho, D. Quixote de La Mancha. Na obra roseana, a Donzela Guerreira se equipara ao Cavaleiro da Triste Figura, quando utiliza o subterfúgio de recriação de Maria Deodorina da Fé Bettencourt Marins em Reinaldo, ambos personagens de si mesmos”, completa.
Complexidade aparente
A viagem pelo universo criado por Rosa não é tarefa fácil, na medida em que demanda dedicação verdadeira ao momento da leitura, atitude que contrasta com o desenho social de hoje, no qual os estímulos são muitos e a variedade de conteúdo se mostra, por vezes, enganosa. Para Noemi, o conjunto da obra é aparentemente complexo, sendo necessário dar um tempo para engrenar na leitura. “É como conversar com uma pessoa que tem sotaque ou usa termos muito diferentes, mas, quando você dá um tempo, pronto!”, incentiva.
A orientação de Nilce, que fez o léxico de Rosa grifando, significando e ressignificando cada palavra, bem ao gosto do próprio autor, indica que se deve começar seguindo a trilha deixada. “Ele começou por Sagarana (Universal, 1946) e é por ele que devemos começar também”, aconselha.
A riqueza literária de Guimarães continuará sendo descoberta, tanto pelos acadêmicos e pesquisadores quanto pelos artistas e leitores que tiverem a chance de mergulhar no universo desse grande criador da literatura brasileira, que publicou cinco livros em vida: Sagarana, Corpo de Baile, Grande Sertão: Veredas (há uma edição de 2005, da Nova Fronteira), Primeiras Estórias (há uma edição de 2005, da Nova Fronteira), Tutameia (há uma edição de 2001, da Nova Fronteira); e dois póstumos: Estas Palavras (José Olympio, 1969) e Ave, Palavra (José Olympio, 1970). Já o livro de poemas Magma (Nova Fronteira, 1997) foi colocado à venda trinta anos após a sua morte e sem sua aprovação, pois, em vida, negara-se a publicá-lo.
Entre os anos de 1950 e 1960, Guimarães Rosa dedicou-se à carreira de diplomata, no Brasil e no exterior, fixando-se, posteriormente, no Rio de Janeiro. Eleito para a Academia Brasileira de Letras em 1963, só assumiu a cadeira em 16 de novembro de 1967, três dias antes de falecer.
Catarse em cena
Monólogo baseado na obra A Hora e a Vez de Augusto Matraga tem como ponto forte a visão sobre o homem do sertão e seu lugar no imaginário brasileiro
O solo A Hora e Vez (foto), parte da programação do Sesc Ipiranga, foi criado num longo processo de estudos dentro do Laboratório Dramático do Ator, desenvolvido por Antonio Januzelli. “O eixo central do Laboratório Dramático é o homem que pretende tocar o outro. Entre os dois existe uma fina linha. Guimarães Rosa possibilita ao homem-ator um passo a mais em direção a essa linha que tanto interessa ao teatro”, enfatiza o ator Rui Ricardo Diaz. Além de Diaz, responsável pela adaptação e atuação, há o diretor Antonio Januzelli, que também cuidou da iluminação e do figurino do espetáculo.
Para Diaz, o trunfo da linguagem roseana já surpreende na primeira página do livro A Hora e Vez de Augusto Matraga, culminando em uma catarse representada pela criação conjunta, “porque Rosa acessa o leitor-autor por meio do que há de mais instintivo e primitivo neste homem. O nosso trabalho, a partir do livro, passa exatamente por este lugar de construção de imagens, que, quando descobertas e vividas em cena, parecem não descolar mais do corpo do homem-ator”, argumenta.
Na opinião do ator e dramaturgo, a obra do escritor tem na fonte o homem brasileiro, o qual se transmuta em forma trágica e mitológica. “Se o nosso trabalho despertar o desejo de leitura do homem-espectador que, porventura, ainda não se permitiu invadir-se por obra de tamanha magnitude, que a literatura de Guimarães possa envolvê-lo da mesma maneira pela qual fomos levados e seduzidos durante todo esse processo”, finaliza Diaz.
A encenação segue no Sesc Ipiranga até 28 de junho. Para mais detalhes, consulte a programação.
Um autor, muitos verbetes
Não bastou escrever histórias, Guimarães Rosa criou seu próprio léxico. A seguir, alguns exemplos.
NONADA. Nada; coisa sem importância. Resultante da aglutinação de non + nada. Palavra que abre o romance Grande Sertão: Veredas, constituindo sozinha a primeira frase e a primeira estranheza e está também no último parágrafo.
PROSTITUTRIZ. A terminação -uta foi trocada por -utriz, talvez para valorizar a pessoa, por uma associação com palavras nobres como imperatriz, embaixatriz, ou simplesmente para se ter um sufixo culto de conotação meliorativa. Pode-se ver também um cruzamento de prostituta e meretriz.
ENXADACHIM. Trabalhador de enxada, lutador humilde. Neologismo formado por analogia a espadachim, a que se opõe pela conotação de humildade, rusticidade, de heroísmo não valorizado.
FLUIFIM. Pequenino, gracioso. Sugere deslizamento. O tom poético do vocábulo é reforçado pela animização.
*Fonte: O Léxico de Guimarães Rosa, de Nilce Sant’Anna Martins. (Assistente: Evair Dias, Revisão Geral: Diva Gomes). São Paulo, Edusp, 2008, 3ª ed. revista.