Postado em 01/11/2000
Ives Gandra faz um diagnóstico dos problemas do Judiciário
Palestra, seguida de debate, pronunciada no Conselho de Economia, Sociologia e Política da Federação do Comércio do Estado de São Paulo (FCESP), no dia 17 de agosto de 2000
IVES GANDRA DA SILVA MARTINS – Em reunião neste conselho, creio que em 1987, quando estávamos em pleno processo constituinte, analisei o projeto que se discutia na comissão de sistematização.
Hoje o tema está novamente relacionado ao problema constituinte, à necessidade de uma reforma do Poder Judiciário. Minha intenção é fazer uma análise, diagnosticando os problemas do Poder Judiciário, relacionando o que me pareceria adequado para que essa reforma se fizesse e examinando concretamente o projeto da relatora Zulaiê Cobra Ribeiro, aprovado pela Câmara dos Deputados, que está no Senado para exame e eventuais modificações em alguns pontos.
Onde está o mal do Poder Judiciário hoje no Brasil? A culpa será dos magistrados, que não estão à altura de responder aos diversos desafios, ou estamos com uma estrutura de Poder Judiciário inadequada para as demandas que o processo constituinte gerou no país? Se analisarmos o número de magistrados que temos, verificaremos que, pela população brasileira, o número é absolutamente inadequado, inferior às necessidades. Para 165 milhões de habitantes temos em torno de 13 mil magistrados em nível federal e estadual. Vale dizer, em nenhum país do mundo civilizado há tão poucos magistrados para tantos jurisdicionados.
Por outro lado, a Constituição de 1988 criou quatro instâncias de administração de justiça. Hoje, um bom advogado, numa questão em que tem poucas possibilidades de êxito, consegue prolongar o processo por oito, dez, 12, 15 anos, em face da possibilidade de utilizar essas instâncias. Em verdade, temos uma instância inicial, um juízo monocrático, os tribunais federais e estaduais, Alçada e de Justiça, além dos do Trabalho, e duas instâncias de administração de justiça, que são o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o Supremo Tribunal Federal (STF). Um bom advogado, em função das excessivas competências outorgadas aos tribunais superiores, pode levar qualquer ação ao STJ e ao STF simultaneamente, alegando questões de legalidade e de constitucionalidade. Outro dia o ministro Moreira Alves, com muita pertinência, dizia que um bom advogado vai a um juiz de primeira instância e junta como prova uma lista telefônica. O juiz denega e diz: "Por que essa lista telefônica no processo?" E indefere aquela colocação. Cerceamento ao direito de defesa, artigo 5º, inciso LV da Constituição, pré-questionamento constitucional leva essa questão ao STF.
Por outro lado, nossa Constituição é de pormenores. Tem princípios importantes, mas muito mais dispositivos de legislação complementar ordinária ou de meras portarias do que uma Carta civilizada. É interessante notar que o Paraguai e a Argentina, na década de 90, realizaram uma revisão constitucional e, aproveitando muitos erros e equívocos que tivemos, conseguiram produzir textos indiscutivelmente melhores do que o nosso. O resultado é que a litigiosidade em nível constitucional nesses países praticamente não existe.
É muito difícil qualquer país civilizado ter uma Constituição tão pormenorizada como a nossa. Vou citar dois apenas, como dispositivos que causam espécie. O artigo 242 diz: "O Colégio Pedro II, localizado na cidade do Rio de Janeiro, será mantido na órbita federal". Isso é um princípio constitucional e inibidor, quer dizer, o colégio não pode sair do Rio de Janeiro. O constituinte, para preservar, impediu a evolução do colégio. Outro dispositivo, o artigo 26: "No prazo de um ano a contar da promulgação da Constituição, o Congresso Nacional promoverá, através de comissão mista, exame analítico e pericial dos atos e fatos geradores do endividamento externo brasileiro. A comissão terá a força legal de Comissão Parlamentar de Inquérito para os fins de requisição e convocação, e atuará com o auxílio do Tribunal de Contas da União. Apurada irregularidade, o Congresso Nacional proporá ao Poder Executivo a declaração de nulidade do ato e encaminhará o processo ao Ministério Público Federal, que formalizará, no prazo de 60 dias, a ação cabível". Ora, o foro de competência para decidir sobre nosso endividamento é sempre fora do país. Então os senhores imaginem o procurador-geral da República chegando aos Estados Unidos e declarando que vai entrar com ação competente (sem ter competência nenhuma nos Estados Unidos) para dizer: "Não vamos pagar porque segundo a comissão do Brasil aquele ato assinado por todos nós não tem validade".
Nossa Constituição surgiu com 315 artigos e hoje já tem mais de 330. A Carta americana tem sete artigos e sofreu 26 emendas em 213 anos. A nossa tem 12 anos e 36 emendas até agora, inclusive a que vamos discutir aqui. É evidente que uma Constituição dessas aumentaria consideravelmente a litigiosidade dentro do país, razão pela qual, a partir de 88, tivemos uma multiplicação decorrente não só dos inúmeros conflitos causados pela Carta, mas, mais do que isso, com a colocação de diversos dispositivos que obrigam necessariamente o juiz a se manifestar em relação a tudo. O Supremo ficou com a competência de julgar inclusive questões sem nenhuma relevância. O STF recebe por ano 80 mil processos, e são 11 ministros. Nesse período, a Suprema Corte dos Estados Unidos decide 150 processos. O Tribunal Superior do Trabalho (TST), com 17 ministros, recebeu 130 mil processos em 1999. No STJ, com 33 ministros, são 113 mil processos por ano. Todos os processos têm de ser públicos, todos têm de ser motivados, e os tribunais superiores fazem apenas administração de justiça, em vez de manter a ordem institucional. Numa boa organização judiciária, administração de justiça se faz em primeira e segunda instâncias. Aos tribunais superiores cabe manter a estabilidade institucional. Eles têm de permitir que as instituições sejam corretamente interpretadas. No Brasil as quatro instâncias são de administração de justiça. É evidente que com 80 mil processos por ano e dez ministros, porque o presidente nunca relata, mas apenas preside as reuniões plenárias, em verdade temos em torno de 8 mil processos por ano por ministro. É humanamente impossível que um só ministro decida tamanha quantidade de processos. Eles escolhem os mais relevantes.
Essa estrutura precisa ser alterada: instâncias de mais, escassez de magistrados e excesso de recursos processuais. Se analisarmos o Código de Processo, os próprios regimentos internos dos tribunais e as novas ações criadas, algumas inclusive jurisprudencialmente e não em decorrência de dispositivos legais, vamos verificar que o bom advogado é aquele que conhece toda a mecânica processual. Diria mesmo que nossa Justiça passou a ser elitista porque o pobre, o cidadão que precisa discutir em juízo mas não pode pagar um bom advogado, muitas vezes pode ter o direito mas perde nos meandros processuais. E muitas vezes alguém sem nenhum direito ganha em função da boa utilização do processo. Isso é o que se pretendia corrigir com a reforma do Judiciário.
Na prática, o projeto da deputada Zulaiê não equaciona nenhum desses problemas fundamentais. A deputada é uma boa advogada penalista, mas de instâncias inferiores. Ela nunca sustentou perante o STF ou o STJ. A grande preocupação dela foi uma colocação de natureza política: como controlar o Poder Judiciário? Porque entendia que ele não tinha nenhuma espécie de fiscalização, e pretendeu fazer na verdade uma reforma cujo centro é a criação de um controle externo da magistratura. Todo o resto passou a ser perfumaria jurídica nesse projeto, que já tem os destaques aprovados e agora está para ser discutido no Senado.
