Postado em 13/06/2014
Por Francele Cocco
Eu não conhecia o interior de São Paulo. Agora, conheço. Isso porque vivo há apenas cinco anos em São Paulo, depois de décadas em outro interior, o do Rio Grande do Sul. Mais presa à metrópole do que gostaria, mais paulistana que paulista, nunca pude conhecer de fato o interior – mesmo porque conhecer predispõe estar entre as pessoas e ouvi-las com atenção, entender o que cada lugar tem a nos dizer.
A Série RGs foi desenvolvida em paralelo à programação ambulante do Circuito Sesc de Artes e desvelou a identidade desses tantos lugares, não pela história oficial, mas pelo imaginário – do seus moradores, dos seus temperos, dos seus mascotes e do seu cotidiano.
Historiadora e jornalista, fui convidada pela equipe do Portal Sesc SP para coordenar os redatores e editar os conteúdos que comporiam a série. Assumi a função pensando que seria mais um trabalho técnico de tratar mais ou menos 100 crônicas, algumas imagens, outras tantas notícias e o desdobramento disso tudo nas redes sociais. Mas logo vi que técnica não bastaria. Os RGs tratavam da vida – da minha própria vida também.
Nasci numa dessas cidades de interior, cujo imaginário coletivo em unanimidade retrata com uma praça, uma igreja, comida caseira e um jeito utopicamente mais simples de viver. Só que não é tão simples assim. A tal harmonia é na verdade composta por uma multiplicidade de vivências, perspectivas, saberes e desejos. Se cada praça tem uma igreja, qual a relação dela com a comunidade? Como foi constituída a paróquia? Quem são as pessoas que cuidam daquele terreno? Quem se transformou em padre?
Entre mil descobertas deliciosas, os RGs me contaram a história de um padre que era na verdade um grande pianista, de um outro que demoliu o próprio altar e outro ainda comunista e temente a Deus na mesma proporção. Em Mogi Mirim, imagine, editei uma entrevista com Jesus!
Isso considerando apenas as histórias da religião católica, intrinsecamente ligada à fundação das primeiras vila e agrupamentos urbanos do Brasil. Ao lado dessas tantas igrejas dos interiores estão praças com pipoqueiros, monumentos, museus, bancas de jornais e vinis, tamarindos, cerejeiras, cachorros, pavões e jacarés. Jales, Caçapava, Itapeva, Garça, Bebedouro, Poá, Mauá e tantas outras tiveram essa diversidade de suas praças centrais escancarada em textos desta série.
Vale a pena ler e conhecer cada um dos personagens humanos (é só entrar no site www.sescsp.org.br/circuitosescdeartes). Coriolando me chamou a atenção especialmente. O "Senhor das Mortes". Em algum momento de sua vida, ele passou a divulgar previsões de óbitos e a chorar a dor da cidade cada vez que perdia um filho da sua terra. Jaú se tornou para mim uma cidade onde o humano tem valor, um lugar sensível que acolheu os devaneios daquele homem com um cavalo errante improvisado num cabo de vassoura – e que aqui na cidade grande estaria perdido entre o barulho e tantas outras fantasias.
Conheci também e salivo pelos bolinhos com carne e queijo do Dito em Jundiaí, ou os centenários bolinhos de frango de Itapetininga. Já falei da manjubinha de Iguape? Tem ainda arroz vermelho direto de Cruzeiro e até o churrasco grego de Guarulhos. Sobremesa: pode ser uma bananinha feita em tacho de ferro como a de Ubatuba, um sorvete artesanal de Itapólis e, por que não? uma pipoca doce e rosa feita de macarrão (tem lá em Bragança Paulista).
(Um parêntese para os causos assustadores - “O caso da abdução em Mirassol” encanta a ufologia há mais de 30 anos e joga um ar de mistério no norte paulista, bem como em Pindamonhangaba, cidade que se assusta até hoje com um barqueiro fantasma que em vez de se chamar Caronte e cruzar o rio Estinge, como no mito grego, é conhecido como Nhô Zé e faz suas travessias no rio Paraíba do Sul.)
A quebra com a noção de unanimidade que gera tanto preconceito e meias verdades sobre o "interior" (uma palavra só para taaanta coisa) é o ponto nevrálgico em que a Série RGs desejou tocar. Buscar as semelhanças entre todos nós ao parar para enxergar verdadeiramente o outro foi o que moveu o exercício de pesquisa e escrita de cada editor-web das 14 unidades do Sesc, que visitaram as cidades e me contaram suas impressões. Eu apenas embarquei, como se editasse os relatos de viagem de Marco Polo, e conheci um novo universo para além da cidade engolidora de São Paulo. Estou louca de vontade de chegar em cada uma dessas 102 cidades e dizer: "Vem cá, é verdade a história do fulano que..."?