Postado em 25/05/2014
Por Ricardo Lísias
Meu bisavô deve ter vindo morar no Ipiranga na década de 1940. Ele tinha acabado de abrir uma tecelagem junto com outro libanês e queria ficar um pouco mais perto das máquinas. Meu avô ficaria com os dois irmãos mais velhos trabalhando no armazém do Bom Retiro. A família era grande: nove filhos e dois sobrinhos cujo pai não tinha aguentado a saudade do Oriente Médio. Por isso, precisavam de uma casa espaçosa.
O assunto sempre foi tabu na família. Meu bisavô veio para o Brasil por questões religiosas. Cristão, previa que o clima ficaria tenso na região onde os negócios da família estavam concentrados. Para ele, bastariam umas poucas décadas para tudo explodir no Líbano. Ele errou o tempo, mas acertou em cheio na intensidade da tragédia: em 1982, os cristãos libaneses (certamente alguns com o mesmo sangue que eu) massacraram os palestinos com a conivência do exército de Israel.
Quando eu tinha dezesseis anos e só pensava no movimento dos caras pintadas, meu avô reclamou outra vez do meu desinteresse pela igreja. Eu o magoei muito: é, só que onde estava o seu Deus quando vocês assassinaram... Ele me assustou com um movimento brusco. Parei de falar. Acho que ele iria me dar um tapa no rosto. Recuei um pouco e o olhei de um jeito ridiculamente desafiador. Acabei virando as costas e fui embora.
Lembro-me de ter cruzado andando a avenida Bom Pastor quase inteira. Não percebi, naquele momento, a ironia do nome. Esse é o endereço da minha raiva. Depois, tomei um ônibus e voltei para casa. Ficamos um mês sem nos falar. Então, comecei a sentir saudades. Antes de entrar no casarão e pedir desculpas, fiquei um bom tempo sentado na escadinha da entrada. Minha avó tinha feito um jardim no tanque das carpas e eu gostava de admirá-lo. Percebi que meu avô estava me olhando.
Você está rezando?