O Conselho Nacional da Magistratura seria composto apenas por pessoas da área jurídica, magistrados do Supremo e dos tribunais. O STF passaria a ter 12 magistrados, e um deles seria o corregedor e presidente desse conselho, composto por dois representantes do Ministério Público, dois do Conselho Federal da Ordem e dois juristas de ilibada reputação. Dessa forma, eles controlariam o Poder Judiciário. Ao colocar o Conselho Nacional da Magistratura, ela entendeu que dessa maneira iria dar celeridade aos processos e discutir a forma como a magistratura deveria se comportar. Desde o início entendo que o que teria de ser melhorado é a corregedoria, deslocando-a dos tribunais locais, em questões de relevância, para os superiores. Mas nunca colocar elementos de outras instituições vinculadas à administração de justiça, como advocacia e Ministério Público, para controlar a magistratura. Imaginem um advogado que esteja no Conselho Nacional da Magistratura e vá defender qualquer questão. A vantagem psicológica que esse advogado teria por ser um controlador do juiz que vai julgá-lo é total. Eu disse a Zulaiê que o advogado que aceitasse participar desse conselho não poderia mais advogar enquanto lá estivesse, da mesma forma que o membro do Ministério Público em matéria de direito penal. E já que se vai controlar o Poder Judiciário e também o Ministério Público, com o mesmo perfil de advogados participando do controle, por que não controlar o Conselho Federal da Ordem? A resposta que a deputada Zulaiê me deu num debate que tivemos foi de que o advogado é controlado pelo cliente, o que não é verdade. Todos sabemos como se comportam os tribunais de ética dos conselhos seccionais, com excelentes elementos, mas que não conseguem nunca impor as penas, porque são tantos os recursos de advogados que não agem adequadamente que jamais eles são punidos. Vale dizer, se houvesse controle, que todas as instituições fossem controladas, mas não, por ter sido proposta a reforma por uma relatora advogada, um controle externo da magistratura, do Ministério Público e uma absoluta falta de controle do Conselho Federal da Ordem, que muitas vezes não é uma instituição de justiça (digo isso como conselheiro que fui durante oito anos e dizia isso já na época), mas um braço de determinadas agremiações políticas com manifestações muitas vezes mais políticas do que do interesse da Ordem, do direito e do Poder Judiciário. Vemos assim que o controle do Judiciário passou a ser a única razão da reforma. Se analisarmos todos os outros dispositivos, vamos verificar que pouca coisa foi acrescentada.
No artigo 5º, o objetivo é dar eficácia ao mandado de injunção. Temos um mandado de injunção de norma constitucional que deveria ter sido regulamentada por legislação e não o foi. Os interessados não têm como fazer uma norma não-regulamentada aplicável em casos concretos, fora do controle concentrado de constitucionalidade. O dispositivo que ela colocou no artigo 5º da Constituição não soluciona nenhum dos problemas fundamentais, porque diz: "Conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício de direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania, destinando-se o provimento judicial a suprir norma para o interessado no âmbito do pedido". Ora, em minha opinião, isso já estava na disposição anterior e continua o Poder Judiciário tendo de se transformar num legislador positivo nos mandados de injunção, porque o próprio Poder Legislativo não criou a norma. Como produzir a norma para aquele caso concreto? Discutíamos com o ministro Sidney Sanches esse dispositivo. Vamos admitir o seguinte: um cidadão alega que seu salário é insuficiente para obter os elementos necessários à sobrevivência. Ele tem seis filhos, e o juiz determina que em vez de receber x receba y. Outro cidadão, solteiro, diz que tem direito à paridade porque está exercendo a mesma função, e o juiz, como é legislador positivo, declara que ele não tem tantas necessidades porque não tem filhos, de tal forma que vai ganhar menos do que o outro. Isso evidentemente vai criar um problema de desigualdade que o direito do trabalho não permite. Vale dizer, terá de ser feita uma extensão, e a norma para o caso concreto deverá ser uma que não seja examinada para o caso concreto, o que fará com que o juiz seja em última análise um legislador positivo. E o Poder Judiciário não fará isso, como não fez em todos os mandados de injunção que foram apresentados até agora, como também não agiu assim nas ações diretas de inconstitucionalidade por omissão, que vem do direito português e não teve aplicação no direito brasileiro.
Por exemplo, no caso de sua especialidade, professor Marotta Rangel, o projeto diz que os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos, aprovados em cada casa do Congresso Nacional em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais condicionadas à aplicação pela outra parte. De certa forma os tratados internacionais sobre direitos humanos já compõem a Constituição como direitos individuais no parágrafo 2º do artigo 5º. Todos os direitos fundamentais são naturais. O Estado só pode reconhecê-los, não pode criá-los, e eles já estão assegurados em nível constitucional e como cláusulas pétreas no artigo 5º. Isso não acrescenta absolutamente nada. E nos outros casos o tratado internacional tem apenas eficácia de lei ordinária especial, segundo jurisprudência do Supremo no direito brasileiro. É diferente do que ocorre no direito argentino, em que o tratado prevalece sobre o direito interno, está abaixo da Constituição mas acima da legislação ordinária. A jurisprudência do Brasil é que os tratados internacionais têm eficácia e força de direito interno, portanto estão no mesmo nível hierárquico legislativo. Esses problemas não foram solucionados.
Mas nem vou entrar em considerações mais técnicas de composição de tribunais, etc. Para poder apresentar o que me parece que seria o ideal para uma reforma do Judiciário, vou apenas mencionar alguns pontos que são a meu ver essenciais. O primeiro diz respeito à súmula vinculante e ao efeito vinculante das decisões. O destaque que foi adotado contra o voto da deputada Zulaiê permitiu que venhamos a ter o efeito vinculante e a súmula vinculante, porque, na proposta que ela fizera, o que fora colocado era que as decisões em controle concentrado teriam efeito vinculante. Para distinguirmos efeito vinculante de súmula vinculante, digo que o primeiro decorre do efeito que se dá a determinada decisão, mesmo que ela não seja sumulada. A súmula vinculante decorre de um posicionamento do tribunal, que define que aquela orientação deve ser sumulada, e a súmula passaria a ter o efeito vinculante. Embora o resultado final seja o mesmo, o efeito pode decorrer de decisão não-sumulada, e a súmula vinculante necessariamente decorre de uma consolidação jurisprudencial de determinada orientação que passa a vincular os juízes inferiores. O que ela pretendia era só, no controle concentrado de constitucionalidade, que tivéssemos o efeito vinculante, e não no controle difuso. Para aqueles que não têm um trato mais cotidiano com o direito, controle difuso e controle concentrado são duas formas de administrar justiça, e o difuso é aquele que o Poder Judiciário faz da lei e da ordem em cada caso concreto. Caso típico: discute-se hoje o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço no Supremo. A questão, quando for decidida, só valerá entre as partes que estão discutindo. O que o Supremo disser serve de orientação, mas não vale aquela decisão para as outras pessoas que não entraram em juízo. Isso é controle em concreto ou difuso. O que é controle concentrado ou abstrato? Em questões de legislação estadual e federal, só o Supremo pode exercer o controle concentrado. Em relação à legislação municipal, cabe aos tribunais de justiça de cada estado o exercício do controle. Não se vai fazer administração de justiça. O que se irá saber é se determinada norma infraconstitucional fere ou não as disposições constitucionais. Vale dizer, no momento em que se provoca o Supremo através de uma ação direta de inconstitucionalidade ou de uma declaratória de constitucionalidade, ele não estará preocupado em nenhum momento em saber qual é a eficácia, quais são os problemas e de que maneira essa lei será aplicada. O STF examinará apenas abstratamente se aquela norma pode ou não ser inserida dentro do sistema constitucional vigente. O que pretendia a deputada Zulaiê? Só no controle concentrado de constitucionalidade admitir o efeito vinculante, e não em relação à possibilidade no controle difuso. O que ela pretendia nós já temos.
Não tenho de cuidar do efeito vinculante do controle concentrado, porque, no momento em que se considera que uma norma é inconstitucional e a sua eficácia é suspensa, a suspensão significa que ela é retirada provisoriamente do universo jurídico. Se isso acontece, já temos a não-aplicabilidade daquela norma enquanto durar a medida liminar. Essa suspensão de eficácia se transforma em eliminação da norma do universo jurídico quando decidem após a liminar de forma definitiva, depois de ouvidas a Procuradoria da República, as partes interessadas, etc.
O que ela pretendia era dar à súmula vinculante um efeito que já existe e que não seria necessária a súmula vinculante, porque se trata de uma interpretação pontual. É que a decisão retira aquela norma e, se isso acontece, ela não pode ser utilizada no sistema. Felizmente, na aprovação de destaque no Congresso voltou-se ao efeito vinculante e à possibilidade de súmula vinculante, tanto no controle difuso quanto no concentrado. Espero que o Senado Federal venha a concordar com essas disposições.
O ministro José Celso de Mello me dizia outro dia que 60% dos processos repetitivos que recebe são do poder público. Se houvesse o efeito vinculante de decisões – mesmo não sumuladas – que o Supremo desse, automaticamente esses processos não chegariam até lá. Se algum dos senhores já assistiu a uma sessão do tribunal, é algo que impressiona. Chega o ministro e diz: "Senhores relatores dos processos de número 200 a 400, todos referentes ao mesmo assunto, a minha posição é esta". Agora, é um trabalho enorme em cada processo verificar se se enquadra aqui ou se enquadra lá, mas é preciso dar o voto público para cada questão. Isso não chegaria ao Supremo. Então me parece que esse é um aspecto positivo que se coloca.
Um negativo está voltando à baila hoje nos jornais. Inicialmente havia um dispositivo que era a "lei da mordaça", e este caiu na proposta da deputada Zulaiê. Tenho a impressão de que com o excesso vocabular dos nossos jovens procuradores da República, é possível que se possa rediscutir o problema dessa lei em nível constitucional. Em minha opinião, nada é tão fundamental quanto a "lei da mordaça". O nome foi maliciosamente colocado por alguns procuradores da República em relação ao projeto que pretende apenas impor preceito fundamental da lei suprema. Ela não impede em nada que os jornalistas façam suas investigações. Num almoço com Otávio Frias outro dia, eu dizia o seguinte: a "lei da mordaça" é a melhor forma de valorizar o jornalismo. Sem ela, o jornalista não é jornalista, é apenas amigo de uma autoridade. Quem é amigo de uma autoridade tem uma informação e a passa publicamente, atingindo a imagem das pessoas e evidentemente violando um direito fundamental e o principal dos direitos democráticos, que é o de defesa. A democracia se diferencia das ditaduras fundamentalmente não pelo direito de voto, mas pelo de defesa. Muitas vezes temos falsas democracias, em que o sujeito pode votar em partido único. O direito de defesa amplo que é assegurado na Constituição é o que caracteriza a democracia e não existe nos regimes ditatoriais. Cada vez que a imagem de uma pessoa é atingida e ela é condenada publicamente, o advogado que a defende tem muitas dificuldades. Outro dia me dizia um membro do Conselho de Estudos Jurídicos da Federação do Comércio do Estado de São Paulo, o doutor Mário Sérgio Duarte Garcia, que quando aceitou defender o prefeito Pitta parentes seus ligavam dizendo: "Mas como é que você vai defendê-lo? Sua imagem ficará maculada". Quando alguém é condenado pública e previamente, sua própria defesa já fica de certa forma prejudicada. E quantas informações são dadas contra um direito fundamental na Constituição, que é o artigo 5º, inciso LVII, que é cláusula pétrea e não pode ser modificada nem por emenda constitucional, e que diz o seguinte: "Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória"? Mais do que isso, o artigo 5º, inciso X, declara: "São invioláveis a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação". E a lei complementar do Ministério Público exige que eles não dêem informações, eles são obrigados a guardar sigilo. O que vimos na declaração de alguns procuradores foi que, como não tinham os fatos em processos em que atuam e não têm até hoje, provocavam a imprensa a fim de que ela lhes desse os elementos para que eles pudessem dizer que estavam investigando aquilo que a imprensa tinha denunciado. Ora, se a "lei da mordaça" estivesse na Constituição, o jornalista teria toda a liberdade. Eu me lembro do trabalho de jornalismo puro que um amigo meu, Edvaldo Dantas, fez para encontrar um criminoso nazista na Bolívia, Klaus Barbie. "O Estado de S. Paulo" manteve em sigilo o trabalho. Isso foi elogiado no mundo inteiro como uma investigação exclusivamente jornalística. Agora, se um jornalista é amigo de fulano de tal, e, como é filiado ao mesmo partido político, recebe dele todas as informações, isso não é jornalismo. Então a "lei da mordaça", além de garantir a Constituição, permitiria que as investigações fossem sérias, porque o melhor seria que a pessoa não soubesse quando está sendo investigada pelo Ministério Público e pela polícia. Também, quando esses dados são apresentados, as provas foram colhidas, mas muitas delas ainda não encontradas podem ser destruídas. Até para preservar o direito de fazer uma investigação em profundidade, esse sigilo teria de ser mantido.
Outro aspecto da reforma do Poder Judiciário que me impressiona – e aí negativamente – é que não houve nenhuma alteração em todas as disposições para reduzir competências dos tribunais superiores. Vale dizer, houve modificações cosméticas nas competências do STJ e do STF, mas não as essenciais.
Nesse projeto de reforma como está, o capítulo que vai do artigo 92 ao 126 como está definido? Do 92 até a competência do STF no 102, diz como é a carreira, como se ascenderá à magistratura, quais são os direitos dos magistrados, como se faz a composição, como se elege, é mais a organização da magistratura. Do 102 ao 126, trata da competência dos diversos tribunais. Tudo foi mantido, quando o que se deveria fazer era adotar uma estrutura semelhante à de países mais desenvolvidos. Então gostaria de colocar como vejo uma reforma do Judiciário. É absolutamente impossível mantermos o STF com as competências que tem. A meu ver, ele deveria ser exclusivamente uma corte constitucional. E por que digo isso? Os senhores sabem que nesse período de 12 anos mais de 2 mil ações diretas de inconstitucionalidade ingressaram no Supremo? A Corte Constitucional alemã vem da Constituição de 48 e em pouco mais de 50 anos teve menos ações de inconstitucionalidade do que o STF no Brasil em 12 anos. A Corte Constitucional de Portugal, da Itália, a mesma coisa. Porque lá só se discute matéria constitucional. Por que fazer do STF, além do controle concentrado, uma quarta instância de administração de justiça?
O artigo 102 diz que o STF é o guardião da Constituição. A impressão que tenho é que nessa função eles se sentiriam muito à vontade. Com o acúmulo de trabalho, cada vez que os senhores vêem o STF nas manchetes é porque eles estão decidindo quase sempre, não todas as vezes, matéria referente a controle concentrado. No Brasil são mais de 600 entidades que podem entrar com ações diretas de inconstitucionalidade, considerando o inciso IX do artigo 103, que faz menção a entidades de classe. Embora se utilize a pertinência temática, que reduz o âmbito dessas entidades, as confederações nacionais todas têm direito de propor esse tipo de ação, assim como todos os partidos políticos que estão no Congresso Nacional e todas as assembléias legislativas dos estados. Então, o STF deveria ter apenas uma competência constitucional para manter, como guardião da Constituição, a estabilidade das instituições.
O STJ hoje discute todas as questões de legalidade. Os senhores hão de convir que não há questão de legalidade que não tenha também uma vinculação constitucional. Embora o Supremo declare que aquilo que for de legalidade só indiretamente é inconstitucionalidade, e sendo indiretamente inconstitucional a legalidade prevalece sobre a constitucionalidade, sempre se encontra um dispositivo de legalidade e um de inconstitucionalidade diferente para justificar o recurso especial ou extraordinário ao Supremo. Um recurso especial para o STJ normalmente serve para pedir que se faça a justiça que não se fez nos tribunais inferiores, no Tribunal de Justiça, no Tribunal de Alçada, no Tribunal Regional Federal.
Em minha opinião o STJ deveria ser apenas uma corte de harmonização de jurisprudência. Se o Tribunal de São Paulo decide diferentemente do de Minas Gerais sobre um dispositivo de legalidade, o STJ harmoniza a jurisprudência. A objeção a esse argumento que apresento foi levantada por alguns advogados brilhantes. Por exemplo, Miguel Reale Júnior diz que no dia em que tivermos o STJ como órgão de harmonização não haverá problema em relação a São Paulo e Rio de Janeiro, mas a Justiça de estados mais distantes, em que a confiabilidade não seria tão grande, poderia gerar brutais injustiças. Eu contra-argumentei. Hoje há um princípio em direito que tem sido constantemente invocado: a razoabilidade. Por exemplo, no caso de alguém que teve seu cheque indevidamente devolvido pelo banco sob a alegação de que não tinha fundos, a Justiça do Maranhão começou a dar indenizações por danos morais de US$ 2,5 milhões. É evidente que isso era absolutamente irrazoável, não houve nenhum dano moral, ninguém soube daquilo, ficou entre o banco e a pessoa, foi corrigido imediatamente. No caso concreto do Maranhão, a situação era ainda muito mais grave, pois, como os jornais noticiaram e ficou comprovado, a máquina do advogado era a mesma do juiz e a mesma do acórdão, o que motivou a criação de uma CPI na Assembléia Legislativa do Maranhão, que não foi adiante porque pura e simplesmente os desembargadores se negaram a comparecer. Mas pelo número de juízes que receberam indenização por danos morais se descobriu que teriam de recorrer ao STJ, apesar de ser matéria de fato, porque cálculo é matéria de fato, não é matéria que justifique questão de legalidade. Com o princípio da razoabilidade, levou-se ao STJ. Então poderíamos ter uma harmonização. Se em alguns estados as indenizações são mil vezes superiores às de todos os outros estados, alguma coisa está errada e a harmonização é possível.
Então teríamos só duas instâncias: um juízo monocrático e os tribunais de segunda instância para uma revisão de decisão, com o direito dessa harmonização jurisprudencial quando fosse irrazoável ou quando a jurisprudência fosse conflitante. E o Supremo como corte constitucional. Estou convencido de que reduziríamos consideravelmente as questões. Por outro lado, teríamos de fazer uma revisão de nossas leis processuais, porque muitas delas foram criadas em decorrência de práticas jurisprudenciais que negam a justiça. Vou dar um exemplo para mostrar a gravidade dessa questão. Hoje, se alguém tem uma decisão contrária em segunda instância, porque uma questão não foi razoavelmente examinada pelo juiz, mesmo que tenha mostrado na sua petição inicial todos os argumentos, se ele não pedir em embargos de declaração sobre todos aqueles argumentos, no Superior dirão que ele argumentou em primeira instância, mas não interpôs os embargos de declaração. Então essa matéria que foi omissa no acórdão não pode ser reexaminada porque não houve o pré-questionamento em completo. Por que o STJ adotou essa orientação que não está em nenhum código? Para reduzir o número de processos, que deixam de subir por falta de pré-questionamento. É evidente que não está na norma processual, e um jovem que se formou recentemente em direito talvez não conheça a jurisprudência e deixe passar. E com isso aquele que está menos preparado (e os clientes com menos recursos são obrigados a utilizar advogados com menos experiência) vê seu direito sacrificado, mesmo que tenha o direito. Os advogados com mais experiência sabem perfeitamente o que têm de fazer. Então se cria um problema maior, pois o tribunal é obrigado a analisar a questão e a se reunir de novo para examinar os embargos de declaração para justificar o recurso para o STJ. Então para se defender de processos aumenta-se o número de recursos processuais, mas ao mesmo tempo tudo fica mais demorado nas instâncias inferiores. E a Justiça passa a ser elitista.
Outro exemplo são as procurações. Os tribunais superiores exigem que a procuração seja autenticada e juntada, quando o Código de Processo Civil permite que não seja. Uma noite eu estava em casa e o presidente do Conselho Federal da Ordem, que tinha uma ação direta de inconstitucionalidade, julgamento de mérito, e estava num congresso, me pediu para fazer a sustentação oral pelo Conselho da Ordem no STF. Então no dia seguinte havia alguém me esperando para estudar o processo quando cheguei a Brasília, para fazer a sustentação às 2 horas perante o STF. É evidente que naquela ocasião, sem a procuração que tinha de vir dele, a única forma foi alegar o que o código permite: a juntada da procuração em 48 horas. De acordo com o Código de Processo, hoje no Supremo, se eu não juntar antes, não posso fazer a sustentação oral, por decisão que objetiva reduzir o trabalho. Então a título de se protegerem do excesso de trabalho provocado por essas estruturas incorretas, os tribunais utilizam uma forma de também não se fazer justiça.
Parece-me que efetivamente teremos de repensar, em nível de legislação processual, uma redução de todas essas possibilidades processuais que fazem com que a justiça seja cada vez mais lenta, nada obstante a seriedade e a competência dos magistrados ou da maioria deles. É evidente que há os menos competentes, e deve haver alguma corrupção no Poder Judiciário. Mas estou convencido de que é numa escala incomensuravelmente menor do que em relação aos outros poderes. Entretanto, não podemos ter uma estrutura esclerosada. Ela é que nos leva hoje a uma profunda insatisfação com o Poder Judiciário.
Em resumo, para concluir, nossas estruturas não são adequadas. Essa reforma que está no Senado não resolve os problemas fundamentais. O que me parece que solucionaria é o que apresentei aos senhores: criar duas instâncias de administração de justiça e duas de harmonização de jurisprudência e de preservação da Constituição e das instituições, e ao mesmo tempo uma revisão para redução das possibilidades processuais de defesa. Com a súmula vinculante e o efeito vinculante vai haver uma redução natural. E adotaria também outro critério fundamental: um número maior de magistrados. Não diria como na Alemanha ou nos Estados Unidos, onde é muito maior do que o nosso, mas como na Argentina ou no México, que, tendo estruturas inferiores às nossas, têm um número de jurisdicionados menor por cada magistrado. Com a escassez de juízes, mesmo que melhoremos todas as estruturas, continuarão eles insuficientes para atender à demanda.
Um último dado, uma convicção pessoal. Estou convencido de que o magistrado deve ganhar bem. Quando ganha bem, passa a ser muito menos tentado, e pela própria honra da função que exerce. Na minha opinião, é ele quem tem o poder supremo. Recordo aqui um diálogo havido entre o presidente da Suprema Corte argentina, Adolfo Gabrieli, e o então presidente Jorge Videla. Disse o general, porque não havia Poder Legislativo na época: "Nós somos as duas maiores autoridades na Argentina". E Gabrieli respondeu: "Presidente, eu sou a maior autoridade, porque sou o único que pode determinar sua prisão. O senhor não pode tirar meu poder dentro da lei, mas eu sou aquele que pode fazê-lo, e o senhor só com a força pode afastar-me".
Se o magistrado é aquele que pode dar a palavra final, aquele que pode decidir sobre os poderes, é evidente que deve ter remuneração adequada. Confúcio disse que a sabedoria era mais importante do que a riqueza e o poder. Ele dizia que, se a China viesse a ter servidores cultos e sábios, o amor e a sabedoria fariam com que eles se afastassem da corrupção e da vontade de ter o poder sangrento. Isso não se revelou, entretanto, uma verdade absoluta. Hernâni Donato dos Reis, nos Combatentes da China, demonstra que a teoria confuciana não foi inteiramente aceita ou pelo menos aplicada. O certo é que a grande maioria, se tiver tranqüilidade econômica, evidentemente vai decidir com outro grau de serenidade as questões que lhe são apresentadas.
Debate
Nota do Editor: as colocações dirigidas ao palestrante foram algumas vezes reunidas em blocos, para ser respondidas de forma concentrada.
JOSUÉ MUSSALÉM – Como economista, andei fazendo umas contas aqui e vi que seu cálculo de 165 milhões de habitantes por 13 mil magistrados dá exatamente 12.692 jurisdicionados para cada magistrado. Como o Brasil tem, segundo Edmar Bacha, o conceito de Belíndia, rendas de Bélgica e de Índia, quem está na da Índia no Brasil, que é a maioria, estaria afastado desse processo de direito à justiça. Se tomarmos apenas os 65 milhões de renda mais alta – marginalizando 100 milhões de brasileiros que vivem num certo grau de pobreza, não diria absoluta, porque nessa faixa são 20 milhões –, encontraremos mesmo assim 5 mil jurisdicionados para cada magistrado. Temos um conceito de marginalidade da justiça, também.
Você falou no final de sua palestra sobre a Argentina. Existe algum parâmetro médio de jurisdicionados por juiz no Primeiro Mundo, ou talvez na Espanha e na Argentina, que são países assemelhados ao nosso?
Outro ponto tem a ver com a reforma tributária. Ela sai ou não sai? Acho que Everardo Maciel não quer que saia, dada a competência arrecadadora da Secretaria da Receita Federal. Mas há um dado muito interessante: eles têm insistido na quebra do sigilo bancário, sem passar pela Justiça. Ora, a Receita Federal não é capaz de garantir o sigilo fiscal nem de Fernando Henrique Cardoso.
VICENTE MAROTTA RANGEL – A questão que levanto é se não haveria porventura também uma razão de crítica ao projeto da ilustre deputada pelo fato de que essa matéria seria mais bem equacionada, como foi no passado em projeto anterior, não no tocante à reforma do Poder Judiciário, senão no atinente aos princípios que devem reger a nossa Constituição, por se tratar de um tema que desborda do âmbito de um dos poderes do Estado e que interessa concomitantemente tanto ao Poder Legislativo quanto ao Executivo.
Minha segunda indagação vem do fato de que existe um problema referente à integração sob um outro aspecto. Trata-se da questão da coordenação entre a competência das autoridades judicantes brasileiras e uma eventual competência de um tribunal que se poderia criar no âmbito do Mercosul – mesmo não sendo um tribunal de solução judiciária, pelo menos em relação à autoridade judicante, no plano do Poder Judiciário, autoridade talvez de tribunais arbitrais, inclusive o Tribunal Arbitral que atualmente existe, em função do que foi estabelecido tanto no Tratado de Assunção como também no Protocolo de Ouro Preto. Minha experiência deriva um pouco também do fato de ser árbitro da lista apresentada por nosso país em relação à problemática do Mercosul. Não conheço o projeto da deputada Zulaiê Cobra, mas perguntaria se porventura existe a possibilidade de que, eventualmente constituído um tribunal de solução judiciária como órgão específico do Mercosul, houvesse alguma incidência na competência do Supremo Tribunal Federal.
PAULO JOSÉ DA COSTA JÚNIOR – Com relação à nobre relatora, como já se disse ela é uma boa advogada, mas não conhece a instância superior. Então não teria condições de oferecer uma reforma à altura de nossas cortes supremas.
Uma segunda observação é sobre a "lei da mordaça". É o direito de tutelar a intimidade e, mais ainda, assegurar a presunção de inocência. Nem o jornalista nem ninguém tem o direito de divulgar a culpabilidade de alguém, antes de estar assentada. Então a "lei da mordaça" é muito mal denominada, pois parece algo ditatorial, que estamos a amordaçar o jornalista no seu sacrossanto direito de informar. Não é isso.
Outra observação que faço rapidamente é com relação à necessidade do controle da figura do juiz. Eu diria que o mau juiz é o pior dos homens. Então há necessidade de haver um controle sobre ele. Diriam: mas só sobre os juízes, e por que não sobre os advogados? Claro que os advogados também deveriam ser controlados. Estamos sendo mal controlados, nossos tribunais de ética e disciplina são falhos e indulgentes. Algo tem de ser feito também para coibir a figura dos maus promotores públicos.
Nossa suprema corte tem de funcionar como a italiana, por exemplo, tem de ser apenas uma corte constitucional, e nada além. É inconcebível que se dê a um número reduzido de ministros tamanha quantidade de processos. Como no STJ, além das súmulas vinculantes, teremos de harmonizar a jurisprudência, ainda no seu velho sentido de autoridade das coisas sempre julgadas da mesma forma.
IVES GANDRA – A média dos jurisdicionados dos países civilizados para um magistrado está entre 2,5 mil e 5 mil, mas sobre toda a população. Vale dizer que estamos, em relação a México, Argentina, Alemanha e Estados Unidos, por exemplo, muito acima da possibilidade de poder decidir, levando-se em consideração que nesses países, sendo o processo mais sério e havendo menos recursos processuais, o magistrado não é obrigado a decidir sobre tantos incidentes quanto aqui. Além de termos uma quantidade muito maior de jurisdicionados, há um número muito superior de incidentes processuais, em função do excesso de recursos.
Quanto ao sigilo bancário, o terceiro colóquio internacional, que será no ano que vem, vai discutir o assunto em nível internacional – como as diversas legislações do mundo estão cuidando dessa matéria, até porque ela está sendo discutida agora também na OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico). Não só nos casos de lavagem de dinheiro e de corrupção se admite a quebra do sigilo nos países desenvolvidos; para dar certa tranqüilidade aos bancos centrais e às administrações tributárias, o Centro Interamericano de Administrações Tributárias (Ciat) tem procurado discutir como se poderia quebrá-lo sem violentar direitos. Fiz um depoimento sobre sigilo tributário recentemente no Congresso Nacional, a pedido do deputado Eduardo Paes, que está examinando o projeto de lei complementar com que o secretário Everardo Maciel pretende a quebra do sigilo bancário. A receptividade dos que estavam presentes, Germano Rigotto, Mussa Demes, etc., foi muito boa. Hoje já temos a possibilidade de quebra desse sigilo, com todas as garantias do Fisco e do contribuinte. Sempre que o Fisco tem indícios em relação a determinado contribuinte, solicita ao juiz que permita a quebra do sigilo bancário. Então dizer que temos esse sigilo não é verdade. Temos a possibilidade de quebra do sigilo através de uma autoridade que dá garantia ao Fisco de um lado e ao cidadão do outro. Isso é jurisprudência pacífica do STF. O que o doutor Everardo quer? Que qualquer agente fiscal possa quebrar o sigilo bancário, sem necessidade da autorização do juiz.
VICENTE MAROTTA – Com a possibilidade de manipulação política.
IVES GANDRA – Total. No momento em que um agente não tenha dados suficientes, o juiz fará a análise. Nesse caso vai se violentar um direito do contribuinte. No depoimento na comissão, eu, Ozires Lopes de Azevedo Filho, Alberto Xavier e Marco Aurélio Greco fomos contra. Todos concordaram que, havendo um mecanismo que permita a quebra do sigilo bancário, assegurado constitucionalmente através de jurisprudência do Supremo, o Fisco não precisa de mais nada. O que é mais revoltante é que, quando foi apresentado um projeto de reforma constitucional do deputado Mussa Demes, ele colocou duas vertentes. Primeiro, o direito de o fiscal quebrar o sigilo bancário. Segundo, o direito do contribuinte de responsabilizar o fiscal que agisse indevida, arbitrária ou abusivamente. Primeira oposição feita pela secretaria: isso iria inibir a fiscalização. A conclusão é a seguinte: os agentes fiscais, os mais honestos do mundo, um modelo de ética no Brasil, sustentados pelos contribuintes, não podem ser responsabilizados. Agora, aqueles que os sustentam, que são todos sonegadores, têm de ser fiscalizados independentemente do Poder Judiciário. Todos os deputados da comissão manifestaram que esse mecanismo que hoje temos é suficiente. Espero que o Congresso Nacional mantenha, sempre através de autorização judicial, a garantia do Fisco e a da sociedade.
Quando Marotta Rangel era um jovem professor da faculdade, fui seu aluno, condição de discípulo em que continuo até hoje. Embora não seja especialista em direito internacional, gostaria de fazer algumas considerações sobre os tratados internacionais, que na interpretação da Constituição Celso Bastos e eu adotamos, mas mais eu do que Celso, porque esse capítulo coube a mim comentar. A jurisprudência do STF não é aquela que me dá mais tranqüilidade. Em dois momentos a Constituição fala, por exemplo, sobre a eficácia de um tratado internacional. No artigo 84 diz que o presidente pode, ad referendum do Congresso Nacional, firmar tratados e convenções. Ora, sempre que a expressão ad referendum é utilizada na Constituição, é algo que tem já eficácia para ser aceito ou não posteriormente. Por exemplo, no estado de defesa, se o presidente precisa tomar determinadas decisões, ele as toma ad referendum e elas já têm eficácia. Temos diversos dispositivos em que o ad referendum é uma utilização de eficácia provisória. Depois o artigo 49, inciso I, utiliza a seguinte expressão: os tratados internacionais serão resolvidos "definitivamente". Numa homenagem à cultura dos constituintes e não aceitando que sejam analfabetos ou não tenham o domínio do vernáculo, resolver definitivamente é dar eficácia definitiva.
Qual é a tradição anterior de nossa Constituição em relação aos tratados internacionais? É que só com decreto presidencial posterior e o depósito desse tratado, ele passaria a ter eficácia. Tenho interpretado que esses dois atos posteriores não estão na Constituição. Não há nenhum dispositivo que hospede esses dois atos posteriores para dar eficácia. E há uma expressão constitucional que é de grande força: "resolver definitivamente". Se é a melhor solução, isso traz problemas internacionais enormes, porque o Brasil poderá ter uma resolução por decreto legislativo e essa resolução os países não adotarem e teoricamente já ter validade. Mas quando o Supremo declarou que tem eficácia de lei ordinária e quando agora na proposta se diz que os tratados e convenções, embora só sobre direitos humanos, aprovados em cada casa do Congresso Nacional em dois turnos por três quintos dos votos serão equivalentes às emendas constitucionais, significa que isso ganha nível constitucional. A Carta argentina tem 129 artigos. Há a Constituição, o tratado e a legislação inferior. Mas nesse caso o tratado passa a ser superior e a ter nível constitucional sobre a legislação. Vale dizer, só pode ser alterado por nova emenda constitucional. Isso na minha opinião pode trazer problemas gravíssimos. Se forem direitos fundamentais, não é preciso, porque já temos. Mas no caso de todos os outros direitos, numa interpretação extensiva de que hoje há inúmeros direitos que não são fundamentais mas relacionados ao homem, pode acontecer de um tratado ser rompido mas o Brasil não poder deixar de cumpri-lo internamente, a não ser que uma nova emenda constitucional o afastasse. Se isso objetiva ser um acréscimo, tenho de admitir que estou perante uma interpretação que vai amarrar o Brasil a título de solucionar uma jurisprudência do Supremo. Se ao contrário foi para reiterar o que já existe, é absolutamente desnecessário porque os direitos fundamentais o Estado não cria, só pode reconhecer. É evidente que já estão consagrados em nossa Constituição.
A redação do parágrafo único do artigo 4º dá a impressão nítida de uma nova programática. Por quê? "A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações." Vale dizer, estamos perante uma norma programática que permitiu o Tratado de Assunção e o Protocolo de Ouro Preto. O Mercosul não é mais uma zona de livre comércio, mas ainda não é um mercado comum. Continuamos com uma união aduaneira, não estamos, como no Tratado de Amsterdã, com uma federação de países ou uma quase federação. Se analisarmos os órgãos que administram a União Européia, o Parlamento europeu, o Tribunal de Luxemburgo, a comissão, o conselho, o Tribunal de Contas e o Banco Central Europeu, o que verificaremos é que, em decorrência do Tratado de Amsterdã e do de Maastricht, o direito comunitário prevalece sobre o local. Tenho dito em aulas de direito constitucional que a União Européia não é uma confederação de países, é uma federação. Abriram mão de parte de sua soberania com vistas à formação de um espaço comunitário, de modo que essa soberania interna fosse exercida por órgãos supranacionais. Dentro dessa linha, estou convencido de que no Tribunal de Luxemburgo, 15 países, 15 juízes, cada um, independentemente do tamanho da nação, tem a mesma densidade. Quanto à América Latina, eu, assim como ministros do Supremo com quem tenho conversado, alguns dos quais estiveram presentes na preparação daquela conferência que resultou no Protocolo de Ouro Preto, tenho muito receio. Em um país que tem 75% do Mercosul, em população, PIB, etc., criar (e ainda em nível de união aduaneira) um tribunal que pudesse prevalecer sobre o tribunal local nos assuntos comunitários, impõe seriíssimos riscos, por ainda não termos tido uma evolução como a do Tratado de Roma, que terminou nessa configuração maior do Tratado de Amsterdã, depois de 40 e poucos anos e com países com uma tradição de civilização muito maior do que a nossa. Então pessoalmente considero ainda prematuro. Se pretendemos chegar ao estágio de um espaço comunitário, um dia teremos de chegar lá, mas não é o momento. A solução arbitral, de acordo que se faz à margem do Poder Judiciário, é adequada, mas no Brasil apresenta uma dificuldade séria. É que, qualquer que seja a solução arbitral, não poderá deixar de ser examinada pelos tribunais brasileiros, porque o artigo 5º, inciso XXXV, declara que todas as relações terão de ser levadas ao Poder Judiciário. Não sei como vamos solucionar esse problema. No momento em que consideraram que todo o artigo 5º é constituído por cláusulas pétreas, nem emendas constitucionais poderiam resolver a questão. Mas isso deixo para o futuro. Em relação ao doutor Paulo José da Costa, estou absolutamente de acordo com tudo e também entendo que deveríamos ter um controle melhor do mau magistrado, do mau advogado e do mau membro do Ministério Público.
PAULO JOSÉ – E eu diria do mau promotor também.
IVES GANDRA – É o poder irresponsável da República, o do Ministério Público. Todos os poderes podem ser responsabilizados. Teríamos de criar órgãos. Por exemplo, sou favorável ao Conselho Nacional da Magistratura, deslocando dos tribunais locais para um conselho superior, mas sob controle do próprio poder. Então seria da advocacia, do Ministério Público e da magistratura. Dou um exemplo que me parece bem claro. Não sei se foi no "Le Monde" ou no "Le Figaro", mas foi publicada uma pesquisa, ainda na época do presidente François Mitterrand, sobre a instituição mais desmoralizada da França, e foi escolhido o Poder Judiciário. Lá a organização do Judiciário é um pouco diferente da nossa, porque é um órgão de administração. Há dois poderes, o Legislativo e o Administrativo, e um dos órgãos deste último é responsável pela administração da justiça. No jornal era explicada a razão dessa desmoralização: 71% dos franceses disseram que era o controle externo que tirava a independência e a liberdade dos juízes. Isso me impressionou muito; distribuí o jornal inclusive entre ministros do Supremo, porque na prática os franceses estavam descontentes porque achavam que os juízes não tinham coragem de decidir com medo do controle externo vir publicamente a desfigurar sua imagem. Isso para mim, num país como a França, com seu grau de civilização, é algo que impressiona. Então sou favorável a um controle sempre interno, mas deslocado do corporativismo local.
SAMUEL PFROMM NETTO – Vou me limitar apenas a um aspecto preliminar que foi o ponto de partida de sua exposição, a Constituição brasileira. Numerosos países têm Cartas bem mais enxutas, bem mais concentradas do que a nossa e que perduram ao longo de muito tempo. Quanto está custando a nós como povo e ao Brasil como nação a Constituição vigente? E quais são as saídas?
FÉLIX MAJORANA – Durante sua palestra, você só usou a palavra "honra" por uma vez. Eu desafiaria os que gostam de quantificar dados que fizessem um levantamento no último mês de quantas vezes foi escrita a palavra "honra" no "Estadão", por exemplo. É uma palavra hoje em desuso e, o pior, não só a palavra, o comportamento.
Parece-me que todos esses problemas beneficiam a alguém – como os advogados que levantaram um monumento a Fernando Collor, porque na época dele todo advogado resolveu seus problemas financeiros. Mas eu perguntaria: até que ponto o emperramento da Justiça não é solução de autodefesa? Afinal, quem mais lucra com a massa semimóvel que se configura, por exemplo, numa denúncia de má administração do dinheiro público? Será que não interessa que isso fique emperrado mesmo?
ROBERTO PACHECO – Em artigo publicado em fevereiro no jornal "O Estado de S. Paulo" ("O Peso de uma Federação Falida") Ives demonstrou que a federação brasileira é maior do que o PIB. Os tributos pagos pela população anualmente correspondem a R$ 250 bilhões, mais da metade se destina a pagamento de servidores ativos e inativos, são 5,5 mil entidades formadas por políticos e burocratas. Comentou ainda que nos Estados Unidos vereadores dos médios e pequenos municípios não recebem nada. A precisa conclusão foi que ou o Brasil muda a federação ou a federação acaba com o Brasil.
JULIAN CHACEL – Minha pergunta é direta. Na medida em que sua conclusão é de que a reforma do Judiciário tal como emerge da Câmara não atende as necessidades do país, quais seriam as chances no Senado de se fazer correções, de tal modo que a reforma, uma vez revista, pudesse ser boa?
LUIZ HUMBERTO PRISCO VIANA – O clamor que havia ou que há ainda em relação ao Judiciário, sobretudo na opinião do povo, é causado pela lentidão que impede que se faça justiça. Não há nada no projeto que atenda isso. Acho também que é perfeita a observação de que seria preciso cuidar das leis, porque as deficiências do Poder Judiciário decorrem menos dele do que do arcabouço de leis que criam essas situações a que o senhor se referiu.
Queria colocar aqui uma questão. Que opinião o senhor tem sobre a regra para a composição dos tribunais? Dá-se ao presidente da República e ao governador o poder de nomear, no caso do Supremo, a seu exclusivo critério. Naturalmente a Constituição estabelece pressupostos – notório saber jurídico e reputação ilibada –, que nem sempre são determinantes. Há quase sempre um critério político para o provimento desses lugares. Não acredita que isso induza os tribunais a tomar decisões politicamente? É evidente que nos estados os governadores controlam grande parte das decisões do Judiciário. Acho que essa teria sido a oportunidade de criar um critério pelo qual o Conselho da Magistratura faria listas para o presidente, o que também seria feito em relação ao Ministério Público. Mas foi oportunidade perdida. Participei da fase inicial da elaboração desse projeto, que na verdade não começou com um projeto, foi um erro. Era uma proposta do deputado José Genoíno, que queria estabelecer o controle externo do Judiciário. Eu era membro da Comissão de Justiça e reagimos, foi uma discussão muito longa para resolver, foi preciso convencer Genoíno a tirar a expressão "externo", o que anulava sua proposta. Esse projeto foi sendo constituído aos pedaços e também sob os condicionamentos da conjuntura. À medida que se reclamava do Judiciário, apareciam idéias que eram incorporadas nele. Não tem sistema nenhum esse projeto.
IVES GANDRA – Em relação a Samuel Pfromm, de certa forma sua colocação está muito vinculada à de Roberto Pacheco. Tenho dito que a federação é maior que o PIB. Tínhamos 3,9 mil municípios quando da promulgação da Constituição de 88 e hoje estamos com 5,5 mil. Muitos vivem apenas de transferência de receita. Se analisarmos o que há de artificialidade em nossa federação, entidades federativas que foram criadas sem densidade, verificaremos que efetivamente grande parte do esforço nacional é destinado a manter o custo político da federação. Em 91 escrevi um artigo, também em "O Estado de S. Paulo", com o título de "O Custo Político da Federação", e o deputado Ulysses Guimarães me telefonou: "Acabo de ler seu artigo, estou de acordo e é minha intenção, se for o presidente, e acredito que vá ser, da revisão constitucional de 93, compor uma comissão de juristas do meu lado para que possamos fazer a reforma adequada". Então aconteceu o que aconteceu, e a sistematização teve um problema muito grande e depois houve os entraves políticos do grupo Centrão. Infelizmente, com a morte de Ulysses Guimarães, perdemos uma grande oportunidade na revisão de 93, em que o ministro Nélson Jobim, com todo o seu talento, não tinha o poder aglutinador de Ulysses. Ele era muito respeitoso e me dizia: "Professor, estou convencido de que foi uma Constituição cidadã, mas também estou convencido de que erramos na conformação da estrutura da federação, e isso precisa ser de alguma forma modificado". Eu mostrava uma tese a ele de que a cláusula pétrea é o sistema federativo, mas é evidente que alterações do sistema, conquanto seja preservado, não representam violência a cláusula pétrea.
E hoje estou absolutamente convencido de que o problema aí está e é extremamente difícil. Há estados que recebem 80 e poucos por cento de transferência de receitas tributárias e têm muito pouco de receita própria. E outros estados que fazem essa transferência, por exemplo, o de São Paulo. Pouco menos de 1% dos tributos federais arrecadados na cidade de São Paulo ficam para o próprio município. Há estados que têm densidade e podem viver com pouca transferência, mas há outros, como o Acre, que vivem praticamente só de transferência. O estado do Alabama, nos Estados Unidos, tem um deputado, o Acre tem oito. Na federação americana o estado sem densidade populacional tem um deputado. O Acre tem pouco acima de 400 mil habitantes, talvez o bairro de São Miguel, em São Paulo, tenha mais do que isso. Então esse é um aspecto grave e que considero extremamente difícil. A Constituição tem mais de 20 dispositivos sobre territórios federais, e o Brasil não tem território federal. Para que um dia viesse a ter, dependeria de uma lei complementar, de um plebiscito dos senadores e deputados para decidirem se iriam perder poder para transferir esse poder para a União. Nunca ocorrerá. Enquanto não se abrir mão do poder, toda decisão de reformulação constitucional será uma decisão política.
Enquanto não tivermos uma reforma política, não vamos ter a possibilidade de uma reforma constitucional séria, na medida em que não vai haver densidade política de poder, só composições. Temos uma multiplicação de partidos no país e é muito difícil uma reforma política, na medida em que esses próprios partidos terminarão inviabilizando-a em maior profundidade. Uma democracia razoável tem três a cinco partidos no máximo, e temos uma multiplicação de partidos com densidade e com poder de chantagem. A própria forma de reforma constitucional é extremamente complicada, aprova-se um projeto e, se o cidadão fez um destaque, precisa ter a mesma votação para derrubar. Então quem está na oposição por uma reforma constitucional tem muito mais força do que quem está na situação, porque tem de aprovar com 308 deputados na Câmara dos Deputados.
PRISCO VIANA – Esse é um mecanismo de proteção da minoria, mas exageraram na dose.
IVES GANDRA – Exageraram. Então essas reformas me parecem extremamente difíceis.
Gostaria de falar um pouco sobre como se deu a revisão da Constituição argentina. García Lema era procurador-geral da República. O que o presidente Menem fez quando houve o receio de um retorno do militarismo e aconteceu um primeiro golpe? Chamou García Lema e os partidos e disse: "Procure negociar com os juristas dos partidos um texto constitucional". Então foi criada uma comissão, e os juristas dos partidos políticos discutiram em profundidade. Quando tiveram o texto interna corporis equacionado, publicaram a Constituição. O processo constituinte deles foi extremamente rápido, e resultou em uma Constituição de 129 artigos. Estamos com uma Constituição de cerca de 250 artigos nas disposições especiais e 76 nas transitórias. Então creio que, se não houver reforma política e um trabalho dessa natureza, qualquer proposta vai ter as mesmas deficiências que ali estão.
Félix Majorana fez menção ao problema de honra e o que a imprensa tem apresentado. Publiquei na "Folha" um artigo, "O Poder de Destruir", que sofreu evidentemente uma reação de muitos jornalistas pela crítica que faço em relação ao modo como eles jogam com a honra das pessoas. O próprio Clóvis Rossi, no dia seguinte, escreveu que sou seletivo e que isso é bom para os países desenvolvidos, mas não para o Brasil, que a honra existe nos países desenvolvidos mas aqui só protege criminosos, e disse que nunca fiz nenhum ataque às mortes que ocorreram em Carajás, sem perceber que sou membro da Anistia Internacional e mais do que ninguém gosto que não haja injustiça. Mesmo os grandes criminosos têm direito ao julgamento justo. Isso ele não acrescentou. Mas na prática a reação demonstrou que eles não gostaram que eu estivesse defendendo a honra e a imagem das pessoas, que a Constituição garante. Eu disse ao próprio Frias: "A diferença entre Clóvis e mim é que ele não é democrático e eu sou. Quem diz que os meios justificam os fins evidentemente não é democrata. Não gosto dessa Constituição, mas a respeito. Ele gosta dessa Constituição e não a respeita. Para mim os meios não justificam os fins. Todas as pessoas têm o direito de defesa, mesmo aquelas de que não gosto. Já para ele os meios justificam os fins, desde que atinja seus objetivos". Frias deu uma grande gargalhada ao telefone, dizendo: "É o estilo dele, mas acho que você tem razão".
Considero que o maior patrimônio de qualquer pessoa é a honra, como digo nesse artigo. No momento em que o cidadão é julgado pela imprensa, ele é prisioneiro da opinião pública, e a partir daí sua imagem fica completamente deteriorada, desfigurada. Isso é o que me parece extremamente violento.
Com relação à pergunta de Chacel, é evidente que o Senado pode fazer uma revisão completa, e então o projeto teria de voltar para a Câmara. O Senado pode até fazer um novo projeto.
PRISCO VIANA – No caso acaba sendo o revisor final o autor do projeto, quer dizer, a casa originária do projeto. Voltando à Câmara, examinam apenas as emendas do Senado, e podem rejeitá-las e prevalecer o projeto aprovado anteriormente.
IVES GANDRA – Quanto à composição, no Superior Tribunal 10% saem da advocacia, 10% do Ministério Público, e no Tribunal de Justiça temos um número de representantes do Poder Judiciário estadual e federal. Portanto, a composição é correta, no sentido de que todos os segmentos da magistratura, do Ministério Público e da advocacia são representados. Entretanto, a escolha pelo governador ou pelo presidente cria algo que me parece extremamente negativo.
Esse sistema faz com que ou os juízes que querem se promover se orientem por decisões para agradar ao poder ou que sua vinculação ideológica seja utilizada. E isso não é bom. Por essa razão, a nomeação não poderia ser feita pelo presidente. Já na época do regime militar, eu escrevia no "Estado de S. Paulo" que isso não deveria ser a norma, e seriam os próprios tribunais que deveriam nomear. Temos três poderes, dois políticos e um técnico. O poder político é o povo que elege. Obtido o concurso, é o próprio poder técnico que tem de criar seu sistema de burocracia profissionalizado.
Em relação ao Supremo é ainda pior, porque nesse caso não há necessidade de nenhuma participação do Poder Judiciário ou das instituições referidas, nem do Ministério Público nem da administração. O presidente, aberta a vaga, escolhe quem ele quiser.
PRISCO VIANA – Até para sustentar o princípio da separação dos poderes.
IVES GANDRA – Exatamente. Até porque os atos desses dois poderes serão necessariamente examinados pelo Poder Judiciário. Então essa posição, deputado, eu a tenho muito antes da Constituição de 88. Nos Estados Unidos os ministros do Supremo também são nomeados pelo presidente, mas passam por uma sabatina do Congresso Nacional. Mas a forma de ter independência seria jamais o magistrado ser indicado.
PRISCO VIANA – Tanto mais é inconveniente quanto se nomeia ministro alguém que participou do governo, ainda no curso de seu mandato. Se isso aconteceu no fim do mandato, é uma premiação, e ele já não tem como servir ao governo de que fez parte.
IVES GANDRA – O fato de não ser o próprio Poder Judiciário a escolher os ministros faz com que as nomeações sejam eminentemente políticas. Considero um verdadeiro milagre no Brasil termos um Supremo Tribunal Federal que tem sempre honrado o Poder Judiciário